LEITURA CRÍTICA: MEDITAÇÕES SOBRE A FILOSOFIA PRIMEIRA DE DESCARTES
I – PRIMEIRA MEDITAÇÃO:
Descartes, em sua primeira meditação, começa a discorrer sobre os motivos que o levou a propor os meios no qual o homem pode ter um conhecimento coeso acerca do mundo que o rodeia.
Todas as coisas que é possível apreender passa antes pelos sentidos, porém é um risco eminente ter como verdadeiro o que é compreendido pelos sentidos, uma vez que a sensibilidade hora ou outra é passível de engano. Apesar deste fato exposto em sua meditação, o filósofo francês afirma que há determinadas coisas que o sensível exprime que são absolutamente verossímeis: por exemplo, o fato que temos membros, estamos em determinado local e outras circunstâncias sensíveis que demonstram que estamos aqui e agora.
O impasse que René propõe diante desta situação é que muitas vezes, em sonho, estamos aqui e agora de modo que durante o repouso somos persuadidos a crer que a realidade é o sonho em que vivenciamos. Justamente por isso, é impossível distinguir com clareza se de fato estamos acordados ou dormindo em ilusões, porém explícita o filósofo que os sonhos são meras cópias imaginativas de incrível semelhança com as coisas verdadeiras. Embora nos sonhos, a realidade possui um aspecto “verdadeiro”, há detalhes que mesmo simples e gerais são realmente verdadeiros, pois uma vez reconhecido os princípios em que se assenta alguma imagem, reconhece-se todo o restante que reside no pensamento sejam falsas ou verdadeiras.
Assim como as imagens que residem no pensamento são passíveis de dúvida, por sua natureza sensível, as ciências naturais também são já que baseiam seu estudo em coisas sensíveis. Entretanto, já as ciências matemáticas (como aritmética e geometria) por trabalharem com fatos simples e gerais, não se preocupando com a natureza epistemológica do objeto de estudo, possuem em si a veracidade e a indubilidade, pois em vigília ou sono, os números são como são, dois e dois somados são quatro e o triângulo possui três lados; de modo que, de acordo com Descartes, é impossível haver alguma ilusão já que são fatos excepcionalmente verídicos.
Adiante, René expõe a crença enraizada em seu espírito de um Deus que existe, pode tudo e o criou. No entanto, Descartes compele sua crença em seu ceticismo, de maneira que irá se perguntar se toda a realidade não “existisse” tal qual ela é, e não passa de um mero ilusionismo criado por Deus (até mesmo as absolutas perfeições matemáticas); porém sendo o Criador sumo bem, o francês afirma que seria inconveniente Deus o criar para enganá-lo sempre. Nesse aspecto, René passa do ponto de vista científico e parte para o metafísico.
Optando por emitir questões referentes a existência ou não de Deus, Descartes vai ao cerne que caracterização sistemática da dúvida; para conhecer algo que não seja passível de dúvida é preciso suspender cautelosamente o juízo que apreende as informações, assim como rever as convicções passadas, uma vez que elas foram entendidas através da sensibilidade, todas são passíveis de dúvida. Também o filósofo afirma que não basta apenas reconhecer a necessidade de suspender o juízo, mas aderir com extremo rigor, porque as convicções habituais voltam com frequência e apropriam-se da consciência, elas retornam, mesmo contra a vontade, enquanto não as tomar como verdade. Combatendo as opiniões habituais, por fim, chegar-se-á um equilíbrio, e nenhum ato vicioso desviará do juízo correto do conhecimento das coisas. Ademais, procedendo deste modo não se corre o risco de nenhum perigo ou erro e que não se deve desconfiar excessivamente à desconfiança, pois é necessário se ocupar apenas do conhecimento verdadeiro.
No fim de sua primeira meditação, Descartes vai supor um gênio maligno (já que Deus sendo o sumo bem, seria contraditório que enganasse suas criaturas) extremamente hábil e poderoso, que detivesse a capacidade de enganar. Coagindo a crer que toda realidade que nos circunda não é mais das ilusões que o gênio arma para ignorância do verdadeiro saber, chegando a fazer duvidar até mesmo da própria existência. Apesar disso, Descartes afirma que estaremos agarrados ao pensamento, e mesmo se através do pensar seja impossível conhecer verdadeiramente, está ao poder dos homens dar assentimento à essa realidade maquinada pelo gênio do mal, por mais poderoso e inteligentemente ele imponha as ilusões (Desse modo, René estabelece que o ato do pensar provém da liberdade e da vontade e não da sensibilidade e do corpo). Porém essa seria uma tarefa de um contumaz esforço ao modo costumeiro de viver, que hora ou outra levaria a recair nas opiniões antigas e temeria a conhecer verdadeiramente de novo.
