RESUMO: INVESTIGAÇÕES SOBRE O ENTENDIMENTO HUMANO E SOBRE OS PRINCÍPIOS DA MORAL (SEÇÕES II E III)– DAVID HUME

    David Hume, em total contrapartida de Descartes e toda corrente racionalista, leva aos extremos o empirismo-cético inspirado nas ideias de Bacon, Berkeley e Locke. Em sua obra Investigações Sobre o Entendimento Humano e Sobre os Princípios da Moral, dentre outras várias outras questões que o filósofo britânico discorre, na segunda e terceira seção, irá expor seu parecer acerca da epistemologia e o modo que o conhecimento opera no homem.

    Hume considera que todo o conhecimento parte da sensibilidade. O “eu” é fruto da totalidade dos fatos e operações cognitivas que elaboram o sujeito e seu respectivo conteúdo mental; não há, portanto, qualquer tipo de saber inato. Os fatos e as operações mentais sobre o mundo são percepções que o indivíduo sente ou pensa mediante as impressões que ocasionam as ideias, todavia, “essas faculdades podem imitar ou copiar as percepções dos sentidos, mas jamais podem atingir toda a força e vivacidade da experiência original” (HUME, 2004).

    Sendo a mente um conjunto de percepções reproduzidas imperfeitamente por suas faculdades limitadas, o pensamento é reflexo copiador fiel dos fenômenos que reproduz uma imagem fraca da realidade empírica, Hume significando estas últimas, denomina-as como ideias provindas das impressões que, ao contrário, são vivazes e fortes. As impressões na terminologia huminiana correspondem a sensibilidade “crua”, isto é, as percepções que o homem experimenta no instante que as contempla, por exemplo: Deslumbrando o pôr-do-sol em uma praia de Maceió, as impressões que o sujeito vivencia neste instante são mais intensas e vigorosas em decorrência de seus sentidos; o indivíduo vê o sol se pondo, ouve o quebrar das ondas na areia, sente o vento fresco, o cheiro intenso do mar junto à costa e as gotículas de água que vem ao encontro de seu corpo, ele sente paz nesse momento em que exerce sua vontade de desfrutar suas férias no litoral. 

    Todas as impressões que o homem experimentou no exemplo acima, se transformam em ideias ou pensamentos quando resta apenas a lembrança da contemplação do entardecer em Alagoas, “[...] que são derivados da sensação externa ou interna, e à mente e à vontade compete misturar e compor esses materiais. Todas nossas ideias [...] são cópias de nossas impressões ou percepções mais vívidas.” (HUME, 2004). 

    Desse modo, compreendido como é estruturado o aparelho cognitivo do homem, Hume estabelece que absolutamente toda ideia que é elaborada por impressões que podem ser reduzidas a pensamentos simples que foram antes vivenciadas e sentidas em ato. Conforme mencionado no início da análise textual, toda ideia é uma cópia fraca mesmo quando de fato é experimentada, consequentemente, os pensamentos puramente abstratos são ainda mais deficientes e afastados da realidade, pois:


“O intelecto as apreende apenas precariamente, elas tendem a se confundir com outras ideias assemelhadas, e mesmo quando algum termo está desprovido de um significado preciso, somos levados a imaginar, quando o empregamos com frequência, que a ele corresponde uma ideia determinada.” (HUME, 2004, tópico IX, p. 39) 


    Em vista de tais fatos, fica evidente que há uma conexão entre os diversos pensamentos que originados, se combinam em respectivo método e continuidade. Hume exemplifica essa conexão por meio dos sonhos, em conformidade com o filósofo, a imaginação não gera nenhum conteúdo que não fosse previamente apreendido em vigília, mas dá frutos sim, ligando e fazendo conexões com diferentes impressões e ideias; ora, é impossível sonhar com uma cor que não exista no círculo cromático do mesmo modo que é utópico crer que há possibilidade de imaginar uma coloração que fuja dos matizes basilares. De acordo com o pensador empirista, eis que isso é “uma prova cabal de que as ideias simples, compreendidas nas ideias complexas, foram reunidas por algum princípio universal que exerceu igual influência em toda a humanidade” (HUME, 2004). 

    Essa conexão de ideias nasce de três princípios, semelhança, causa ou efeito, contiguidade no tempo ou espaço, exemplifica o autor, “[...] se pensarmos em um ferimento, dificilmente conseguiremos evitar uma reflexão sobre a dor que o acompanha.” (HUME, 2004). Neste exemplo em específico é possível aplicar os princípios supracitados com base nas próprias indicações posteriores de Hume. No que diz respeito à semelhança, indivíduo já foi ferido de algum modo (reflexão acerca do sofrimento); acerca da contiguidade no tempo ou espaço, é atribuído algum lugar e tempo para o ferimento (perna ou braço, se foi machucado agora ou há alguns dias etc.); por fim, sobre causa e efeito, alguma circunstância contundente proporcionou a lesão (um escorregão que esfolou o joelho.) Até mesmo as paixões e aptidões são vinculadas por meio da reflexão sobre um ferimento, por exemplo a repulsa e o ânimo para preservar a vida. Em suma, as informações idealizadas, sejam racionais ou passionais, são resultado da conexão pautada nestes princípios citados que fazem um processo da operação mental que transformam impressões em ideias simples para torná-las complexas. 

    Em síntese, fica evidente na análise da obra do pensador britânico que não há de forma alguma pensamento ou saber metafísico. Hume considera de forma contumaz o valor do conhecimento empírico, não há nada que esteja nada do indivíduo que antes não tenha passado pelo crivo da sensibilidade que, combinadas ou associadas de algum modo que torne as experiências parte da subjetividade de cada homem. Através de seu empirismo radical, o pensador espera com isso remover uma grande parcela da obscuridade que tanto se espalhou na história da filosofia.




Sobre o Racionalismo Platônico e Agostiniano

    Platão e Agostinho de Hipona são dois expoentes da corrente racionalista ⏤ com certas ressalvas, dado que o termo é fruto do pensamento moderno. Ambos os filósofos, mesmo com suas peculiaridades e diferenças, compartilham do ideal da imensa capacidade cognoscitiva da racionalidade em relação ao mundo fenomênico; estes compreendiam que existe um conhecimento uno, superior, imutável, que seria alcançado tão somente por meio de uma transformação na relação do sujeito com a realidade que o envolve, seja através da ascensão dialética visando a contemplação do sumo bem , ou por via da introspecção permitindo o encontro com Deus, este que é fonte suprema de sabedoria. Independentemente dos meios que fazem o indivíduo compreender a verdade, os dois pensadores seguem a mesma linha de raciocínio em seus pensamentos acerca da epistemologia, ou seja, por serem racionalistas criam que a razão é capaz de conhecer um saber universal e necessariamente lógico.  

    Para o filósofo ateniense, tido como racionalista-objetivo, não há saber sem o uso da dialética. A ascensão dialética é a base de seu dualismo e de seu entendimento sobre o que é a verdade e o conhecimento seguro. O pensador, influenciado pelos pensadores eleatas, identificara uma clara distinção entre o permanente e o transitório, afirmando a superioridade do primeiro em relação ao segundo. De acordo com seu dualismo, Platão concebida o mundo fenomênico como uma cópia imperfeita do mundo suprassensível, e uma vez que os objetos materiais estão sujeitos ao devir, por si só não possui nenhum valor que compense ser concebido. No entanto é válido ressaltar, que a realidade sensível, ao contrário de ser meramente desprezada na perspectiva platônica, possuía um grau de valor a partir do momento que esta leva o indivíduo a transformar a materialidade em conceitos e noções. 

    O filósofo grego nos seus diálogos, em especial na República, no Fédon e no O Sofista, vai discorrer com seus interlocutores como de fato pode se obter o conhecimento e reforçar o parecer exposto de maneiras diversas nas obras citadas. Para compreender o que Platão concebe como conhecimento, é imprescindível ter o entendimento de como ocorre a ascensão dialética e a divisão que o mesmo faz sobre a realidade empírica e inteligível. O fundador da primeira Academia grega acreditava ser essencial constatar a superioridade às Ideias sobre os objetos sensíveis justamente pelo fato que a sensibilidade está em constante mudança, enquanto as Ideias, habitantes do mundo suprassensível, permaneceriam imutáveis e, portanto, esta deveria ser o objeto de uma investigação segura, sem estar correndo o risco que deixar cair-se no engano ocasionado pelas sensações.  

    Para exemplificar sua argumentação, Platão, através da narrativa do mito da caverna demonstra os passos para a ruptura em relação as ilusões das coisas do mundo sensível, e com o objetivo de contemplar as Ideias, só seria possível através da reflexão, do raciocínio, do pensamento, para tanto, é metodicamente necessário entender como é a realidade para começar a trilhar o caminho da razão rumo a saída da caverna.  Na alegoria retratada na República, é apresentada a realidade de forma dividida em segmentos que constituem a posição do sujeito para com o mundo (o objeto) e a relação que ambos possuem um com o outro no que concerne a fonte e essência do conhecimento.  

    No diálogo, é retratado um homem acorrentado com seus camaradas vendo sombras de silhuetas no fundo de uma caverna, que, porventura, consegue se desacorrentar e caminha em direção a saída do local de seu cárcere, na trajetória que seguia, o indivíduo que escapou observou a infraestrutura da caverna que ocasionava as sombras através de marionetes que ele sempre havia visto na parede que até então era a sua realidade, já saindo da caverna ele contempla a verdadeira realidade, seus olhos ardem e sua vista demora a se acostumar com a luz do sol, todavia, quando ele se acostuma a iluminação, acaba por vivenciar a verdade que sempre esteve ali disposta, mas nunca percebidas em decorrência de seu jugo.  

