Nas parábolas narradas por Cristo no Evangelho de Lucas e Mateus, é perceptível por trás da linguagem metafórica, duas concepções antropológicas distintas que em seu agrupamento formam a base do entendimento cristão a respeito da natureza humana. Primeiramente, é válido ressaltar que o cristianismo não concebe uma essência humana a priori, mas sim situações existenciais; de tal maneira que sua “natureza” é de definida na ocasião que o homem se depara: de pecador ou filho de Deus. Em segundo lugar, é equitativamente importante compreender que ambas as situações existenciais não são dualistas ou contrárias, de modo que nas parábolas propostas a investigação e em demais passagens do Novo Testamento as duas situações em que o ser humano se encontra constituem a unidade da condição antropológica cristã: o pecador que precisa trilhar os passos do Nazareno, este que é o arquétipo, a “norma absoluta da concepção cristã do homem” (Lima Vaz, 2011, p. 61).Nas parábolas elaboradas por Cristo, parece estar valorizada não só uma “natureza humana” – uma “essência” –, mas também e sobretudo a individualidade do ser humano, pela qual cada um é um ser único. Entretanto, não há nos Evangelhos a “ideia de pessoa”, utilizada só posteriormente na interpretação cristã de ser humano. Visto que não há uma conceituação de pessoa na Escritura, é possível estabelecer uma relação semelhante e conflituosa entre o entendimento bíblico e latino sobre o homem.
As parábolas em exame são respectivamente retiradas do Evangelho de Mateus (18, 12-14) e do Evangelho de Lucas (15, 8-10):
- “Que vos parece? Se um homem possui cem ovelhas e uma delas se extravia, não deixa ele as noventa e nove nos montes para ir à procura da extraviada? Se consegue achá-la, em verdade vos digo, terá maior alegria com ela do que com as noventa e nove que não se extraviaram. Assim também, não é da vontade de vosso Pai, que está nos céus, que um destes pequeninos se perca”
- “Ou qual a mulher que, tende dez dracmas e perder uma, não acende a lâmpada, varre a casa e procura cuidadosamente até encontrá-la? E encontrando-a, convoca as amigas e vizinhas, e diz: ‘Alegrai-vos comigo, porque encontrei a dracma que havia perdido!’ Eu vos digo que, do mesmo modo, há alegria diante dos anjos de Deus por um só pecador que se arrepende”.
A primeira situação existencial sobre o homem, herança dos predecessores do povo judeu, é descrita no mito da criação do capítulo segundo de Gênesis pela tradição javista, na qual o ser humano é pecador. No entanto, após a encarnação do Verbo, a perspectiva existencial que a humanidade se depara pode reverter-se seguindo o caminho de redenção que Jesus indicou, passando de uma existência pecaminosa para tornar-se filhos de Deus, desse modo, unidos pela fé não há mais distinção alguma entre os homens, pois todos os cristãos, de acordo com Paulo de Tarso, são apenas um aos olhos do Filho. Com efeito, as narrativas históricas traçadas no decorrer da Escritura é um reflexo que ocorre no interior do ser humano, ou seja, o indivíduo pecador que renasce pelo sangue derramado de Cristo; desse modo, a unidade da compreensão antropológica da tradição bíblica fica evidente no percurso delineado desde Gênesis até as cartas paulinas e dos demais apóstolos.
Além do mais, tal qual a compreensão latina de persona, o entendimento cristão acerca da condição humana, traz o elemento da individualidade através da ótica soteriológica da existência. Toda pessoa, independentemente da situação existencial em que se encontra, é responsável por sua própria salvação (mesmo os que já renasceram em Cristo, nas palavras do apóstolo Paulo: “Portanto, aquele que julga estar em pé, tome cuidado para não cair.” - Rm 10, 12). Ninguém pode ser salvo pelo outro, nem sequer salvá-lo. A trajetória salvífica é de exclusividade única das decisões que o sujeito irá tomar no tempo fugaz que Deus lhe concede: viver segundo os ensinamentos de Jesus ou viver segundo os instintos egoístas.
Fora a semelhança do conceito de individualidade na concepção cristã e latina sobre o homem. Outro fato que ambos os entendimentos se encontram, em especial nas duas parábolas em estudo, é em uma das atribuições que os latinos designaram para persona, a posição social em que o indivíduo se encontra, no caso das narrativas de Cristo, o homem pequeno-médio produtor rural e a mulher plebeia. Ademais, é possível compreender outro aspecto que as condições antropológicas se entrelaçam, a saber, a mulher dona de casa responsável pelas finanças de casa e o pastor das ovelhas; dentre de outras particularidades que os latinos entendem que persona possui, uma delas é a profissão na qual o indivíduo exerce.
Por mais que seja possível encontrar atributos semelhantes entre a antropologia cristã e latina, elas em suas respectivas bases, se divergem de forma contumaz uma com outra, especificamente do ponto de partida que partem. A situação antropológica concebida pela tradição cristã é essencialmente teológica, uma vez que a posição que o ser humano se encontra é uma relação intrínseca com o Criador. Já a antropologia que os latinos investigam é por sua vez filosófica, pois estes colocam o ser humano como centro de si mesmo em investigação, sem uma relação necessária com o divino ou com a pólis.

Amei a abordagem do tema.
ResponderExcluirConheci vocês através do grupo face #OMED