Assim, tal como Platão e seu mito da caverna, o pensamento cartesiano da dúvida também aponta para uma “conversão” da alma que exige esforço para poder manter-se em vigília e não voltar para as convicções duvidosas habituais.
II – SEGUNDA MEDITAÇÃO:
Ao início desta meditação, René nos leva a compreender a dialética cartesiana, na qual reflete sobre a dúvida. Segundo ele, o mundo material é passível de dúvida e ao pôr tudo em dúvida buscou alcançar alguma verdade ou até mesmo um conhecimento solido, seguro diante de um conhecimento difuso, turvo, inverto. Descartes dúvida dos sentidos, da imaginação, de todas as memorias, de tudo que ele tinha acessado como informação, por que ele percebia que quando uma informação se fragilizava diante da dúvida significava que ela não era verdadeira. Tudo vemos, sentimos, tocamos, tudo isso pode ser fruto das imagens, não existindo realmente, ele afirma que não há nada de verdadeiro no mundo.
Nesta tentativa, Descartes procura construir um pensamento, ou seja, um caminho da verdade que seja capaz de conhecer as coisas em sua verdade. Busca um ponto fixo e indubitável diante de seus questionamentos. É nesta meditação que Descartes procura resolver das dúvidas geradas por ele na primeira meditação. No início ele cita Arquimedes buscando afirmar que há alguma coisa concreta existente, mas logo depois o próprio Descartes vai afirmar que as coisas que observa são falsas, levando a concluir que não há nada certo no mundo, mas é diante dessa reflexão que Descartes irá acreditar de um gênio enganador que o tenta enganar. Nesta meditação, destaca três pontos importantes acerca da natureza do espírito humano. O primeiro ponto é sobre a sua existência, a do “eu existo”, segundo ponto é sobre o ser pensante, de que eu sou coisa pensante e o terceiro ponto, de que a alma é mais simples de conhecer que o corpo e, portanto, é distinta dele. Coloca a seguinte questão: “Não há algum Deus, qualquer que seja o nome com que o chame, que tenho posto em mim esses mesmos pensamentos? ” (DESCARTES, 2004, p.37). Ele, ao se perguntar, obtêm que não há uma existência de Deus, já que ele mesmo pode pensar em si mesmo. Após ter colocado tudo em dúvida na Primeira Meditação e negado a sensibilidade, descobre que ao duvidar ele pensa, logo quem pensa existe, ou seja, eu sou, eu existo. É a primeira certeza que se descobre “pensar, duvido, logo existo’’; portando, é a certeza de que existimos, mas afirma que as coisas não pertencem a sua natureza, mesmo sendo impossível de não as pensar. Todo processo que ocorre na alma e em seu pensamento não dependente de sua vontade.
Para Descartes o que eu conheço desse mundo não é o próprio mundo, mas uma representação que é feita de mundo segundo a minha mente. Então, quando mais eu questiono essa dúvida, mais evidente ela se torna na busca de compreender de que é o mundo, ou seja, as verdades existentes. Se penso em algo sei que existo, ou seja, o “Eu sou” tem a consciência de que existe enquanto pensa, sou um ser pensante, essa é a segunda certeza é a do “eu que pensa”; Descartes mesmo chegando essa conclusão afirma que o ser pensante não conhece com clareza o que ele é. Para Descartes o ser maligno o faz acreditar ou persuadir quanto pensa em algo, fazendo com que esse pensamento seja um critério de certeza.
Vimos que Descartes traz consigo uma diferenciação entre o sujeito e objeto. Um sujeito pensante que codifica o objeto, mas que não conhece um objeto como ele realmente é, mas segundo a interpretação e a recombinação de informações de tradução desse objeto. Após essa afirmação da existência própria, na qual o “Eu penso” é indubitável e o “Eu sou” é verdadeiro, pois ele existe, busca esclarecer essa segunda certeza, definido o homem como um animal racional, ou seja, ele é essencialmente um ser pensante, desta forma, ele só tem a certeza do seu ser pensante quando o leva a duvidar, trazendo uma visão que refuta toda comparação entre animal e o homem, distingue o próprio ser humano como o ser que pensa, duvida, concebe, etc.
Descartes rejeita o corpo, pois afirmava que ele é tudo que pode ser limitado pelo sentido, pois tudo que se pode compreender por meio dele é excluído pela dúvida. Para ele a sensibilidade não é um tipo de conhecimento, esse conhecimento provido de sensações pode enganar o sujeito, na qual ele destaca o exemplo da cera de colmeia, pois uma hora a ver dura, fria e outra em seu estado líquido.