    Por trás da linguagem metafórica do mito, Platão, estabelece como é o processo dialético, tendo como o objetivo a busca da verdade universal. Em seu primeiro segmento as sombras representam respectivamente a aparência sensível dos objetos; posteriormente, as marionetes assumem o papel da representação própria dos objetos empíricos; em sequência, o muro onde estão sustentadas as marionetes simbolizam o limiar que separa os dois tipos de conhecimento — sensível e suprassensível; por fim, o exterior da caverna são as Ideias, realidade indubitável, essência de todos os fenômenos, uno, universal, e o sol representando a Ideia mais elevada e nobre, o sumo-bem que engendra em si a perfeição, a beleza e a justiça. Além do mais, em outro diálogo dentre vários, no Fédon especificamente, Platão trabalha a teoria da reminiscência, que, de modo a complementar a alegoria já analisada, é expresso que as Ideias já estão inatas no sujeito em decorrência da transmigração das almas no transpassar de toda eternidade, de tal maneira que o espírito já contemplou tudo o que existe, dentre as apreciações de existências, a contemplação do mundo suprassensível, o uno. Em outra obra, o filósofo discorre acerca da constituição do mundo inteligível: 


"De fato, o que ocupa esse lugar é a substância (a realidade, o ser, ou seja, as ideias) que existe realmente, privada de cor, sem figura e intangível que só pode ser contemplada pelo timoneiro da alma, pelo intelecto, constituindo o objeto próprio da verdadeira ciência. [...] E após ter contemplado, da mesma forma, as outras entidades reais e ter-se saciado com isso, mergulha novamente no interior do céu e volta para casa [...]." (PLATÃO, Fedro) 


    Em suma, Platão demonstra a passagem do conhecimento meramente opinativo (dóxa) para o conhecimento indubitável (epistéme) só seria alcançado mediante a dialética que engloba tanto o saber matemático quanto o filosófico. A razão assume em sua epistemologia um caráter essencial para o conhecimento que sempre esteve presente no mundo para o sujeito, “obscurecida” frente as sombras da sensibilidade, por conseguinte, o filósofo clássico é considerado como um racionalista-objetivista resultante ao esforço dialético que o sujeito faz através da racionalidade para a alcançar (ou em termos platônicos, relembrar) a verdade, as Ideias. Nas palavras de Johannes Hessen:  


"O sujeito, de certo modo, incorpora as determinações do objeto. [...] Os objetos são algo dado, apresentando uma estrutura totalmente definida que será, por assim dizer, reconstruída pela consciência cognoscente." (HESSEN, 1999, p. 70) 


    A possibilidade de conhecer mediante a razão instaurada por Platão foi o estopim para a consolidação da vertente epistemológica racionalista que iria ecoar séculos posteriores em uma Europa cada vez mais cristã. Santo Agostinho, foi o expoente do racionalismo no período medievo, renovando sob a perspectiva teológica as doutrinas da Academia neoplatônica, todavia, apesar de ser altamente influenciado pelos ideais originados na Antiguidade, o filósofo cristão diferencia-se em relação a posição do sujeito e objeto sobre o debate no tocante a essência do conhecimento. 

    Sinteticamente, Agostinho em sua teoria da iluminação deixa evidente que o sujeito para conhecer é preciso a priori possuir uma relação com Deus, pois, de acordo com o bispo, o Criador deixou nos homens sua assinatura, que seriam verdades universais, imutáveis tal como Platão, porém, contrário a perspectiva platônica quanto a recordação das ideias e do mundo suprassensível, o pensador medievo irá alterar a “localização” do cognoscível. Deus, a verdade, a essência do conhecimento, não está fora, mas dentro do sujeito, como o filósofo expõe no relato de sua conversão ao cristianismo. Essa relação com o divino só seria possível, se o indivíduo vivendo o cristianismo voltasse para si e “abrisse os ouvidos do coração” para a Iluminação do intelecto, o que, na perspectiva agostiniana, seria uma graça do Senhor para que o homem conhecesse através da racionalidade a verdade inteligível habitante em seu interior.  

    Ao manter o papel central da razão e ao colocar que o conhecimento verdadeiro está dentro do sujeito supremo, Agostinho atribui uma perspectiva distinta de Platão em seu racionalismo; estando a verdade no interior da consciência do indivíduo, este assume o papel fundamental para a compreensão das ideias amparadas na beata sapiência de Deus, sendo, portanto, um racionalismo subjetivista, uma vez que o sujeito dispõe de mais relevância para o conhecimento que o objeto em si. 

    Sumariamente, Platão e Santo Agostinho são dois pilares da teoria do conhecimento no geral, mais especificamente, dentre as diferenças já postas em cada autor, o racionalismo. Para exemplificar a diferença entre o racionalismo platônico e agostiniano sob uma ótica antropológica, é apropriado dizer que além da contribuição teórica dos pensadores, ambos, ao propor seus ideais acerca do conhecimento, estabeleciam ao receptor de seus pensamentos um modo de ser no mundo, tanto é que seus respectivos entendimentos sobre o homem possuem uma relação ímpar com o conhecimento; Platão, com a dialética ascendente rumo ao mundo suprassensível assume uma concepção epistemológica racionalista objetivista interligada com o espírito de época na qual o pensador estava inserido, dentre as quais: como uma forma de viver virtuosamente com a pólis marcada pela deturpação de valores (tal como podemos deduzir do julgamento que levou Sócrates a morte), não ceder aos discursos dos sofistas ou até mesmo se tornar um mero retórico que visa tão somente a própria glória, etc. Santo Agostinho de modo semelhante ao pensador grego, concebe seu racionalismo subjetivo no período de consolidação do catolicismo na Europa, de modo que seus pensamentos sobre a epistemologia, também é um modo de ser no mundo entendido com o viés teológico, neste caso, ao ter o intelecto iluminado por Deus, o homem desfrutará de uma plena relação existencial com o divino encontrado nas profundezas da interioridade, vivenciando desse modo a vida cristã. 

    Em poucas palavras, pode-se dizer que uma das principais concepções divergentes sobre a teoria do conhecimento entre Platão e Agostinho, é que o primeiro enquanto busca a verdade fora, o segundo procura-a dentro de si. 





RESUMO: Tratado Da Correção Do Intelecto

    Espinosa no início do Tratado da Correção do Intelecto estabelece, por experiência própria, que o saber que ocorre no dia a dia é fútil e falso, não contendo nenhum bem ou mal exceto quando o indivíduo se deixa afetar pelos saberes usuais da cotidianidade. Insatisfeito tanto ao conhecimento vulgar e incerto quanto à possibilidade um conhecimento de fato seguro, o pensador decide procurar algum saber que proporcione um ânimo tal que mantivesse o conatus elevado e contínuo. 

    A primeira constatação que o filósofo faz em sua busca pelo saber seguro é a tríplice circunstância que permeia a vida da maioria dos homens, a saber, as riquezas, as honras e a concupiscência. Estas últimas distraem a mente do indivíduo de tal maneira que ofusca a percepção e a busca do sumo bem, carecendo da felicidade contínua que, buscada nesses bens é fadada ao fracasso; longe de serem males que são irremediáveis há, portanto, uma redenção: É estritamente necessária uma mudança de vida contumaz afim de alcançar um bem supremo, certo e estável. 

    Após delimitar os males que permeiam a existência da maior parte dos homens, Espinosa vai discorrer sobre seu entendimento acerca do bem verdadeiro. Para o filósofo, há algo que é perfeito, em uma ordem imutável, que escapa ao conhecimento da natureza humana em decorrência de sua falta de firmeza, todavia, incitado pela perfeição que consta na infinita Natureza, o indivíduo caminho rumo ao sumo bem, que tem seu fim em compartilhar com os demais homens o deleite dessa natureza. O conhecimento seguro, portanto, consiste “da união que a mente tem com toda a Natureza” (ESPINOSA, 1983). O prazer contínuo que mantém o conatus em paixões alegres, “fazer com que muitos outros entendam o mesmo que eu, a fim de que o intelecto deles e seu apetite convenham totalmente com o meu intelecto e o meu apetite.” (ESPINOSA, 1983).  

    Não obstante, em primeiro lugar é preciso examinar a si no modo de curar o intelecto e regenerá-lo de modo que não haja falhas na busca pela suma perfeição humana que há de ser adquirida com toda amplitude do ser — motivo tal que, para Espinosa, a ciência que não leva ao aperfeiçoamento do sujeito é vã e fútil. Ademais, é indispensável conhecer a finco Natureza para um reflexo semelhante no indivíduo, assim como se dedicar ao estudo do saber moral, ao processo educativo dos meninos, à medicina e, pôr fim à ciência do movimento. Apesar dos processos mencionados, Espinosa reconhece que a vida não se reduz tão somente a correção do intelecto, de sorte que é inevitável conduzir a existência com boas regras de conduta com o intuito de não fugir do propósito estabelecido na obra em estudo. O filósofo holandês vai elencar ao menos três para o auxílio do leitor, a saber: 


"I. Falar ao alcance do vulgo e fazer tudo o que não traz nenhum impedimento para atingirmos o nosso escopo. Com efeito, disso podemos tirar não pequeno proveito, contanto que nos adaptemos, na medida do possível, à sua capacidade; acresce que desse modo oferecerão16 ouvidos prontos para a verdade.  
II. Dos prazeres somente gozar quanto basta para a consecução da saúde.  

III. Por último, procurar o dinheiro ou outra coisa qualquer só enquanto chega para o sustento da vida e da saúde, imitando os costumes da sociedade que não se opõem a nosso fim." (ESPINOSA, 1983) 


    Posteriormente, Espinosa irá elencar os meios de percepção dos indivíduos a fim de escolher o mais eficiente para conhecer a si próprio, a natureza e para aperfeiçoá-lo visando o melhor para a emenda do intelecto. A percepção superior é a que compreende os fenômenos por sua essência ou pela causa próxima de seu efeito, em outras palavras, a ideia verdadeira é por si inteligível, podendo ser objeto da essência formal angariada de uma essência objetiva distinta, de modo que, podendo ser objeto indefinitivamente, Espinosa, contrariamente à Descartes, estabelece um limite para a razão. Esta última percepção só é possível por meio de uma escalada epistemológica, por meio da correção proposta pelo sistema espinosista, entre outras percepções, elas são respectivamente:  

    A primeira delas e mais inferior, é da opinião, da tradição e dos costumes adquiridos ao longo da existência sem nenhuma base sólida que lhe dê autoridade de um saber seguro; a segunda é denominada como experiência vaga, consistindo em saberes dedutivos por mediante a observação do mundo, por exemplo, a ciência da própria finitude é adquirida pela contestação que outros homens faleceram, e assim se estendendo a quase todos os conhecimentos observáveis adquiridos ao decorrer da vida; a terceira é obtida pela capacidade abstrativa do homem, responsável por gerar conclusões obscuras sem uma noção clara do fato abstraído pela razão que organiza as percepções que envolvem a realidade, tal como o discernimento que o indivíduo possui uma união entre corpo e alma; o último gênero epistemológico, como dito anteriormente, é superior aos demais, razão pela qual é fundamental sua correção afim de que faça um juízo claro acerca de seu conhecimento, isto é, a essência de todas as coisas imanentes a realidade que é a própria Natureza delas. 

    Em suma, Espinosa diferentemente de outros racionalistas contemporâneos de sua época, preza pelo valor imanente e ético do conhecimento. A verdade está no mundo, não fora dele, cabe o intelecto, portanto, ser corrigido através de uma postura ética-moral para alcançar a quid que permeia a realidade visando o esclarecimento não apenas de si, mas também de outros indivíduos para que possam gozar juntos do sumo bem. O fim último da razão e da correção do intelecto é o saber compartilhado “de uma coisa eterna e infinita alimenta a alma de pura alegria, sem qualquer tristeza, o que se deve desejar bastante e procurar com todas as forças.” (ESPINOSA, 1983)




Os Limites da Filosofia Primeira como Ciência e os Enganos da Metafísica

     Em grande parte, no decorrer do itinerário do pensamento filosófico ocidental a metafísica fora considerada ciência — em termos aristotélicos, a supra ciência, superior e antecedente a todos os demais saberes. Não obstante, no seio do período Iluminista, Immanuel Kant põe em xeque a autoridade e tradição da filosofia primeira, sendo um passo significativo rumo ao “fim” definitivo da metafísica estabelecido pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche. A fim de esclarecer os impasses existentes acerca do debate que perpassa o século XVIII até a contemporaneidade sobre a filosofia primeira suas ilusões e limites, nos ateremos sobre o assunto especificamente em três pensadores: Francis Bacon, Immanuel Kant e Karl Popper. 

