AS NOÇÕES COMUNS DE MIMESE EM PLATÃO E ARISTÓTELES

        O conceito de mimese é parte do vocabulário ocidental desde os primeiros expoentes da literatura grega como Homero e Hesíodo, alcançando seu desenvolvimento sobretudo no decorrer de toda a história da filosofia: da primeira Ilustração grega aos critérios estéticos de Adorno no século XX. Ainda que outros filósofos pré-socráticos já houvessem utilizado do termo em seus pensamentos, tão-somente com Platão e Aristóteles, séculos mais tarde, a noção de mimese será incorporada e aprofundada em suas obras iniciando a teoria da arte na filosofia ocidental. 

        Não obstante, apesar de tradicionalmente atribuído ao livro décimo da República de Platão e na Poética de Aristóteles, o conceito possui significações distintas em outras obras dos filósofos demonstrando a importância e versatilidade da palavra no repertório filosófico grego no decorrer do período socrático. Desde os diálogos platônicos de juventude até os tardios a mimese é inserida, e na filosofia aristotélica, o conceito é aplicado em múltiplas maneiras tanto nos fundamentos físicos quanto biológicos. A despeito da multiplicidade que a mimese foi desenvolvida em Platão e em Aristóteles, é sobretudo no âmbito da estética e da arte que será majoritariamente atuante em seus pensamentos e influente na tradição filosófica posterior. 

        Para uma compreensão segura sobre a noção de mimese em Platão é preciso, antes de tudo, pormenorizar a epistemologia presente em seu pensamento. De acordo com o discípulo de Sócrates, não há ciência sem o uso da dialética. A ascensão dialética é a base de seu dualismo e de seu entendimento sobre o que é o conhecimento verdadeiro. O filósofo, influenciado pelos pensadores eleatas, identificara uma clara distinção entre o permanente e o transitório, afirmando a superioridade do primeiro em relação ao segundo. De acordo com seu dualismo, Platão compreendia o mundo fenomênico como uma cópia imperfeita do mundo suprassensível, e uma vez que os objetos materiais estão sujeitos ao devir, por si só não possui nenhum valor científico. 

        Para compreender o que Platão concebe como conhecimento verdadeiro, é imprescindível ter o entendimento de como ocorre a ascensão dialética e a divisão que o mesmo faz sobre a realidade empírica e inteligível. O fundador da primeira Academia grega acreditava ser essencial constatar a superioridade às Ideias sobre os objetos sensíveis justamente pelo fato que a sensibilidade está em constante mudança, enquanto as Ideias, habitantes do mundo suprassensível, permaneceriam imutáveis e, portanto, esta deveria ser o objeto de uma investigação segura, sem estar correndo o risco que deixar cair-se no engano ocasionado pelas sensações. 

        A alegoria da caverna, retratada na República, representa as etapas do processo dialético rumo ao conhecimento verdadeiro. Como já foi dito, Platão distingue dois tipos de saberes, o sensível e o inteligível, que se subdividem: nas sombras, aparência sensível dos objetos; nas marionetes, representação própria dos objetos empíricos; no muro, limiar que separa os dois tipos de conhecimento; no exterior da caverna, realidade das ideias em si; por fim, no sol, suprema ideia do Bem e da Verdade. Platão, através da narrativa do mito da caverna, demonstra que as coisas do mundo sensível são apenas ilusões, e que para contemplar as Ideias só é possível através da reflexão, do raciocínio, do pensamento. Em suma, Platão demonstra a passagem do conhecimento meramente opinativo (dóxa) para o conhecimento real e verdadeiro (epistéme) que só seria alcançado mediante a dialética que engloba tanto o saber matemático quanto o filosófico. 

        Visto isso, intimamente conexa com a epistemologia e metafísica de Platão, a mimese no livro X da República é submetida a critérios gnosiológicos que atestam sua invalidade como modelo de conhecimento, levando, consequentemente, ao campo da ética e sua rejeição. É válido destacar que a discussão acerca da mimese como imitação é posterior à alegoria da caverna, reforçando a construção da teoria do conhecimento platônica e suas implicações na vida política. 

        A arte, como imitação, é concebida por um viés negativo por Platão: é inferior ao saber filosófico, embrutece o homem suscitando paixões baixas, e principalmente, afasta o indivíduo cada vez mais do Sumo Bem, ou na terminologia alegórica exposta no mito da caverna do livro VII da República, mantém o indivíduo entretido em seus grilhões. Cópia do mundo sensível, a arte é a falsificação da falsidade e deve ser proibida na utopia platônica. Em todas suas manifestações, a arte é a imitação dos fenômenos que são imperfeitos em si. Portanto, a mimese compreendida como imitação da natureza e, por conseguinte, das aparências, é algo que deve ser afastado dos indivíduos que visam a contemplação da verdade e a ordenação de sua alma com o auxílio da racionalidade. 

        Diferentemente de seu mestre, Aristóteles não concebe a mimese de modo negativo ou que afasta o homem da verdade. A imitação possui para o Estagirita uma significação dupla: em primeiro lugar, o aspecto ativo que representa uma ação ou uma atitude; em segundo, o retratado verdadeiro e universal da natureza. A arte recria a natureza, o homem, concebido como ente natural, é mimetizador em todos seus atos, e o artista aquele que vai considerar, nas possibilidades das possibilidades, o universal. 

        Desse modo, a poesia e a mimese poética, é um saber mais profundamente filosófico do que a história narrada pelos historiadores; enquanto o primeiro retrata a natureza e o gênero humano em seu modo atemporal e essencial, o historiador descreve fatos particulares restritos a um só tempo e acontecimento. Aristóteles, portanto, não compreende a mimese como algo falso e cópia imperfeita da cópia do mundo suprassensível, mas a entende como a imitação de um processo real uma vez que escapa a causa material e capta a formalidade do objeto. A própria natureza, de acordo com o fundador do Liceu, é artística por imitar um princípio teleológico interno, enquanto o ser humano, como causa eficiente dos processos poéticos mimetiza pela exterioridade. A arte, ao contrário de Platão, é indutiva: parte do particular para o universal, abrindo um caminho para a realidade que subjaz na sensibilidade do mundo. 

        O poeta, ao imitar a natureza em suas possibilidades, descreve algo que pode ser verossímil na realidade possibilitando conhecer tanto a realidade quanto as aptidões intelectivas próprias da alma racional. Além do mais, para Aristóteles, a poesia mediante a mimese é própria do ser humano, um modo que possibilita a obtenção de conhecimento estimulando o indivíduo a buscar os critérios universais do real. Em síntese, é possível traçar diversos contrates entre as noções comuns de Platão e Aristóteles, sendo as principais respectivamente: para o ateniense a mimese é falsa e embrutece o ser humano; para o estagirita a mimese demonstra o real em sua universalidade e engrandece o homem ao impulsioná-lo à saber.




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