RESUMO DE PSICOLOGIA SOCIAL: CONFORMIDADE E OBEDIÊNCIA

 1. Duas formas em que ocorre a conformidade segundo David G. Myers:

A conformidade manifesta-se de inúmeras maneiras. David G. Myers, no entanto, considera apenas três aspectos deste mesmo fenômeno social, ainda que das três variedades consideradas, uma constitui-se como subvertente de outra, desse modo podemos considerar, stricto sensu, apenas duas formas: 1) Aquiescência, ou seja, a conformidade estranha e falsa a subjetividade individual para com determinados padrões socioculturais que são constituídos, implicitamente, de forma objetiva pelo conjunto social; desta vertente de conformidade, têm-se a obediência, quando esta é, explicitamente, uma ordem. 2) Aceitação, isto é, a forma de conformidade que a pressão do conjunto de ideias e crenças de determinado grupo exerce no indivíduo. Aqui e ali, seja como for, o indivíduo se dobra a sociedade, com ou sem seu consentimento


2. Descrição do “efeito Werther” descrito pelo sociólogo David Phillips:

Para David Phillips e seus colegas pesquisadores, o “efeito Werther” é um fenômeno social imitativo que condiciona os indivíduos a agirem conforme algum acontecimento ou  influência externa que sejam demasiadamente divulgados, – tanto em casos positivos quanto negativos (como as ondas de sucídio que ocorreram no século XIX na Alemanha após a publicação do romance de Goethe). 


3. O fenômeno do mimetismo como fator determinante para que um sujeito seja prestativo com outro ou da solidariedade::

Um dos experimentos realizados para a validação do mimetismo como condicionante para os comportamentos individuais que sejam prestativos com o outro foi realizado por Rick van Barren na Holanda, no início deste milênio.O experimento consistia em propor a estudantes experimentar um novo tônico esportivo; dos alunos submetidos ao experimento, a maioria que teve seus trejeitos imitados pelo entrevistador optou por experimentar a bebida disponível. Conclui-se, portanto, que modos e maneiras compartilhadas por indivíduos condicionam não apenas sua “vulnerabilidade” às influências do grupo, mas também suas decisões e possíveis interpretações da realidade.. 


4. Stanley Milgram, a legitimidade da autoridade e sua obediência:

Milgram examinou acerca da influência do experimentador realizando o mesmo teste com alterações no seu papel e também na posição do aprendiz. O resultado obtido foi a diferença quantitativa de indivíduos que obedeciam às ordens de eletrocutar outra pessoa, se, a autoridade (legítima) estava próxima e a vítima distante do algoz. 


5. As semelhanças da análise dos resultados dos experimentos sobre obediência de Solomom Asch e Stanley Milgram:

A análise de ambos os pesquisadores assemelham-se em dois principais pontos, em primeiro lugar, na coesão social que induz os indivíduos a desenvolverem atos e movimentos específicos; em segundo lugar, na presença do caráter obediente dos homens. Todavia, Asch e Milgram procedem de modo diverso para constatar o mesmo fenômeno. Enquanto Asch utiliza, literalmente, da pressão social de cinco pessoas para induzir a um resultado específico, Milgram faz do papel da autoridade uma sublimação da sociedade. 


6. Exemplo da vida real em que se pode observar a “Formação de Normas”, tal como pesquisada por Muzafer Sherif:

Um exemplo de “Formação de Normas” que Sherif desenvolve pode ser encontrado em qualquer grupo ou ato social. Por exemplo, ainda que três pessoas que moram no mesmo local compartilhem rotinas distintas entre elas, a sua função respectiva de organização doméstica nasce  organicamente da necessidade de deixar a casa habitável para essa família: enquanto um e outro lavam o quintal e a louça, outro limpa o banheiro dos gatos e o interior da residência, gerando assim normas implícitas de divisão social do trabalho e de convívio.


7. Três três circunstâncias que contribuem para o aumento da “conformidade”:

Muitas podem ser as circunstâncias que podem fazer que aumente a probabilidade do indivíduo se conformar. Três das quais são um consenso entre os pesquisadores da psicologia social são: 1) O nível de contato com x fenômeno social (por exemplo: o sujeito que só têm contato com a cultura oriunda da religião católica e indivíduos que professam a mesma fé, provavelmente não se converteria ao maometanismo, mas pelo contrário, conformar-se-ia e seguiria a religiosidade dos seus próximos); 2) A aceitação e o repúdio coletivo de determinados paradigmas (por exemplo: uma pessoa que cresce e se desenvolve em uma sociedade não-vegana, tende a conformar-se com o sofrimento animal e os impactos da agropecuária no meio ambiente. É aceitável e incentivado, dentro deste grupo, comer carne animal, e repudiável sua recusa por motivos ideológicos). 3) O quão sólido é a relação social defronte à algumas normas (por exemplo: em uma sociedade no qual a vida é colocada como um valor inexprimível e as duras censuras por atos contrários à existência e a dignidade humana fazem o indivíduo ater-se ao mesmo valor e repudiar a mesma infração, conformando-o a coletividade. 