    O Novum Organum (2014) de Francis Bacon é uma crítica a obra Órganon de Aristóteles, em que o autor do início da era moderna buscou reivindicar a concepção de Aristóteles no campo da ciência. Na concepção de Bacon os limites da metafisica se dá na incapacidade das investigações incertas e os fracos argumentos que se assentam. Sua crítica ao método aristotélico decorre do método de conhecer a natureza que Aristóteles estabelece em sua obra. Por certo, é visível que um dos obstáculos para a metafisica, segundo Bacon, é a incapacidade de garantir o processo da ciência, de demonstrar benefícios válidos e significativos ao conhecimento científico. O método indutivo aristotélico na perspectiva de Bacon é considerado um procedimento por muitas vezes marcado por falhas que impedia compreender as coisas do mundo fenomênico em razão de seus fracos argumentos que se constituíam por meio de uma visão ontológica dualista de mundo sensível e suprassensível, que através da concepção da racionalidade pura dificultava o enfrentamento do problema sobre o que é de fato cognoscível, ou seja, a capacidade de conhecer a realidade, pois, de acordo com o filósofo: “O homem, ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais” (BACON, 2014). 


"Que haja, finalmente, dois métodos, um destinado ao cultivo das ciências e outro destinado à descoberta científica. Aos que preferem o primeiro caminho, seja por impaciência, por injunções da vida civil, seja pela insegurança de suas mentes em compreender e abarcar a outra via (este será, de longe, o caso da maior parte dos homens), a eles auguramos sejam bem-sucedidos no que escolheram e consigam alcançar aquilo que buscam. Mas aqueles dentre os mortais, mais animados e interessados, não no uso presente das descobertas já feitas, mas em ir mais além; que estejam preocupados, não com a vitória sobre os adversários por meio de argumentos, mas na vitória sobre a natureza, pela ação; não em emitir opiniões elegantes e prováveis, mas em conhecer a verdade de forma clara e manifesta; esses, como verdadeiros filhos da ciência, que se juntem a nós, para, deixando para trás os vestíbulos das ciências, por tantos palmilhados sem resultado, penetrarmos em seus recônditos domínios." (BACON, Prefácio, 2014)


    Bacon não renúncia o uso do intelecto, ao contrário, é a racionalidade em conjunto com a experimentação que auxilia o indivíduo para o conhecimento, justamente pelo fato de “nem a mão nua nem o intelecto, deixados a si mesmos, logram muito” (BACON, 2014). Surge aí, uma nova maneira no processo de conhecimento, de acordo com o pensador inglês, o homem tem a capacidade de conhecer os fenômenos, mas que só seria possível através de uma investigação e observação da realidade concreta, para que procedendo deste modo, possa favorecer as descobertas no âmbito das ciências naturais. 

    Apesar da influência de Aristóteles, Bacon irá utilizar um método indutivo como o método de conhecimento da natureza, mas que vem através das manifestações na experimentação, partindo de concepções particulares para tentar alcançar uma regra geral. A relação do entendimento baconiano para a metafisica clássica é que esta é a forma mais fantasiosa de compreender os desempenhos das ciências. Já que a metafisica aristotélica se ocupava com as causas da realidade em um todo, Bacon, em contrapartida, faz uma reflexão sobre a própria filosofia primeira, na qual afirma que ela não tem uma utilidade prática, todavia, para fundamentar sua reflexão traz argumentos decisivos para resultados fundamentados na experiência ou objetividade. Portanto, a experiência seria a validação dos resultados de uma investigação científica, ou seja, como critério da verdade. Com efeito, Bacon não se detém aos elementos ou bases metafisicas, pelo fato de considerar ser algo não prático para a utilização da racionalidade, por conseguinte, resolve buscar fundamentos lógicos e mais objetivos para a ciência, pois a própria ciência pode ter alguns limites, dos quais é necessário escapar, pois se contaminados pela ânsia da verdade indubitável, o processo do conhecimento terá um resultado diferente da conclusão verdadeiramente objetiva. Sua crítica à metafisica em análise, possibilita a valorização dos conceitos elaborados e dos limites do conhecimento racional, no ponto de partida da reflexão filosófica, científica e experimental. 

    Kant, inquieto quanto ao otimismo da razão e seu dogmatismo instauradas pelos metafísicos, vai reforçar seu parecer exposto em sua obra predecessora no seu livro Prolegômenos a Toda Metafísica Futura (1988). A intenção da obra, de acordo com o expoente da Ilustração, é uma recomendação e alerta aos futuros docentes para que não incorram o risco de utilizar sua racionalidade em especulações ideais e fúteis reflexões, para tanto, o pensador vai justificar os fundamentos que tiram a metafísica de seu brilhantismo intelectual. De antemão, Kant já nos primeiros parágrafos de seu escrito evidencia a inconsistência e os devaneios das especulações que se fundamentam além da física, dando ênfase ao fato que, ironicamente, a ciência que diz possuir a verdade nunca obteve uma proposição consensual entre os pensadores, e ao contrário de progredir como outras áreas do conhecimento, corre atrás do vento com sua sabedoria e vanglória. 

    Posteriormente, Kant faz menção ao filósofo britânico David Hume para explicitar um dos enganos que as investigações metafísicas induzem. O pensador escocês utilizando-se de um conceito metafísico de causa e efeito, diferentemente dos intelectuais metafísicos, demonstrou de modo axiomático que é inconcebível que a razão possua algum tipo de conhecimento anterior a experiência. Hume considerava que todo o conhecimento é uma relação assimilativa resultado da percepção sensível, por conseguinte, a razão, incapaz de compreender sobre a conexão que há neste vínculo, se perde nas ilusões imaginativas e determina como conhecimento absoluto o que é apenas uma necessidade subjetiva, consequentemente:


"Daí tirava a conclusão: a razão não tinha a capacidade de pensar tais conexões, mesmo só em geral, porque então os seus conceitos seriam simples ficções e todos os seus conhecimentos pretensamente a priori não eram senão experiências comuns falsamente estampilhadas, o que equivale a dizer que não há, nem pode haver metafísica." (KANT, 1988, p.14-15)


    Após ter contato com o pensamento humiano, Kant desperta das divagações dogmáticas da metafísica e toma um caminho distinto em suas investigações filosóficas. Deixando de lado os conceitos puramente especulativos, o filósofo prussiano começa a estabelecer sua crítica quanto aos devaneios de muitos pensadores que, limitados somente a loquacidade, demonstram-se incapazes de manifestar suas ideias empiricamente sem recorrer a seus “oráculos” e ao senso comum, Kant seguindo uma direção oposta, estabelece sua crítica como meio para obtenção de um conhecimento científico sem escorar-se enganosamente em vãs expectativas, “pois, a Crítica deve, enquanto ciência, formar um todo sistemático e acabado nas suas menores partes, antes de se pensar em fazer aparecer uma metafísica ou mesmo de acerca dela se ter uma longínqua esperança.” (KANT, 1988) 

    Como fica evidente, Kant rejeita as reflexões puramente contemplativas, prezando para um conhecimento válido a investigação empírica dos fenômenos, ou seja, a ciência para o filósofo iluminista se dá através do conteúdo adquirido pela experiência sensível e sua devida justificação, portanto, pela epistemologia. De acordo com o pensador, a experiência é fonte do conhecimento que traz consigo um consenso entre os indivíduos por prevalecer o juízo sintético, enquanto a base do saber metafísico, como seus conceitos são a priori, são inconcebíveis empiricamente, o que não serve de base para a experiência externa, tal como a interna. Além do mais, Kant manifesta que se a filosofia primeira fosse de fato científica: 


"[...] poder-se-ia dizer: aqui está a metafísica, deveis apenas aprendê-la e ela convencer-vos-á irresistível e invariavelmente da sua verdade: esta questão seria então ociosa e apenas restaria a seguinte, a que diria respeito mais a uma prova da nossa perspicácia do que à demonstração da existência da própria coisa, a saber, como ela é possível e como a razão aí procura chegar. Mas, neste caso, a razão humana não foi bem-sucedida." (KANT, 1988, p.31) 


    Desde o iluminismo, os anos consecutivos foram inaptos para dar uma conclusão consistente sobre o papel da ciência, a metafísica seus enganos e limites. Karl Popper, tido como o principal representante da filosofia da ciência no século XX, em seu livro A Lógica da Pesquisa Científica (2008) irá estabelecer os métodos pelas quais um conhecimento pode ser considerado precisamente válido. Popper não foca em específico nas questões da metafísica e sua falseabilidade tal como Kant se propôs a fazer em seus Prolegômenos, no entanto, é perceptível nas entrelinhas de sua obra os motivos determinantes que a área do saber que ultrapassa o domínio físico não é digna de se afirmar como ciência. 

    De acordo com seu pensamento, o indivíduo que se dispõe a fazer ciência, seja teórica ou empírica, dever-se-ia elaborar uma proposição ou uma síntese de proposições e analisar minuciosamente enunciado por enunciado, elaborar hipóteses ou teoremas e colocá-los sobre o crivo técnico da experimentação com os meios que a tecnologia permite. Portanto, a lógica do conhecimento é, para o filósofo epígono dos ideais do Círculo de Viena, “proporcionar uma análise lógica desse procedimento, ou seja, analisar o método das ciências empíricas” (POPPER, 2008). Logo, uma vez que a ciência exige que seus enunciados sejam válidos experimentalmente, a metafísica que se pauta visando a obtenção de um conhecimento certo verdadeiramente indubitável, — fazendo um paralelo com Kant, não progride e seu saber gira envolta de seu círculo vicioso da injustificabilidade — não transpõe o critério de demarcação elaborado pelo pensador austríaco, que se propõe um procedimento para que a ciência chegue a um consenso ou convenção. 


"Contudo, só reconhecerei um sistema como empírico ou científico se ele for passível de comprovação pela experiência. Essas considerações sugerem que deve ser tomado como critério de demarcação, não a verificabilidade, mas a falsidade de um sistema. Em outras palavras, não exigirei que um sistema científico seja suscetível de ser dado como válido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei, porém, que sua forma lógica seja tal que se torne possível validá-lo através de recurso a provas empíricas, em sentido negativo: deve ser possível refutar, pela experiência, um sistema científico empírico." (POPPER, 2008, p. 42) 


    Contudo, mesmo Popper tecendo críticas ao modelo positivista de ciência, o filósofo concorda com neo-positivistas quando estes afirmam que o saber científico não é puramente conceitual, mas sim, um conjunto de enunciados que possam ser válidos através da experiência e de seu critério de demarcação. Desse modo, os conceitos dogmáticos metafísicos tornam-se expressões fictícias e restritas à pura tagarelice “sem sentido” ou “absurdas” por não corresponderem aos preceitos da lógica do conhecimento, visto que o objetivo desta é o saber processual específico da empiria, dito de outra maneira, o caminho que o conhecimento percorre através da experiência atendendo os critérios lógicos da linha de demarcação científica. 

