Sobre o Racionalismo Platônico e Agostiniano

    Platão e Agostinho de Hipona são dois expoentes da corrente racionalista ⏤ com certas ressalvas, dado que o termo é fruto do pensamento moderno. Ambos os filósofos, mesmo com suas peculiaridades e diferenças, compartilham do ideal da imensa capacidade cognoscitiva da racionalidade em relação ao mundo fenomênico; estes compreendiam que existe um conhecimento uno, superior, imutável, que seria alcançado tão somente por meio de uma transformação na relação do sujeito com a realidade que o envolve, seja através da ascensão dialética visando a contemplação do sumo bem , ou por via da introspecção permitindo o encontro com Deus, este que é fonte suprema de sabedoria. Independentemente dos meios que fazem o indivíduo compreender a verdade, os dois pensadores seguem a mesma linha de raciocínio em seus pensamentos acerca da epistemologia, ou seja, por serem racionalistas criam que a razão é capaz de conhecer um saber universal e necessariamente lógico.  

    Para o filósofo ateniense, tido como racionalista-objetivo, não há saber sem o uso da dialética. A ascensão dialética é a base de seu dualismo e de seu entendimento sobre o que é a verdade e o conhecimento seguro. O pensador, influenciado pelos pensadores eleatas, identificara uma clara distinção entre o permanente e o transitório, afirmando a superioridade do primeiro em relação ao segundo. De acordo com seu dualismo, Platão concebida o mundo fenomênico como uma cópia imperfeita do mundo suprassensível, e uma vez que os objetos materiais estão sujeitos ao devir, por si só não possui nenhum valor que compense ser concebido. No entanto é válido ressaltar, que a realidade sensível, ao contrário de ser meramente desprezada na perspectiva platônica, possuía um grau de valor a partir do momento que esta leva o indivíduo a transformar a materialidade em conceitos e noções. 

    O filósofo grego nos seus diálogos, em especial na República, no Fédon e no O Sofista, vai discorrer com seus interlocutores como de fato pode se obter o conhecimento e reforçar o parecer exposto de maneiras diversas nas obras citadas. Para compreender o que Platão concebe como conhecimento, é imprescindível ter o entendimento de como ocorre a ascensão dialética e a divisão que o mesmo faz sobre a realidade empírica e inteligível. O fundador da primeira Academia grega acreditava ser essencial constatar a superioridade às Ideias sobre os objetos sensíveis justamente pelo fato que a sensibilidade está em constante mudança, enquanto as Ideias, habitantes do mundo suprassensível, permaneceriam imutáveis e, portanto, esta deveria ser o objeto de uma investigação segura, sem estar correndo o risco que deixar cair-se no engano ocasionado pelas sensações.  

    Para exemplificar sua argumentação, Platão, através da narrativa do mito da caverna demonstra os passos para a ruptura em relação as ilusões das coisas do mundo sensível, e com o objetivo de contemplar as Ideias, só seria possível através da reflexão, do raciocínio, do pensamento, para tanto, é metodicamente necessário entender como é a realidade para começar a trilhar o caminho da razão rumo a saída da caverna.  Na alegoria retratada na República, é apresentada a realidade de forma dividida em segmentos que constituem a posição do sujeito para com o mundo (o objeto) e a relação que ambos possuem um com o outro no que concerne a fonte e essência do conhecimento.  

    No diálogo, é retratado um homem acorrentado com seus camaradas vendo sombras de silhuetas no fundo de uma caverna, que, porventura, consegue se desacorrentar e caminha em direção a saída do local de seu cárcere, na trajetória que seguia, o indivíduo que escapou observou a infraestrutura da caverna que ocasionava as sombras através de marionetes que ele sempre havia visto na parede que até então era a sua realidade, já saindo da caverna ele contempla a verdadeira realidade, seus olhos ardem e sua vista demora a se acostumar com a luz do sol, todavia, quando ele se acostuma a iluminação, acaba por vivenciar a verdade que sempre esteve ali disposta, mas nunca percebidas em decorrência de seu jugo.  

    Por trás da linguagem metafórica do mito, Platão, estabelece como é o processo dialético, tendo como o objetivo a busca da verdade universal. Em seu primeiro segmento as sombras representam respectivamente a aparência sensível dos objetos; posteriormente, as marionetes assumem o papel da representação própria dos objetos empíricos; em sequência, o muro onde estão sustentadas as marionetes simbolizam o limiar que separa os dois tipos de conhecimento — sensível e suprassensível; por fim, o exterior da caverna são as Ideias, realidade indubitável, essência de todos os fenômenos, uno, universal, e o sol representando a Ideia mais elevada e nobre, o sumo-bem que engendra em si a perfeição, a beleza e a justiça. Além do mais, em outro diálogo dentre vários, no Fédon especificamente, Platão trabalha a teoria da reminiscência, que, de modo a complementar a alegoria já analisada, é expresso que as Ideias já estão inatas no sujeito em decorrência da transmigração das almas no transpassar de toda eternidade, de tal maneira que o espírito já contemplou tudo o que existe, dentre as apreciações de existências, a contemplação do mundo suprassensível, o uno. Em outra obra, o filósofo discorre acerca da constituição do mundo inteligível: 