É diante dessas imagens corpóreas formadas em seu pensamento e que caem sob os sentidos que o espírito (razão) deve alcançar um tipo de conhecimento separado da sensibilidade e que seja depois capaz de justificá-la. Segundo Descartes, eu devo me contentar, então, com o que provém do intelecto, afim de buscar o que garante tais imagens como verdadeiras que será somente pela inspeção do espírito. Dessa forma, nos leva compreender que, embora temos o gênio maligno que nos leva ao erro pelos nossos juízos, a cera deve ser conhecida em sua verdadeira forma pelo espírito humano, ou seja, por meio da razão.
Por outro lado, a terceira certeza é de que é mais fácil conhecer o espírito do que o corpo; se ao menos julgo ver algo -como a cera- não há como eu não existir nesse momento. É evidente que mesmo eu tendo ou não a imagens de cera o meu pensamento estará existindo, por isso é muito mais fácil de conhecer o espírito que o corpo; não necessariamente que seja algo conhecido de forma simples, mas que na ordem das razões é a forma de ter um conhecimento seguro, na veracidade das coisas.
III - TERCEIRA MEDITAÇÃO
Na terceira meditação, Descartes vai buscar a certeza da existência de Deus, rompendo assim com seu pensamento cético estabelecido na sua primeira meditação, pois para ele não era possível está certo absolutamente de nada. Nesta meditação, irá evidenciar provas racionais para a existência de Deus. Na sua segunda meditação, conclui que ele sabe que existe e que ele é um ser pensante.
Descartes acredita estar preso dentro do seu próprio cogito, dentro do seu pensamento, não há nada nesse exato momento no seu itinerário meditativo a não ser a sua própria existência. Então, ele não sabe se há outro gênero, se há outro objeto no universo ou até mesmo a existência de um Deus. É aí que ele busca as provas da existência de Deus, nos mostrando que diante de dúvida que será revelada a existência, mas questiona que não consegue perceber uma outra existência além de si mesmo. É na presença dessa indagação que o próprio Descartes irá entender que há um indício forte existente de um mundo fora dele. Então, traz para si questões: Deus existe? Esse Deus é enganador ou não? Esses dois questionamentos são fundamentais para Descartes buscar a comprovação da existência de Deus, pois se ele não souber dessas duas verdades, não pode saber de mais nada, visto que qualquer coisa que ele pode ter como certo, ou seja, qualquer conhecimento que ele possa adquirir, não poderia ter a certeza se esse pensamento seria verdadeiro ou não, uma vez que há um Deus enganador, esse ser existente poderia ter lhe enganando a respeito das coisas.
Percebemos que, para René, ao pensar na existência de Deus, ou seja, se ele existe ou se ele é enganador, não o pode conceber, se não, em um Deus que é em sustância infinita, imutável e criador de todas as coisas. O pensamento de Descartes contido nessa meditação mostra uma prova posteriori da existência de Deus, pois para ele Deus tem todas as perfeições, portanto, esse Deus não pode ser enganador. Vimos que na segunda meditação ele coloca em questão que, ao analisar seu espírito ou inspeção do espírito, pode levá-lo ao erro e que o enganar seria uma falha do caráter, na qual rompe as relações com o divino. Uma vez que ele concebe essa ideia que há um Deus, buscará compreender de onde vem essa ideia, sendo que a ideia é um efeito e para todo efeito tem uma causa, na qual ele entende essa causa como causa eficiente. Descartes irá dizer que de onde o efeito pode tirar sua realidade a não ser de sua causa, ou seja, somente um ser perfeito pode produzir essa ideia, em outra palavra, afirma que somente Deus colocou em mim essa ideia.
Enfim, Descartes irá entender que aquilo que tem mais realidade (perfeito) não pode surgir daquilo que é imperfeito (menos realidade). Portanto, quando ele considera todos esses atributos a Deus, fica mais comprovado de que essa ideia de Deus não pode ter vindo dele. Percebemos que mesmo essa ideia de substância provinha de seu pensamento, visto que ele também era substância, ele não teria, contudo, uma ideia de substância infinita, uma vez que essa ideia de Deus infinito, perfeito ultrapassava sua condição, que é a de ser finito. Prova que sendo ele uma substância finita não poderia produzir uma ideia de substância infinita. Deus, a partir a ideia do infinito, poderia conceber em mim verdades de uma realidade mais consistente das coisas a qual eu concebo. Descartes também irá afirmar que atributo para a perfeição (ideia de Deus perfeito), será necessário que ele exista e que todas as coisas que posso afirmar como verdadeira, provém da razão, ou seja, Deus sendo razão. Dessa forma, esse reflexo de sua capacidade de pensar as coisas seria, em mim, pensar na forma que elas são.