    Como mencionado anteriormente, o debate levantado desde Kant não fora ainda solucionado. A metafísica mesmo diante de inúmeras críticas desde então, utilizando termos heiddegerianos, é a montanha que ainda não foi atravessada; no entanto, esta área do conhecimento foi separada do conhecimento científico graças sua insustentabilidade demonstrada no decorrer do trabalho em questão. A metafísica, não é mais tida como a filosofia primeira, mas é apenas a uma tentativa impositiva de um saber dogmático ilusório que supõe uma verdade que jamais foi e será alcançada. Em suma, mesmo que as especulações além da física não foram ainda superadas, esta constitui hoje um exercício proativo da linguagem e da racionalidade que é limitado apenas por afirmações eloquentes sem fundamento válido e vãs sabedorias. 





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BACON, Francis. Novum Organum. Editora Grupo Acropólis, 2014. 

KANT, Immanuel. Prolegômenos a Toda Metafísica Futura. Lisboa: Editora Edições 70, 1988.

POPPER, Karl R. A Lógica da Pesquisa Científica. 16. Ed. São Paulo: Editora Pensamento Cultrix, 2008

A Proposta Antropológica em Immanuel Kant e a Liberdade

        Kant no seu texto que responde à questão sobre O que é o Esclarecimento, demonstra 
nas entrelinhas sua concepção antropológica, sua relação íntima com a epistemologia, assim 
como fica subjacente os ideais que permearam o ambiente intelectual nos pensadores europeus 
da Ilustração. Primeiramente, é válido destacar que o espírito de época no período em que o 
filósofo prussiano elaborou seus escritos, é profundamente marcada pelo cogito cartesiano, 
pelas transformações sociopolíticas entre Igreja e Estado, a ascensão da burguesia, e por fim o
domínio técnico dos meios de produção; em suma, compreender o clima social vigente no 
século XVIII é fundamental para o entendimento acerca do pensamento sobre o homem em 
Kant e sua intrínseca relação com o saber.
        No Iluminismo, como Lima Vaz aponta, rompe completamente da concepção cristã 
sobre a condição humana: enquanto os cristãos através de seus preceitos teológicos, 
universalizavam o ser humano, tal qual afirma o apóstolo Paulo, unificados pela fé a totalidade 
dos cristãos tornam-se um aos olhos do Cristo; na “era das luzes” ao contrário, a 
individualidade é acentuada por intermédio do Esclarecimento, ou seja, o homem transformase realmente um a partir do momento que passa da Minoridade para Maioridade, dito de outro 
modo, quando desfaz das tiranias (dos sentidos e da religião) que limitam sua capacidade de 
pensar por si e eclode a verdadeira dignidade humana, a liberdade de pensar e agir em 
conformidade com a razão. Longe de ser mero individualismo, a perspectiva Iluminista de Kant 
dá ênfase ao papel fundamental que o “esclarecido” possui na sociedade: 


“O uso público de nossa razão deve a todo momento ser livre, e somente ele 
pode difundir o Esclarecimento entre os homens; [...] entendo por uso público 
de nossa razão o que fazemos enquanto sábios para o conjunto do público que lê.” (KANT, 1783)


        Visto que o indivíduo que alcançou a Maioridade possui a função social de despertar o 
povo para o conhecimento crítico, ou seja, a Liberdade adquirida da emancipação do jugo dos 
tutores que mantém a humanidade refém de suas interpretações, a antropologia kantiana 
assume uma compreensão pragmática do ser humano. No entanto, para o sujeito passar de seu 
estado de Minoridade para o Esclarecimento é necessário trilhar o itinerário da razão, o que, de 
acordo com Kant, é preciso alguns elementos fundamentais, tais como: ser do gênero 
masculino, sair da preguiça confortante de deixar terceirizar o pensamento a outros, vencer a 
covardia para assumir a “coragem de te servir de teu próprio entendimento, tal é, portanto, a
divisa do Esclarecimento.” (KANT, 1783).
        Levando em consideração que o fato de Esclarecer, em suma, é a autonomia do agir e 
pensar no indivíduo, a antropologia desenvolvida por Kant está estritamente conexa com seu 
entendimento de Liberdade. O homem só é livre, quando passa para a condição da Maioridade, 
como já dito, o progresso da Razão que eleva o indivíduo a vencer as falhas que o prendiam na 
externalização do pensar; conhecer é pensar por si, pensar só é Liberdade.





Sobre a Analogia do Ente - Metafísica

A questão da Analogia do Ente em Aristóteles é estruturada sobre o ser, aliás, na sua metafísica buscara tratar o ente enquanto ser e suas determinações. Originava-se então, em séculos posteriores, o pensamento analógico, que foi uma manifestação do racionalismo medieval nas diferentes áreas como a lógica, no qual os intelectuais cristãos estavam preocupados com as plurissignificações; a teologia, que se ocupava sobre os assuntos com a linguagem sobre Deus; e pôr fim a metafísica propriamente dita, com a preocupação em como expressar a realidade das coisas e dos entes para a reintegração do conhecimento. Surge, portanto, uma dificuldade, quando se situa em uma análise lógico-linguística, na busca de uma definição em unificar os diversos significados do pensamento analógico, o desenvolvimento da analogia em três tipos: Os unívocos, na qual é um termo sempre utilizado para o mesmo sentido; os esquivos, na qual é um termo usado com vários significados, mas de forma diferentes e os análogos; um termo, muitos significados unificados, ou seja, usado em sentido relacional.  

O pensamento analógico busca relacionar as partes com o todo (universo), ou seja, seu papel é, de tal forma, de um pensamento como comparação. Evidentemente, o pensamento analógico é aquele baseado em analogia; onde a palavra “Analogia” quer em dizer um raciocínio relacional, ou seja, corresponde em buscar uma semelhança, sem negar, contudo, as diferenças entres esses dois termos comparados, possibilitando não uma conclusão universal, mas uma percepção de unidade entre eles.  

É partir desse pensamento analógico que Aristóteles e São Tomás de Aquino irão buscar entender as coisas da realidade. É diante dessa analogia do ente enquanto “semelhança e diferença” que surgiram alguns discussões e definições do ser. O plano de fundo dos pensamentos sobre o ser em uma visão aristotélicas era os estudos dos diferentes significados do ser como acidente, verdadeiro, potência e ato. Em função do caráter analógico do pensamento aristotélico em sua visão metafísica passa naturalmente ao estudo do ser e do ente, na qual o estagirita afirma que só o ente é (o que é). Logo, as correlações estabelecidas entre esses dois termos é a conexão no que faz capaz de exprimir e explicar as coisas do mundo, portanto de acalmar as dúvidas existenciais. 

Tendo em vista que a analogia faz correlação com a semântica dos termos (um termo, muitos significados), faz-se necessário a compreensão dessa noção no que se refere ao ente. Dessa forma, vemos que a analogia do ente gira em torno do ser e sua determinação; por exemplo: Caneta azul, podendo ser extraído dessa afirmação sobre o ente o ser em si (ser caneta), sua determinação (ser azul), a própria determinação que é o ser em si e ser do outro no acidente. Fica evidente, portanto, que de um único ser pode ser abstraído uma multiplicidade e diversidade de significados unificados. 

A analogia, então, se distingue da univocidade (que se volta para o ser idêntico, descuidando-se das determinações) e da equivocidade (que se volta para as determinações e se descuida do ser), fazendo uma síntese entre identidade do ser e as determinações. 

Desse conceito de analogia do ente temos dois tipos: a de proporcionalidade e a de atribuição. A analogia de atribuição é aquela que está na semelhança absoluta ou das formas; por exemplo: manga pode ser uma fruta ou a manga da camisa; já a analogia da proporcionalidade é a relação de semelhanças de correlações de proposições matemáticas, por exemplo: dois está para quatro assim como três está para seis. 


Há ainda uma divisão dentro dessas analogias: 

A) Analogia de atribuição intrínseca: se dá quando o significado do termo se encontra em todos os sujeitos em que se predica, porém de modo desigual, sendo no primeiro de modo mais perfeito e nos outros de modo derivado. Por exemplo, o espinho que espinha/fura e uma pena que também espinha/fura; ambos têm a mesma capacidade expetante, porém o primeiro de forma mais perfeita e o segundo de forma secundária (analogia de atribuição intrínseca metafórica); ainda que Deus é causa eficiente do mundo e o homem é causa eficiente de uma casa, ambos são causa eficiente de algo (analogia de atribuição intrínseca própria); 

B) Analogia de atribuição extrínseca: se dá quando o significado pelo nome se encontra apenas em um dos analogados e nos demais não se encontra de forma efetiva. Por exemplo, Santo Antônio e a Bíblia Sagrada, nos dois a santidade está presente, porém no primeiro de forma explicita e no segundo de forma implícita; 

C) Analogia de proporcionalidade própria: se dá quando a relação de proporção do nome é própria nos pares do termo. Por exemplo, a vista está para as cores como o ouvido está para o som, ou seja, cada realidade está focada em seu objeto. 

D) Analogia de proporcionalidade imprópria ou metafórica: se dá quando há a utilização de metáfora. Por exemplo, quando se diz “visão” intelectual, faz-se uma analogia a visão corporal, mas a visão não é própria do intelecto. 


A analogia do ente é estritamente racional e inteligível, esta proposição, impossível de ser compreendida pelas vias sensitivas, agregam em si, a unidade e a identidade do ser, assim como a diversidade e multiplicidade que englobam a determinação do ser. No entanto, uma vez que abrangem o uno e o múltiplo, que são respectivamente contrários, em uma só manifestação, poder-se-á cogitar que a expressão metafísica da analogia do ente vá contra os princípios lógicos, a saber, o da não-contradição. Não obstante, a questão a investigar é elucidar a contrariedade presente neste princípio racional afim de que possam ser compatíveis.  

A solução do problema mencionado, é possível a partir do entendimento que o ente é uno levando em consideração, de modo semelhante a cosmologia heraclitiana, a unidade dos contrários que há ao redor da expressão, ou seja, o ente torna-se um no momento que a determinação e o ser são anexados na constituição do ente. Ser e determinação coexistem por si e formam o ente. Com efeito, o impasse real, a ser resolvido é entender a distinção que há no dualismo supracitado de modo que não inferira ou contradiga a unicidade do ente, ademais, dentre as perspectivas possíveis para o esclarecimento são:  


A) Ambos os constituintes não são independentes. Dado que na afirmativa da independência dos elementos, a concepção da unidade do ente seria incognoscível pelo motivo que seriam entes distintos, de modo que a síntese do ser e determinação seria suprimida: a determinação seria não-ser e o ente corresponderia ao ser. Ainda, tal significação abriria margem para interpretações monistas ou pluralistas, que o ente significaria respectivamente, ou o ser ou a determinação; 

B) Os dois elementos não são duas frações do ente, pelas mesmas razões sobreditas na primeira perspectiva; 

C) Determinação e ser são duas bases engendradas e correlacionadas de tal maneira que formam a síntese que é o ente. Dito de outro modo, é completamente ser e determinação, é integralmente uno e múltiplo, é absolutamente separado e conjunto. 