"De fato, o que ocupa esse lugar é a substância (a realidade, o ser, ou seja, as ideias) que existe realmente, privada de cor, sem figura e intangível que só pode ser contemplada pelo timoneiro da alma, pelo intelecto, constituindo o objeto próprio da verdadeira ciência. [...] E após ter contemplado, da mesma forma, as outras entidades reais e ter-se saciado com isso, mergulha novamente no interior do céu e volta para casa [...]." (PLATÃO, Fedro) 


    Em suma, Platão demonstra a passagem do conhecimento meramente opinativo (dóxa) para o conhecimento indubitável (epistéme) só seria alcançado mediante a dialética que engloba tanto o saber matemático quanto o filosófico. A razão assume em sua epistemologia um caráter essencial para o conhecimento que sempre esteve presente no mundo para o sujeito, “obscurecida” frente as sombras da sensibilidade, por conseguinte, o filósofo clássico é considerado como um racionalista-objetivista resultante ao esforço dialético que o sujeito faz através da racionalidade para a alcançar (ou em termos platônicos, relembrar) a verdade, as Ideias. Nas palavras de Johannes Hessen:  


"O sujeito, de certo modo, incorpora as determinações do objeto. [...] Os objetos são algo dado, apresentando uma estrutura totalmente definida que será, por assim dizer, reconstruída pela consciência cognoscente." (HESSEN, 1999, p. 70) 


    A possibilidade de conhecer mediante a razão instaurada por Platão foi o estopim para a consolidação da vertente epistemológica racionalista que iria ecoar séculos posteriores em uma Europa cada vez mais cristã. Santo Agostinho, foi o expoente do racionalismo no período medievo, renovando sob a perspectiva teológica as doutrinas da Academia neoplatônica, todavia, apesar de ser altamente influenciado pelos ideais originados na Antiguidade, o filósofo cristão diferencia-se em relação a posição do sujeito e objeto sobre o debate no tocante a essência do conhecimento. 

    Sinteticamente, Agostinho em sua teoria da iluminação deixa evidente que o sujeito para conhecer é preciso a priori possuir uma relação com Deus, pois, de acordo com o bispo, o Criador deixou nos homens sua assinatura, que seriam verdades universais, imutáveis tal como Platão, porém, contrário a perspectiva platônica quanto a recordação das ideias e do mundo suprassensível, o pensador medievo irá alterar a “localização” do cognoscível. Deus, a verdade, a essência do conhecimento, não está fora, mas dentro do sujeito, como o filósofo expõe no relato de sua conversão ao cristianismo. Essa relação com o divino só seria possível, se o indivíduo vivendo o cristianismo voltasse para si e “abrisse os ouvidos do coração” para a Iluminação do intelecto, o que, na perspectiva agostiniana, seria uma graça do Senhor para que o homem conhecesse através da racionalidade a verdade inteligível habitante em seu interior.  

    Ao manter o papel central da razão e ao colocar que o conhecimento verdadeiro está dentro do sujeito supremo, Agostinho atribui uma perspectiva distinta de Platão em seu racionalismo; estando a verdade no interior da consciência do indivíduo, este assume o papel fundamental para a compreensão das ideias amparadas na beata sapiência de Deus, sendo, portanto, um racionalismo subjetivista, uma vez que o sujeito dispõe de mais relevância para o conhecimento que o objeto em si. 

    Sumariamente, Platão e Santo Agostinho são dois pilares da teoria do conhecimento no geral, mais especificamente, dentre as diferenças já postas em cada autor, o racionalismo. Para exemplificar a diferença entre o racionalismo platônico e agostiniano sob uma ótica antropológica, é apropriado dizer que além da contribuição teórica dos pensadores, ambos, ao propor seus ideais acerca do conhecimento, estabeleciam ao receptor de seus pensamentos um modo de ser no mundo, tanto é que seus respectivos entendimentos sobre o homem possuem uma relação ímpar com o conhecimento; Platão, com a dialética ascendente rumo ao mundo suprassensível assume uma concepção epistemológica racionalista objetivista interligada com o espírito de época na qual o pensador estava inserido, dentre as quais: como uma forma de viver virtuosamente com a pólis marcada pela deturpação de valores (tal como podemos deduzir do julgamento que levou Sócrates a morte), não ceder aos discursos dos sofistas ou até mesmo se tornar um mero retórico que visa tão somente a própria glória, etc. Santo Agostinho de modo semelhante ao pensador grego, concebe seu racionalismo subjetivo no período de consolidação do catolicismo na Europa, de modo que seus pensamentos sobre a epistemologia, também é um modo de ser no mundo entendido com o viés teológico, neste caso, ao ter o intelecto iluminado por Deus, o homem desfrutará de uma plena relação existencial com o divino encontrado nas profundezas da interioridade, vivenciando desse modo a vida cristã. 

    Em poucas palavras, pode-se dizer que uma das principais concepções divergentes sobre a teoria do conhecimento entre Platão e Agostinho, é que o primeiro enquanto busca a verdade fora, o segundo procura-a dentro de si. 





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