No livro de Blaise Pascal Os Pensamentos (especialmente nos números 66 ao 72) é descrito a concepção de "ser humano" que está aí subjacente, tal concepção se torna possível tão somente no interior da Idade Moderna.
Nos trechos de Pascal é evidente a contraposição dialética em relação aos seus
contemporâneos. Nos fragmentados registrados em seu livro Os Pensamentos, Pascal
demonstra como o ser humano é um ser intermediário: nada em relação a infinitude; tudo em
relação ao nada. O homem, de acordo com seus fragmentos, só poderia chegar a esta conclusão
através do conhecimento de si, para reconhecer o quão grande é o ser humano por sua
capacidade de pensar e do universo que o envolve para contemplar-se sua miséria por sua
pequenez em relação ao todo e sua mortalidade que faz o homem assemelhar-se ao animal.
Nesse sentido, Pascal vai estabelecer uma relação sintética quase dualista em relação ao ser
humano: um milagre por sua grandeza e uma maldição por miserabilidade.
Além do mais, Pascal recomenda que o ser humano considere a si próprio um ser
estrangeiro na natureza, contemplando com espanto e admiração sua existência entre o abismo
do infinito e do nada. O homem, portanto, caminha no meio termo nos mais amplos aspectos,
o pensador francês demonstrará suas convicções a respeito em uma de suas principais obras: a
racionalidade humana é capaz apenas de “alcançar o centro das coisas que abraçar-lhes a
circunferência”; “limitados em tudo, esse termo médio entre dois extremos encontra-se todas
as nossas forças”; “em suma, as coisas extremas são para nós como se não existissem, não
estamos dentro de suas proporções: escapam-nos ou lhes-escapamos.” (PASCAL, 1973). O
filósofo moderno, ao propor tais ideias sobre o homem, vai no caminho oposto da corrente
filosófica que estava sendo consolidada após o declínio da Igreja de Roma. Pascal retira todo
o brilhantismo que os pensadores renascentistas colocaram sob a humanidade, que de acordo
com eles, o homem que é o ser mais digno e capaz de toda natureza, do mesmo modo contesta
os pensadores que beberam da fonte cartesiana e criam na condição verdadeiramente dualista
do sujeito, ou seja, partem da metafísica para a empiria, o ser humano só é porque pensa.
Diferentemente de outros filósofos do início da era moderna que, influenciados pela
concepção cartesiana do homem, acreditavam no “poder absoluto” da razão que poderia tudo
conhecer, na superioridade que esta tinha em relação à sensibilidade, Blaise Pascal vai no
caminho contrário aos “otimistas da razão”. Este afirmava que a razão é limitada, que vive em
ilusões graças a inconstância permanente que há nas aparências, a razão, diversamente de
Descartes, é objeto de dúvida para Pascal, nas palavras do autor em estudo:
“Como poderia uma parte conhecer o todo? Mas a parte pode ter, pelo
menos, a ambição de conhecer as partes, as quais cabem dentro de suas
próprias proporções. Mas as partes do mundo têm todas tais relações e
tal encadeamento uma com as outras que considero impossível
compreender uma sem alcançar as outras, e sem penetrar o todo.”
(PASCAL, 1973).
Tendo em vista o pensamento de Pascal, tais concepções só foram possíveis ser
concebidas no início da Idade Moderna. Após o enfraquecimento teológico-político do
catolicismo apostólico romano, a Europa passou por uma ampla transformação: a burguesia
começava a ascender; novas vertentes da religião cristã surgiam; o saber, graças as inovações
tecnológicas e outras circunstâncias que possibilitaram, saíram dos mosteiros e pessoas que
não pertenciam ao clero tinham acesso as obras do pensadores greco-romanos; dentre outros
fatos que contribuíram para alterar o zeitgeist teocêntrico católico, em suma, pode-se afirmar
que se iniciava um novo ciclo em solo europeu.
Como já mencionado, Pascal vai se opor as concepções antropológicas contemporâneas
à sua época e predecessoras de seu pensamento. Os renascentistas, anteriores à Pascal,
maravilhados com as obras e sabedoria dos clássicos, construíram seu pensamento envolta da
beleza humana que de tão demasiadamente humana se tornava divina (como fica evidente
principalmente nas artes), ademais, o homem para os humanistas, é digno, é transformador e
capaz por sua consciência; como Lima Vaz bem define os juízos que permearam o
entendimento sobre a humanidade durante a Renascença, esta compreensão é: “[...] uma
antropologia de ruptura e transição: ruptura com a imagem cristão-medieval do homem e
transição para a imagem racionalista que dominará os séculos XVII e XVIII.” (LIMA VAZ,
1998, p.81). Já quanto aos seus contemporâneos, marcados pela concepção antropocêntrica
renascentista e otimistas quanto a maestria da racionalidade, refinaram o entendimento dos
pensadores humanistas, e acabaram por conceituar o homem sendo o que é graças sua
capacidade pensante que duvida, na formulação cartesiana de Descartes, res cogitans. O
racionalismo de inspiração cartesiana e a descobertas científicas ocorridas nesse período
transformara em grande medida o pensamento filosófico moderno, influenciando vários
pensadores modernos (como Hobbes, Locke, Espinosa, etc.) e que desaguara no Iluminismo.
Portanto, como fica evidente no decorrer trajetória do pensamento filosófico Ocidental,
os fatos supracitados que envolviam o ambiente europeu na época que Pascal elaborou seus
escritos, possibilitaram que o pensador francês formulasse sua filosofia e a condição que o
homem possui. Contrapondo-se ao otimismo da razão e a exaltação da humanidade em pauta
nesse momento histórico, Pascal se tornara um filósofo com um pensamento singular do início
da Idade Moderna.