Desse modo, o ente é todo inteiro ser e determinação, a sua essência compreende-se no modo de ser, isto é, ser-determinação. O ente, portanto, é intrinsicamente transcendental, em razão de que a determinação é sui generis ao ser, e o ser é exclusivamente conexo à determinação.  

Compreendido a distinção presente na síntese de ser e determinação, os escolásticos definiram termos próprios para designar os elementos constitutivos do ente: principium quod, aquilo que é; e id quo est, aquilo pelo qual o ente é. Exemplificando, o primeiro termo definiria o indivíduo, o segundo corresponderia ao ser humano, de modo que ambos se complementam tornando-se uno. Como fica evidente, a analogia do ente, equivaleria sendo a unidade na diversidade, podendo ser tanto abstrato, concreto e princípio formador correlacionado. 




A Condição Humana em Blaise Pascal

No livro de Blaise Pascal Os Pensamentos (especialmente nos números 66 ao 72) é descrito a concepção de "ser humano" que está aí subjacente, tal concepção se torna possível tão somente no interior da Idade Moderna.

Nos trechos de Pascal é evidente a contraposição dialética em relação aos seus contemporâneos. Nos fragmentados registrados em seu livro Os Pensamentos, Pascal demonstra como o ser humano é um ser intermediário: nada em relação a infinitude; tudo em relação ao nada. O homem, de acordo com seus fragmentos, só poderia chegar a esta conclusão através do conhecimento de si, para reconhecer o quão grande é o ser humano por sua capacidade de pensar e do universo que o envolve para contemplar-se sua miséria por sua pequenez em relação ao todo e sua mortalidade que faz o homem assemelhar-se ao animal. Nesse sentido, Pascal vai estabelecer uma relação sintética quase dualista em relação ao ser humano: um milagre por sua grandeza e uma maldição por miserabilidade. 

Além do mais, Pascal recomenda que o ser humano considere a si próprio um ser estrangeiro na natureza, contemplando com espanto e admiração sua existência entre o abismo do infinito e do nada. O homem, portanto, caminha no meio termo nos mais amplos aspectos, o pensador francês demonstrará suas convicções a respeito em uma de suas principais obras: a racionalidade humana é capaz apenas de “alcançar o centro das coisas que abraçar-lhes a circunferência”; “limitados em tudo, esse termo médio entre dois extremos encontra-se todas as nossas forças”; “em suma, as coisas extremas são para nós como se não existissem, não estamos dentro de suas proporções: escapam-nos ou lhes-escapamos.” (PASCAL, 1973). O filósofo moderno, ao propor tais ideias sobre o homem, vai no caminho oposto da corrente filosófica que estava sendo consolidada após o declínio da Igreja de Roma. Pascal retira todo o brilhantismo que os pensadores renascentistas colocaram sob a humanidade, que de acordo com eles, o homem que é o ser mais digno e capaz de toda natureza, do mesmo modo contesta os pensadores que beberam da fonte cartesiana e criam na condição verdadeiramente dualista do sujeito, ou seja, partem da metafísica para a empiria, o ser humano só é porque pensa. 

Diferentemente de outros filósofos do início da era moderna que, influenciados pela concepção cartesiana do homem, acreditavam no “poder absoluto” da razão que poderia tudo conhecer, na superioridade que esta tinha em relação à sensibilidade, Blaise Pascal vai no caminho contrário aos “otimistas da razão”. Este afirmava que a razão é limitada, que vive em ilusões graças a inconstância permanente que há nas aparências, a razão, diversamente de Descartes, é objeto de dúvida para Pascal, nas palavras do autor em estudo: 

“Como poderia uma parte conhecer o todo? Mas a parte pode ter, pelo menos, a ambição de conhecer as partes, as quais cabem dentro de suas próprias proporções. Mas as partes do mundo têm todas tais relações e tal encadeamento uma com as outras que considero impossível compreender uma sem alcançar as outras, e sem penetrar o todo.” (PASCAL, 1973). 


Tendo em vista o pensamento de Pascal, tais concepções só foram possíveis ser concebidas no início da Idade Moderna. Após o enfraquecimento teológico-político do catolicismo apostólico romano, a Europa passou por uma ampla transformação: a burguesia começava a ascender; novas vertentes da religião cristã surgiam; o saber, graças as inovações tecnológicas e outras circunstâncias que possibilitaram, saíram dos mosteiros e pessoas que não pertenciam ao clero tinham acesso as obras do pensadores greco-romanos; dentre outros fatos que contribuíram para alterar o zeitgeist teocêntrico católico, em suma, pode-se afirmar que se iniciava um novo ciclo em solo europeu. 

Como já mencionado, Pascal vai se opor as concepções antropológicas contemporâneas à sua época e predecessoras de seu pensamento. Os renascentistas, anteriores à Pascal, maravilhados com as obras e sabedoria dos clássicos, construíram seu pensamento envolta da beleza humana que de tão demasiadamente humana se tornava divina (como fica evidente principalmente nas artes), ademais, o homem para os humanistas, é digno, é transformador e capaz por sua consciência; como Lima Vaz bem define os juízos que permearam o entendimento sobre a humanidade durante a Renascença, esta compreensão é: “[...] uma antropologia de ruptura e transição: ruptura com a imagem cristão-medieval do homem e transição para a imagem racionalista que dominará os séculos XVII e XVIII.” (LIMA VAZ, 1998, p.81). Já quanto aos seus contemporâneos, marcados pela concepção antropocêntrica renascentista e otimistas quanto a maestria da racionalidade, refinaram o entendimento dos pensadores humanistas, e acabaram por conceituar o homem sendo o que é graças sua capacidade pensante que duvida, na formulação cartesiana de Descartes, res cogitans. O racionalismo de inspiração cartesiana e a descobertas científicas ocorridas nesse período transformara em grande medida o pensamento filosófico moderno, influenciando vários pensadores modernos (como Hobbes, Locke, Espinosa, etc.) e que desaguara no Iluminismo.

Portanto, como fica evidente no decorrer trajetória do pensamento filosófico Ocidental, os fatos supracitados que envolviam o ambiente europeu na época que Pascal elaborou seus escritos, possibilitaram que o pensador francês formulasse sua filosofia e a condição que o homem possui. Contrapondo-se ao otimismo da razão e a exaltação da humanidade em pauta nesse momento histórico, Pascal se tornara um filósofo com um pensamento singular do início da Idade Moderna.







A Relação entre Ciência e Matéria em Aristóteles

Aristóteles, insatisfeito com a explicação de seu mestre, Platão, acerca da participação das coisas materiais em relação as formas suprassensíveis, dedicou algumas considerações sobre o seu método em seu livro Física I-II, nesta obra buscou desenvolver seus estudos sobre as questões das causas últimas e um novo tipo de saber acerca da natureza. Tendo como objeto de estudo o “ser”, buscava compreender tudo o que existe e todas as formas de manifestações específicas do ser. 

Nesse sentido, difere fundamentalmente das explicações sobre a investigação científica de sua época. A sua discussão acerca dos princípios e das causas abordará uma relação de como as coisas são, como elas se organizam além da existência material do mundo. Dessa forma, refletirá sobre a função das ciências na investigação dos princípios, as causas e natureza do ser. 

De forma sistemática Aristóteles irá buscar traçar um ponto de partida de toda investigação, que é a apreensão do conhecimento, no qual é dado pelo mais cognoscível a nós, ou seja, o conhecimento deve partir da manifestação de algo fenomênico, aquilo que nos aparece, assim, percorrendo ao que é mais cognoscível por natureza, esse procedimento de investigação constitui de forma constante chegar até que o objeto seja “conhecido por si mesmo”, isto é, por sua própria natureza, sua essência. Desse modo: 

[192b 8] entre os entes, uns são por natureza, outros são por outras causas; por natureza são os animais e suas partes, bem como as plantas e os corpos simples, isto é, terra, fogo, ar e água (de fato, dizemos que essas e tais coisas são por natureza), e todos eles se manifestam diferentes em comparação com os que não se constituem por natureza, pois cada um deles tem em si mesmo princípio de movimento e repouso, [...] pois a natureza é certo princípio ou causa pela qual aquilo em que primeiramente se encontra se move ou repousa em si mesmo e não por concomitância; 
[192b 32] Natureza é isso que foi dito; por sua vez, tem natureza tudo quanto tem tal princípio. Todas essas coisas são substância, pois são um subjacente, e a natureza sempre reside num subjacente. São “conforme à natureza” tais coisas e tudo que lhes pertence devido a elas mesmas — por exemplo, para o fogo, locomover-se para o alto: de fato, isso não é natureza, nem tem natureza, mas é por natureza e conforme à natureza. 

Nesse sentido, para seguir o método de investigação proposto pelo filósofo estagirita, é preciso ter o conhecimento estrito do objeto em exame, que inclui compreender suas causas, em outras palavras, é preciso passar das noções vagas e mutáveis do próprio ser e tentar compreender o que é mais essencial, dessa forma, esse processo passa pela discussão das opiniões (dóxa), ou seja, crenças, para alcançar um conhecimento epistêmico, verdadeiro ou até mesmo definições absolutas e imutáveis. 

[184a 10] Dado que, em todos os estudos nos quais há princípios (ou causas, ou elementos), sabemos (isto é, conhecemos cientificamente) quando reconhecemos estes últimos (pois julgamos compreender cada coisa quando reconhecemos suas causas primeiras e seus primeiros princípios, bem como seus elementos), evidentemente devemos, de início, tentar delimitar também o que concerne aos princípios da ciência da natureza. 
[184a 16] Tal percurso naturalmente vai desde o mais cognoscível e mais claro para nós em direção ao mais claro e mais cognoscível por natureza, pois são as mesmas coisas que são cognoscíveis para nós e cognoscíveis sem mais. Por isso, é necessário, desse modo, proceder das coisas que, apesar de serem menos claras por natureza, são mais claras para nós, em direção às mais claras e mais cognoscíveis por natureza.
 
A noção de natureza em Aristóteles implica basicamente na noção das causas materiais e formais, no qual ele sustentará sua seguinte afirmação: “Todas as coisas particulares da natureza têm sua forma e são compostas de matéria”. Por conseguinte, diante dessa observação minuciosa da natureza, dentro de uma perspectiva hilemorfista, que, segundo Aristóteles, vai dizer que ser seres corpóreos são compostos por matéria (pura potencialidade), ou seja, a matéria de uma cama, por exemplo, pode ser madeira, no qual a matéria é um princípio indeterminado do ser, porém esta tem a possibilidade de se moldar em qualquer forma, está em constante movimento e os seres corpóreos são constituído de forma, ou seja, é aquilo que faz o ente ser o que é, no qual a forma é princípio determinado do ser em ato. Nessa perspectiva aristotélica, podemos dizer a forma é imaterial e é o que determina o modo de ser da matéria, ou seja, a substância seria o constituinte metafísico que compõe as coisas fenomênicas, as formas e as características específicas de cada coisa. A natureza do ser corresponde as condições de devir e permanência, tudo o que existe faz uma passagem de potência em ato, a realidade muda, por isso, todas as coisas naturais são atos, isto é, a própria existência do ser e potência, ou seja, o que pode vir a ser, desse modo, sendo a matéria sempre é a mesma, o que muda é a forma e os acidentais. Elas estão sempre unidas, quando a matéria é concebida, ela já possui forma. Contrariamente, ela sem forma não pode ser concebida por meio da sensibilidade, porque ainda não é. A partir daí que, uma vez que a própria matéria está contida de forma, a realidade empírica, se tornará para Aristóteles um campo de estudo. 