IV – QUARTA MEDITAÇÃO:
Nesta meditação, é retomada a regra geral da verdade, onde Descartes discorre que toda ideia é verdadeira quando é distinta e clara; dessa forma, para não cair no erro, os juízos devem ser feitos com essas ideias, descartando as ideias confusas. Além disso, ele expõe o papel fundamental de Deus na “construção” do conhecimento, sendo esse necessário na iluminação da verdade dos juízos humanos. Nesse sentido, provada a existência de Deus, afirma que a ideia desse ser completo e independente não pode ser enganadora e que a capacidade de julgar foi concedida pelo mesmo e os erros que cometemos –que não provém de Deus- são frutos de conhecimentos que deveríamos ter.
No que concerne à natureza do erro, o filósofo francês analisa sobre duas visões: a primeira em torno de uma perspectiva epistemológica (onde ele faz a análise por meio da substância pensante que, sendo dada por Deus, não é passível de erro) e a segunda em torno da metafísica (atentando-se na existência de Deus e no seu papel no conhecimento das coisas verdadeiras).
Na primeira visão, ele faz a análise por meio de duas faculdades humanas: o entendimento e a vontade. Para o filósofo, pelo entendimento apenas percebo, concebo ideias, mas esse entendimento é limitado e finito, não podendo conceber todas as ideias. Mesmo assim o erro não se encontra nele, pois mesmo havendo essa limitação ele cumpre a função para qual Deus o criou: conceber ideias. A vontade, por sua vez, é o livre arbítrio e é infinita, uma vez que tenho a livre escolha do sim ou do não; nela oscilo em minhas capacidades nas coisas que entendo e não entendo, o que conduz ao erro (o mau uso do meu livre arbítrio que me faz errar).
Já na visão metafísica, Descartes não discorre apenas sobre a ideia positiva de Deus, mas também sobre a ideia negativa do nada, estando o ser humano entre Deus e o nada, entre “o ser e o não-ser”. Isso não significa que os erros provêm de Deus, muito pelo contrário, erramos por estarmos entre Deus e o nada, por participarmos do nada. Dessa forma, os erros seriam uma espécie de privação de um conhecimento que deveríamos ter e não o temos por estarmos inseridos nessa realidade (entre o ser e o não-ser), privação essa que não provém de Deus, mas que pode ser entendida –se utilizarmos Deus como pressuposto- como uma negação.
Unindo as duas visões, pode-se concluir que o entendimento que é iluminado e dado por Deus e, mesmo sendo limitado (o que para Descartes faz parte da natureza humana), não é a origem do erro; o que não pode ser dito da vontade que, no seu livre arbítrio, fica suspensa pela ação humana, sendo passível de erro e causadora da privação.
Em suma, Deus não é o causador dos erros, uma vez que é perfeito, completo e independente, mas provém da privação do conhecimento que deveríamos ter, influenciado por um entendimento finito e uma vontade infinita.
V – CONSIDERAÇÕES GERAIS:
René Descartes, em sua obra, objetivava encontrar fundamentos sólidos para o conhecimento; onde, ao decorrer das quatro meditações, parece-nos que ele estabelece etapas no seu pensamento, até chegar a uma conclusão. Dessa maneira, a rejeição a tudo o que é duvidoso é o ponto de partida de seus escritos, onde ele elabora uma reconstrução do pensamento com base na certeza, sendo a nossa própria existência a primeira certeza por ele encontrada, como também elabora um discurso que dá legitimidade a existência de Deus.
O “Discurso sobre o método”, onde ele abre espaço ao racionalismo dedutivo de inspiração matemática, também faz parte da elaboração de seu pensamento sobre onde deve repousar os fundamentos do conhecimento, principalmente o conhecimento científico (empreendido por meio da dúvida cartesiana).
Dessa forma, ela parte para uma busca da verdade que repousa no conhecimento da natureza do espírito humano e no conhecimento de Deus, onde ele tenta entender as distintas ideias, até mesmo as confusas e qual seria a origem do erro. É na limitação humana que encontramos a perfeição do mundo e os traços da perfeição divina, sendo ela necessária para empreendermos o conhecimento de Deus. Sendo assim, ele conclui que o erro não provém de Deus, uma vez que ele é perfeito, mas vem da liberdade (vontade) –que somada ao conhecimento limitado do homem (entendimento) - o conduz ao erro.

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