[193a 28] Assim, de certa maneira, denomina-se natureza a primeira matéria que subjaz a cada um dos que possuem em si mesmos princípio de movimento ou mudança; mas, de outra maneira, denomina-se natureza a configuração e a forma segundo a definição. De fato, assim como se denomina “técnica” aquilo que é conforme à técnica e que é artificial, do mesmo modo também se de nomina “natureza” aquilo que é natural e conforme à natureza. Naquele caso, quando algo é cama apenas em potência, mas ainda não tem a forma da cama, ainda não dizemos que se tem conforme à técnica, nem que há técnica, tampouco no caso dos que se constituem por natureza: a carne ou o osso em potência não têm ainda sua natureza própria, nem são por natureza, antes de assumir a forma, a que é conforme o enunciado pelo qual dizemos, ao defini-los, o que é a carne ou o osso. 
[193b 3] Por conseguinte, de outra maneira, a natureza dos que possuem em si mesmos princípio de movimento é a configuração e a forma, que não é separável a não ser em definição (o composto de ambos, por sua vez, não é natureza, mas sim por natureza — por exemplo, homem). 
[193b 6] E esta — a forma — é natureza mais do que a matéria, pois cada coisa encontra sua denominação quando é efetivamente, mais do que quando é em potência. 
[193b 8] Além disso, um homem provém de um homem, mas uma cama não provém de uma cama: por isso, dizem que sua natureza não é a figura, mas a madeira, porque, se algo brotasse, surgiria não uma cama, mas madeira. Mas, então, se isso é técnica, também a forma é natureza, pois é de homem que provém um homem. 
[193b 12] Além disso, a natureza tomada como vir a ser é processo em direção à natureza. 

A ciência aristotélica começa pela observação da realidade por nossos sentidos, isto é, o conhecimento deve se a partir da realidade sensível, na constatação dos seres concretos, visando atingir a sua essência. Ao observar a matéria e as formas, o indivíduo pesquisador irá compreender que o inteligível está nas próprias coisas e pode ser conhecido através princípios e causas cognoscíveis. Portanto, o inteligível e o sensível existem unidos nas coisas. Desse modo, o discípulo de Platão estabelece condições seguras para admissão de um pensamento, de uma investigação como ciência.
 
Aristóteles vai deixando para atrás o racionalismo de seu mestre ateniense, estabelecendo noções acerca da realidade empírica. É diante da investigação cientifica metódica da natureza, que o conhecimento obtido pelo intelecto vem mediante das observações das examinadas. O filósofo, diferentemente do fundador da Academia de Atenas, salientou que nada existiria no intelecto que não tivesse sido antes experimentado pelos sentidos. É nesse processo indutivo que realizará a passagem do conhecimento desde os particulares aos universais. Nessa tarefa de investigar cientificamente o estudioso (embora os princípios de cada investigação sejam específicos de cada ser), ele é impelido a buscar conhecer em sentido mais preciso, propiciando conhecimentos seguros que irá garantir o estabelecimento de um saber essencial do objeto em investigação. A ciência aristotélica, especificamente em suas definições é indutiva, no que é dado pela fonte de conhecimento (a experiência) partindo de uma observação fiel da natureza e em direção ao conhecimento de suas causas e princípios. Por uma análise dos aspectos formais da ciência, na busca de discernir as partes implícitas investiga os diversos sentidos e traços dos processos indutivos. 

Por fim, cabe à física aristotélica a tarefa de delimitar princípios que podem ser conhecidos. Antes de ser uma disciplina científica, a Física de Aristóteles demonstra que por meio de uma análise minuciosa e racional, proporciona condições de conhecimento das ciências da natureza. Assim, no decorrer de sua obra nada mais indica senão a pluralidade de aspectos pelos quais podemos descrever o conhecimento científico: trata-se, portanto de um conhecimento capaz de explicar o porquê, por conhecer causas, princípios ou elementos.




A Relação Entre Ciência e Realidade em Platão

Para Platão, não há ciência sem o uso da dialética. A ascensão dialética é a base de seu dualismo e de seu entendimento sobre o que é o conhecimento científico. O filósofo, influenciado pelos pensadores eleatas, identificara uma clara distinção entre o permanente e o transitório, afirmando a superioridade do primeiro em relação ao segundo. De acordo com seu dualismo, Platão concebida o mundo fenomênico como uma cópia imperfeita do mundo suprassensível, e uma vez que os objetos materiais estão sujeitos ao devir, por si só não possui nenhum valor científico. No entanto, a realidade sensível, ao contrário de ser meramente desprezada, possuía um grau de valor a partir do momento que esta leva o indivíduo a transformar a materialidade em conceitos e noções. 


O filósofo ateniense nos seus diálogos, em especial na República, no Fédon e no O Sofista, vai discorrer com seus interlocutores como de fato pode se fazer ciência. Para compreender o que Platão concebe como ciência, é imprescindível ter o entendimento de como ocorre a ascensão dialética e a divisão que o mesmo faz sobre a realidade empírica e inteligível. O fundador da primeira Academia grega acreditava ser essencial constatar a superioridade às Ideias sobre os objetos sensíveis justamente pelo fato que a sensibilidade está em constante mudança, enquanto as Ideias, habitantes do mundo suprassensível, permaneceriam imutáveis e, portanto, esta deveria ser o objeto de uma investigação segura, sem estar correndo o risco que deixar cair-se no engano ocasionado pelas sensações. 


Estrangeiro — Então, quem for capaz de distinguir uma idéia única numa multidão de idéias independentes, ou um sem-número de idéias diferentes entre si, porém abrangidas por outra mais ampla, e, de novo, uma idéia apenas que se estende por muitas outras e todas elas ligadas a uma unidade, e também muitas inteiramente isoladas ou separadas: eis o que se chama a arte de distinguir os gêneros, conforme a capacidade de se combinarem ou de não combinarem. 
Teeteto — Perfeitamente. 
Estrangeiro — Porém tenho certeza de que não atribuirás essa capacidade dialética senão a quem souber filosofar com pureza e justiça. 
Teeteto — Como atribuí-la a mais alguém? 
Estrangeiro — O filósofo, se bem o procurarmos, só nesta região é que poderemos encontrá-lo, agora e no futuro, conquanto não seja fácil distingui-lo. O sofista também; mas no seu caso a dificuldade é de outra espécie. 


A alegoria da caverna, retratada na República, representa as etapas do processo dialético rumo ao conhecimento verdadeiro. Como já foi dito, Platão distingue dois tipos de saberes, o sensível e o inteligível, que se subdividem: 

• As sombras: Aparência sensível dos objetos;

• As marionetes: Representação própria dos objetos empíricos; 

• O muro: O limiar que separa os dois tipos de conhecimento; 

• O exterior da caverna: A realidade das ideas; 

• O sol: Suprema ideia do bem. 


Platão, através da narrativa do mito da caverna, demonstra que as coisas do mundo sensível são apenas ilusões, e que para contemplar as Ideias só é possível através da reflexão, do raciocínio, do pensamento. Em suma, Platão demonstra a passagem do conhecimento meramente opinativo (dóxa) para o conhecimento científico (epistéme) que só seria alcançado mediante a dialética que engloba tanto o saber matemático quanto o filosófico. Tendo em vista que o conhecimento científico só é alcançado através da dialética, o filósofo clássico, é persistente em suas críticas ao modelo educacional sofístico que, de acordo com seu pensamento, corrompia toda a sociedade grega, dado que os sofistas ensinavam sem o compromisso com a verdade, baseados apenas na mera opinião, possuíam a capacidade de lecionar a respeito de tudo (desde que recebessem uma remuneração financeira proporcional ao assunto que pregavam saber.).


Estrangeiro — [...] Destaquemos, então, da arte de se parar a de purificar; da de purificar, a parte que se relaciona com a alma; desta a do ensino, e da do ensino a arte da educação. Na arte da educação, conforme já vimos de relance, a refutação das vãs ostentações de sabedoria nada mais é do que a sofística de nobre nascimento. 


Os filósofos, diferentemente de meros oradores persuasivos, ao ascender dialeticamente, contemplavam a essência de todo o conhecimento, a verdade absoluta. Desse modo, através da ótica dualista platônica, o ensino tem como objetivo buscar e revelar a unidade na multiplicidade no interior da argumentação esforçando-se racionalmente, exigindo critérios argumentativos fidedignos rumo ao conhecimento verdadeiro, sem o intuito de convencer o interlocutor de determinado ponto de vista, mas que ambos, o orador e o ouvinte, possam juntos contemplar as Ideias. 


Os sofistas visavam apenas a polêmica, a remuneração financeira, e a persuasão dos ouvintes, levando até as últimas consequências o domínio da linguagem. Estes utilizavam o conhecimento apenas com fim de ganhar algo em troca, sem o menor interesse em informar os ouvintes, de maneira que convenciam seus interlocutores através de um discurso encantador sem zelar propriamente com o conteúdo no interior da exposição. Platão, em seu diálogo O Sofista, designará o modo no qual é possível perceber quando o orador tem o compromisso com a verdade ou não: 


Estrangeiro — Porém da arte com base no salário, a modalidade que se manifesta nas conversas, com o simples fito de agradar, e que só usa o prazer como isca, sem nada mais exigir para sua subsistência, acho que todos nós concordaríamos em qualificá-la como aduladora ou simplesmente arte recreativa.
Teeteto — Sem dúvida nenhuma. 
Estrangeiro — E a modalidade que promete ensinar a virtude por meio da conversação e que se faz pagar em espécie, não merecerá, como gênero à parte, denominação especial? 
Teeteto — Como não!
Estrangeiro — E que nome há de ser? Não te disporás a achá-lo? 
Teeteto — E muito fácil. Acho que encontramos o sofista. Designando-o desse modo, penso atribuir-lhe o nome mais acertado. 


Devido à adulação que os sofistas utilizavam em seus discursos, estes não se comprometiam com a ética envolta da retórica e comunicavam somente ilusões, enquanto a verdadeira retórica, a dialética que ascendia ao mundo suprassensível, contemplava o sumo-bem, o conhecimento científico de todas as manifestações existentes na realidade fenomênica, permitindo, desse modo, que a parte racional do ser ordene a alma. Isto, com efeito, só poderia ser alcançado pelo filósofo rompendo com os laços que o prendem a sensibilidade, enquanto os sofistas, presos “nas trevas do não-ser”, jamais conseguiriam conhecer a unidade essencial que envolve a realidade. Como Platão, demonstra no diálogo entre o Estrangeiro e Teeteto, o conhecimento científico é uno: 


Estrangeiro — O conhecimento, também, é uno, porém são separadas as partes relacionadas com determinados objetos e recebem denominações específicas. Daí haver tanta variedade de artes e de conhecimentos. 
Teeteto — Perfeitamente. 
Estrangeiro — O mesmo se passa com a natureza do outro, conquanto, seja apenas uma. 


Resumidamente, para Platão a ciência é a dialética, e o filósofo sendo dialético é cientista a partir do momento que investiga a natureza das coisas acessando-as por meio da intelecção pura.




Breve Síntese sobre as Ditaduras Militares na América Latina no Século XX

Sobre as Ditaduras Militares na América Latina no Século XX:

Os Principais Fatores. O Papel Estadunidense. Os Debates Políticos e Ideológicos. A Contemporaneidade no Brasil.


    As ditaduras na América Latina se estabeleceram no período em que a ordem internacional sofria pelos enfrentamentos da Guerra Fria que foi responsável pelo desencadeamento de vários conflitos como a disputa entre Estado Unidos e União Soviética. A Guerra Fria estava espalhando o temor pelo rápido avanço do chamado, pela extrema direita, perigo vermelho. As esquerdas espelhavam-se nos regimes socialistas implantados em Cuba, China e União Soviética.

    O temor ao comunismo influenciou a eclosão de uma série de golpes militares na América Latina, seguidos por ditaduras militares de orientação ideológica à direita, com o suposto aval de sucessivos governos dos Estados Unidos da América, que consideravam a América Latina como sua área de influência. Nesse contexto, os Estados Unidos desenvolveram uma série de mecanismos de combate ao expansionismo comunista. Através de golpes de Estado sucessivos gerado pelos interesses do capitalismo norte-americano. Acreditava-se que somente através de administrações fortes, comandadas pelo ímpeto dos militares, estaria garantida a urgente defesa contra a ameaça comunista.

    Na década de 40, o governo Truman começou a espalhar a ideia de uma colaboração de defesa com os países latino-americanos. Tais ideais refletiram na conhecida “Doutrina Truman”, que tinha como objetivo a conter a expansão do comunismo soviético. O tratado de 1948 dava a América Latina aos interesses neocoloniais estadunidenses e aos monopólios do mercado internacional, além de ceder direitos para os Estados Unidos intervir militarmente aos países do continente americano.

    Na América Latina após o término da Segunda Guerra Mundial, os norte-americanos estavam no ápice de sua política imperialista, tentando a todo modo manter seus interesses político-econômicos na região. A expansão soviética no Leste-europeu era um fator preocupante para os estadunidenses, especialmente, com o crescimento da influência e do poderio-bélico do expoente comunista, a preocupação com a expansão de ideais “vermelhos” se tornara global. Com o ideal anticomunista da Guerra Fria, o apoio dos Estados Unidos a regimes militares de direita fora inevitável, no Brasil, na República Dominicana, Nicarágua, Venezuela etc.

    Hoje em dia, os norte-americanos ainda conseguem manter seu monopólio e poder na América Latina, desde a descoberta, passando pela Doutrina Monroe e Truman, os países latino-americanos nunca "andaram" com suas próprias pernas. Infelizmente, o Brasil há séculos está nas garras de Washington, nos dias atuais manipulam completamente o mercado brasileiro, nos fazem dependentes de seus bens industrializados, etc. Os impactos da influência norte-americana em território brasileiro fazem que o país seja submetido a vontades e demandas de um país que está somente visando seus próprios interesses econômicos e estratégicos.




O Conhecimento em René Descartes

 LEITURA CRÍTICA: MEDITAÇÕES SOBRE A FILOSOFIA PRIMEIRA DE DESCARTES



I – PRIMEIRA MEDITAÇÃO:

    Descartes, em sua primeira meditação, começa a discorrer sobre os motivos que o levou a propor os meios no qual o homem pode ter um conhecimento coeso acerca do mundo que o rodeia. 
Todas as coisas que é possível apreender passa antes pelos sentidos, porém é um risco eminente ter como verdadeiro o que é compreendido pelos sentidos, uma vez que a sensibilidade hora ou outra é passível de engano. Apesar deste fato exposto em sua meditação, o filósofo francês afirma que há determinadas coisas que o sensível exprime que são absolutamente verossímeis: por exemplo, o fato que temos membros, estamos em determinado local e outras circunstâncias sensíveis que demonstram que estamos aqui e agora. 

    O impasse que René propõe diante desta situação é que muitas vezes, em sonho, estamos aqui e agora de modo que durante o repouso somos persuadidos a crer que a realidade é o sonho em que vivenciamos. Justamente por isso, é impossível distinguir com clareza se de fato estamos acordados ou dormindo em ilusões, porém explícita o filósofo que os sonhos são meras cópias imaginativas de incrível semelhança com as coisas verdadeiras. Embora nos sonhos, a realidade possui um aspecto “verdadeiro”, há detalhes que mesmo simples e gerais são realmente verdadeiros, pois uma vez reconhecido os princípios em que se assenta alguma imagem, reconhece-se todo o restante que reside no pensamento sejam falsas ou verdadeiras. 

    Assim como as imagens que residem no pensamento são passíveis de dúvida, por sua natureza sensível, as ciências naturais também são já que baseiam seu estudo em coisas sensíveis. Entretanto, já as ciências matemáticas (como aritmética e geometria) por trabalharem com fatos simples e gerais, não se preocupando com a natureza epistemológica do objeto de estudo, possuem em si a veracidade e a indubilidade, pois em vigília ou sono, os números são como são, dois e dois somados são quatro e o triângulo possui três lados; de modo que, de acordo com Descartes, é impossível haver alguma ilusão já que são fatos excepcionalmente verídicos. 

    Adiante, René expõe a crença enraizada em seu espírito de um Deus que existe, pode tudo e o criou. No entanto, Descartes compele sua crença em seu ceticismo, de maneira que irá se perguntar se toda a realidade não “existisse” tal qual ela é, e não passa de um mero ilusionismo criado por Deus (até mesmo as absolutas perfeições matemáticas); porém sendo o Criador sumo bem, o francês afirma que seria inconveniente Deus o criar para enganá-lo sempre. Nesse aspecto, René passa do ponto de vista científico e parte para o metafísico. 

    Optando por emitir questões referentes a existência ou não de Deus, Descartes vai ao cerne que caracterização sistemática da dúvida; para conhecer algo que não seja passível de dúvida é preciso suspender cautelosamente o juízo que apreende as informações, assim como rever as convicções passadas, uma vez que elas foram entendidas através da sensibilidade, todas são passíveis de dúvida. Também o filósofo afirma que não basta apenas reconhecer a necessidade de suspender o juízo, mas aderir com extremo rigor, porque as convicções habituais voltam com frequência e apropriam-se da consciência, elas retornam, mesmo contra a vontade, enquanto não as tomar como verdade. Combatendo as opiniões habituais, por fim, chegar-se-á um equilíbrio, e nenhum ato vicioso desviará do juízo correto do conhecimento das coisas. Ademais, procedendo deste modo não se corre o risco de nenhum perigo ou erro e que não se deve desconfiar excessivamente à desconfiança, pois é necessário se ocupar apenas do conhecimento verdadeiro. 

    No fim de sua primeira meditação, Descartes vai supor um gênio maligno (já que Deus sendo o sumo bem, seria contraditório que enganasse suas criaturas) extremamente hábil e poderoso, que detivesse a capacidade de enganar. Coagindo a crer que toda realidade que nos circunda não é mais das ilusões que o gênio arma para ignorância do verdadeiro saber, chegando a fazer duvidar até mesmo da própria existência. Apesar disso, Descartes afirma que estaremos agarrados ao pensamento, e mesmo se através do pensar seja impossível conhecer verdadeiramente, está ao poder dos homens dar assentimento à essa realidade maquinada pelo gênio do mal, por mais poderoso e inteligentemente ele imponha as ilusões (Desse modo, René estabelece que o ato do pensar provém da liberdade e da vontade e não da sensibilidade e do corpo). Porém essa seria uma tarefa de um contumaz esforço ao modo costumeiro de viver, que hora ou outra levaria a recair nas opiniões antigas e temeria a conhecer verdadeiramente de novo. 

    Assim, tal como Platão e seu mito da caverna, o pensamento cartesiano da dúvida também aponta para uma “conversão” da alma que exige esforço para poder manter-se em vigília e não voltar para as convicções duvidosas habituais.


II – SEGUNDA MEDITAÇÃO:

    Ao início desta meditação, René nos leva a compreender a dialética cartesiana, na qual reflete sobre a dúvida. Segundo ele, o mundo material é passível de dúvida e ao pôr tudo em dúvida buscou alcançar alguma verdade ou até mesmo um conhecimento solido, seguro diante de um conhecimento difuso, turvo, inverto. Descartes dúvida dos sentidos, da imaginação, de todas as memorias, de tudo que ele tinha acessado como informação, por que ele percebia que quando uma informação se fragilizava diante da dúvida significava que ela não era verdadeira. Tudo vemos, sentimos, tocamos, tudo isso pode ser fruto das imagens, não existindo realmente, ele afirma que não há nada de verdadeiro no mundo. 

    Nesta tentativa, Descartes procura construir um pensamento, ou seja, um caminho da verdade que seja capaz de conhecer as coisas em sua verdade. Busca um ponto fixo e indubitável diante de seus questionamentos. É nesta meditação que Descartes procura resolver das dúvidas geradas por ele na primeira meditação. No início ele cita Arquimedes buscando afirmar que há alguma coisa concreta existente, mas logo depois o próprio Descartes vai afirmar que as coisas que observa são falsas, levando a concluir que não há nada certo no mundo, mas é diante dessa reflexão que Descartes irá acreditar de um gênio enganador que o tenta enganar. Nesta meditação, destaca três pontos importantes acerca da natureza do espírito humano. O primeiro ponto é sobre a sua existência, a do “eu existo”, segundo ponto é sobre o ser pensante, de que eu sou coisa pensante e o terceiro ponto, de que a alma é mais simples de conhecer que o corpo e, portanto, é distinta dele. Coloca a seguinte questão: “Não há algum Deus, qualquer que seja o nome com que o chame, que tenho posto em mim esses mesmos pensamentos? ” (DESCARTES, 2004, p.37). Ele, ao se perguntar, obtêm que não há uma existência de Deus, já que ele mesmo pode pensar em si mesmo. Após ter colocado tudo em dúvida na Primeira Meditação e negado a sensibilidade, descobre que ao duvidar ele pensa, logo quem pensa existe, ou seja, eu sou, eu existo. É a primeira certeza que se descobre “pensar, duvido, logo existo’’; portando, é a certeza de que existimos, mas afirma que as coisas não pertencem a sua natureza, mesmo sendo impossível de não as pensar.  Todo processo que ocorre na alma e em seu pensamento não dependente de sua vontade.   
 
    Para Descartes o que eu conheço desse mundo não é o próprio mundo, mas uma representação que é feita de mundo segundo a minha mente. Então, quando mais eu questiono essa dúvida, mais evidente ela se torna na busca de compreender de que é o mundo, ou seja, as verdades existentes.  Se penso em algo sei que existo, ou seja, o “Eu sou” tem a consciência de que existe enquanto pensa, sou um ser pensante, essa é a segunda certeza é a do “eu que pensa”; Descartes mesmo chegando essa conclusão afirma que o ser pensante não conhece com clareza o que ele é. Para Descartes o ser maligno o faz acreditar ou persuadir quanto pensa em algo, fazendo com que esse pensamento seja um critério de certeza. 

    Vimos que Descartes traz consigo uma diferenciação entre o sujeito e objeto. Um sujeito pensante que codifica o objeto, mas que não conhece um objeto como ele realmente é, mas segundo a interpretação e a recombinação  de informações de tradução desse objeto.  Após essa afirmação da existência própria, na qual o “Eu penso” é indubitável e o “Eu sou” é verdadeiro, pois ele existe, busca esclarecer essa segunda certeza, definido o homem como um animal racional, ou seja, ele é essencialmente um ser pensante, desta forma, ele só tem a certeza do seu ser pensante quando o leva a duvidar, trazendo uma visão que refuta toda comparação entre animal e o homem, distingue o próprio ser humano como o ser que pensa, duvida, concebe, etc. 

    Descartes rejeita o corpo, pois afirmava que ele é tudo que pode ser limitado pelo sentido, pois tudo que se pode compreender por meio dele é excluído pela dúvida. Para ele a sensibilidade não é um tipo de conhecimento, esse conhecimento provido de sensações pode enganar o sujeito, na qual ele destaca o exemplo da cera de colmeia, pois uma hora a ver dura, fria e outra em seu estado líquido. 

    É diante dessas imagens corpóreas formadas em seu pensamento e que caem sob os sentidos que o espírito (razão) deve alcançar um tipo de conhecimento separado da sensibilidade e que seja depois capaz de justificá-la. Segundo Descartes, eu devo me contentar, então, com o que provém do intelecto, afim de buscar o que garante tais imagens como verdadeiras que será somente pela inspeção do espírito. Dessa forma, nos leva compreender que, embora temos o gênio maligno que nos leva ao erro pelos nossos juízos, a cera deve ser conhecida em sua verdadeira forma pelo espírito humano, ou seja, por meio da razão. 

    Por outro lado, a terceira certeza é de que é mais fácil conhecer o espírito do que o corpo; se ao menos julgo ver algo -como a cera- não há como eu não existir nesse momento. É evidente que mesmo eu tendo ou não a imagens de cera o meu pensamento estará existindo, por isso é muito mais fácil de conhecer o espírito que o corpo; não necessariamente que seja algo conhecido de forma simples, mas que na ordem das razões é a forma de ter um conhecimento seguro, na veracidade das coisas.


III - TERCEIRA MEDITAÇÃO

    Na terceira meditação, Descartes vai buscar a certeza da existência de Deus, rompendo assim com seu pensamento cético estabelecido na sua primeira meditação, pois para ele não era possível está certo absolutamente de nada.  Nesta meditação, irá evidenciar provas racionais para a existência de Deus. Na sua segunda meditação, conclui que ele sabe que existe e que ele é um ser pensante.

    Descartes acredita estar preso dentro do seu próprio cogito, dentro do seu pensamento, não há nada nesse exato momento no seu itinerário meditativo a não ser a sua própria existência. Então, ele não sabe se há outro gênero, se há outro objeto no universo ou até mesmo a existência de um Deus. É aí que ele busca as provas da existência de Deus, nos mostrando que diante de dúvida que será revelada a existência, mas questiona que não consegue perceber uma outra existência além de si mesmo. É na presença dessa indagação que o próprio Descartes irá entender que há um indício forte existente de um mundo fora dele. Então, traz para si questões: Deus existe? Esse Deus é enganador ou não? Esses dois questionamentos são fundamentais para Descartes buscar a comprovação da existência de Deus, pois se ele não souber dessas duas verdades, não pode saber de mais nada, visto que qualquer coisa que ele pode ter como certo, ou seja, qualquer conhecimento que ele possa adquirir, não poderia ter a certeza se esse pensamento seria verdadeiro ou não, uma vez que há um Deus enganador, esse ser existente poderia ter lhe enganando a respeito das coisas. 

    Percebemos que, para René, ao pensar na existência de Deus, ou seja, se ele existe ou se ele é enganador, não o pode conceber, se não, em um Deus que é em sustância infinita, imutável e criador de todas as coisas. O pensamento de Descartes contido nessa meditação mostra uma prova posteriori da existência de Deus, pois para ele Deus tem todas as perfeições, portanto, esse Deus não pode ser enganador. Vimos que na segunda meditação ele coloca em questão que, ao analisar seu espírito ou inspeção do espírito, pode levá-lo ao erro e que o enganar seria uma falha do caráter, na qual rompe as relações com o divino. Uma vez que ele concebe essa ideia que há um Deus, buscará compreender de onde vem essa ideia, sendo que a ideia é um efeito e para todo efeito tem uma causa, na qual ele entende essa causa como causa eficiente. Descartes irá dizer que de onde o efeito pode tirar sua realidade a não ser de sua causa, ou seja, somente um ser perfeito pode produzir essa ideia, em outra palavra, afirma que somente Deus colocou em mim essa ideia. 

    Enfim, Descartes irá entender que aquilo que tem mais realidade (perfeito) não pode surgir daquilo que é imperfeito (menos realidade). Portanto, quando ele considera todos esses atributos a Deus, fica mais comprovado de que essa ideia de Deus não pode ter vindo dele. Percebemos que mesmo essa ideia de substância provinha de seu pensamento, visto que ele também era substância, ele não teria, contudo, uma ideia de substância infinita, uma vez que essa ideia de Deus infinito, perfeito ultrapassava sua condição, que é a de ser finito. Prova que sendo ele uma substância finita não poderia produzir uma ideia de substância infinita. Deus, a partir a ideia do infinito, poderia conceber em mim verdades de uma realidade mais consistente das coisas a qual eu concebo. Descartes também irá afirmar que atributo para a perfeição (ideia de Deus perfeito), será necessário que ele exista e que todas as coisas que posso afirmar como verdadeira, provém da razão, ou seja, Deus sendo razão. Dessa forma, esse reflexo de sua capacidade de pensar as coisas seria, em mim, pensar na forma que elas são.


IV – QUARTA MEDITAÇÃO:

    Nesta meditação, é retomada a regra geral da verdade, onde Descartes discorre que toda ideia é verdadeira quando é distinta e clara; dessa forma, para não cair no erro, os juízos devem ser feitos com essas ideias, descartando as ideias confusas. Além disso, ele expõe o papel fundamental de Deus na “construção” do conhecimento, sendo esse necessário na iluminação da verdade dos juízos humanos.  Nesse sentido, provada a existência de Deus, afirma que a ideia desse ser completo e independente não pode ser enganadora e que a capacidade de julgar foi concedida pelo mesmo e os erros que cometemos –que não provém de Deus- são frutos de conhecimentos que deveríamos ter. 

    No que concerne à natureza do erro, o filósofo francês analisa sobre duas visões: a primeira em torno de uma perspectiva epistemológica (onde ele faz a análise por meio da substância pensante que, sendo dada por Deus, não é passível de erro) e a segunda em torno da metafísica (atentando-se na existência de Deus e no seu papel no conhecimento das coisas verdadeiras). 

    Na primeira visão, ele faz a análise por meio de duas faculdades humanas: o entendimento e a vontade. Para o filósofo, pelo entendimento apenas percebo, concebo ideias, mas esse entendimento é limitado e finito, não podendo conceber todas as ideias. Mesmo assim o erro não se encontra nele, pois mesmo havendo essa limitação ele cumpre a função para qual Deus o criou: conceber ideias. A vontade, por sua vez, é o livre arbítrio e é infinita, uma vez que tenho a livre escolha do sim ou do não; nela oscilo em minhas capacidades nas coisas que entendo e não entendo, o que conduz ao erro (o mau uso do meu livre arbítrio que me faz errar).

    Já na visão metafísica, Descartes não discorre apenas sobre a ideia positiva de Deus, mas também sobre a ideia negativa do nada, estando o ser humano entre Deus e o nada, entre “o ser e o não-ser”. Isso não significa que os erros provêm de Deus, muito pelo contrário, erramos por estarmos entre Deus e o nada, por participarmos do nada. Dessa forma, os erros seriam uma espécie de privação de um conhecimento que deveríamos ter e não o temos por estarmos inseridos nessa realidade (entre o ser e o não-ser), privação essa que não provém de Deus, mas que pode ser entendida –se utilizarmos Deus como pressuposto- como uma negação.

    Unindo as duas visões, pode-se concluir que o entendimento que é iluminado e dado por Deus e, mesmo sendo limitado (o que para Descartes faz parte da natureza humana), não é a origem do erro; o que não pode ser dito da vontade que, no seu livre arbítrio, fica suspensa pela ação humana, sendo passível de erro e causadora da privação. 

    Em suma, Deus não é o causador dos erros, uma vez que é perfeito, completo e independente, mas provém da privação do conhecimento que deveríamos ter, influenciado por um entendimento finito e uma vontade infinita.


V – CONSIDERAÇÕES GERAIS:

René Descartes, em sua obra, objetivava encontrar fundamentos sólidos para o conhecimento; onde, ao decorrer das quatro meditações, parece-nos que ele estabelece etapas no seu pensamento, até chegar a uma conclusão. Dessa maneira, a rejeição a tudo o que é duvidoso é o ponto de partida de seus escritos, onde ele elabora uma reconstrução do pensamento com base na certeza, sendo a nossa própria existência a primeira certeza por ele encontrada, como também elabora um discurso que dá legitimidade a existência de Deus. 
O “Discurso sobre o método”, onde ele abre espaço ao racionalismo dedutivo de inspiração matemática, também faz parte da elaboração de seu pensamento sobre onde deve repousar os fundamentos do conhecimento, principalmente o conhecimento científico (empreendido por meio da dúvida cartesiana). 
Dessa forma, ela parte para uma busca da verdade que repousa no conhecimento da natureza do espírito humano e no conhecimento de Deus, onde ele tenta entender as distintas ideias, até mesmo as confusas e qual seria a origem do erro. É na limitação humana que encontramos a perfeição do mundo e os traços da perfeição divina, sendo ela necessária para empreendermos o conhecimento de Deus. Sendo assim, ele conclui que o erro não provém de Deus, uma vez que ele é perfeito, mas vem da liberdade (vontade) –que somada ao conhecimento limitado do homem (entendimento) - o conduz ao erro. 





RESUMO DE PSICOLOGIA SOCIAL: CONFORMIDADE E OBEDIÊNCIA

  1. Duas formas em que ocorre a conformidade segundo David G. Myers: A conformidade manifesta-se de inúmeras maneiras. David G. Myers, no...