8. O motivo pelo qual, de acordo com a análise dos experimentos de Psicologia Social, os indivíduos apresentam o comportamento de conformidade:

Os indivíduos se conformam por dois principais motivos: a aceitação gerada por acatar subjetivamente determinados aspectos aceitos pelo grupo, constituindo a influência normativa; e a transferência de autoridade para o grupo através de determinadas evidências que este possui quando não pode ser determinado ou experimentando apenas pelo indivíduo, esta é a influência informacional (por exemplo, na aceitação que muitos têm diante da comunidade científica). 






O CÍRCULO DE VIENA, A METAFÍSICA E O MUNDO

    Uma das principais preocupações de Rudolph Carnap, integrante do Círculo de Viena, era a construção de uma filosofia científica, livre de pseudo-problemas. Carnap constrói seu eixo de pensamento em uma filosofia da ciência em duas grandes correntes, o pragmatismo e o empirismo científico, visando enquadrar o saber filosófico em uma análise da linguagem cotidiana e científica. Diferentemente de outros membros do Círculo de Viena, Carnap estendia o objeto de investigação de sua filosofia não apenas aos recursos lógicos-formais do pensamento, mas também o aspecto pragmático e semântico. Seja como for, a construção de seu pensamento envolve particularidades entre as duas correntes distintas, ainda que seu enfoque esteja centrado nos moldes cientificistas austríacos do início do século XX.

    O desejo de Carnap e seus colegas do Círculo é expresso categoricamente no Manifesto dedicado a Moritz Schlick: é preciso que haja uma concepção científica do mundo, afastando-se de devaneios e questões insolúveis. A emergência de uma filosofia científica resplandece diante do desenvolvimento das ciências matemáticas, lógicas e naturais no decorrer da Revolução Científica a contemporaneidade. Contudo, ainda que com progressos inexistentes até então na história da humanidade, a persistência do dogmatismo metafísico assombra e persegue o pensamento humano impedindo-o de ater-se ao que verdadeiramente pode ser dito, para dizer como Wittgenstein. Ora, o discurso e o método filosófico não se distinguem, segundo Carnap, do científico. Ambos os saberes devem ater-se na realidade, explicitando sistematicamente os fenômenos observáveis em enunciados claros e distintos. A filosofia, portanto, para nosso autor, constitui-se através de um amplo limite. Esta reflete sobre os princípios e termos científicos tencionando colaborar com os avanços nas ciências naturais mediante um uso dos recursos lógicos-formais. O empirismo científico busca acolher tanto os aspectos lógicos quanto práticos. 

    Por excelência, a elaboração de uma concepção científica de mundo é fruto direto de um espírito iluminista neokantiano e anti-metafísico, determinada pelo impacto do empirismo e positivismo. Partindo sobretudo das ciências empíricas, a filosofia, pautada no entendimento esclarecido e em ideias claras e distintas, precisa esforçar-se na tentativa de unificar as ciências, na organização dos aspectos socioeconômicos, e na manutenção da experiência cotidiana dos homens. Este propósito, além destes vieses práticos, de educação e divulgação científica, implica em posições teóricas e intelectuais. Aqui e ali, torna-se preciso escapar de pseudoproblemas. Não há mistérios ou problemas enigmáticos em filosofia, há “problemas” tradicionais que são ilusões, equívocos da razão pura. O saber filosófico tem de elucidar e esclarecer estes problemas e submetê-los ao crivo do método lógico-analítico de Russel ou apenas, tal como Kant, questionar: “Como é possível uma ciência pautada em juízos sintéticos a priori?”

    O indivíduo que se dispõe a fazer ciência, ou a ver o mundo com a uma concepção científica, necessita, portanto, elaborar uma proposição ou uma síntese de proposições e analisar minuciosamente enunciado por enunciado, elaborar hipóteses ou teoremas e colocá-los sobre o crivo técnico da experimentação com os meios que a tecnologia permite. Portanto, a lógica do conhecimento é, para Carnap e outros membros do Círculo de Viena, um empreendimento de análise destes processos lógicos de experiências, ou seja, um ato de exame sistemático do método das ciências empíricas, propondo enunciados úteis e desenvolvendo o pensamento filosófico científico. Logo, uma vez que a ciência exige que seus enunciados sejam válidos experimentalmente, a metafísica e seus pseudoproblemas que elaboram-se visando a obtenção de um conhecimento certo verdadeiramente indubitável via a razão pura, fazendo um paralelo com Kant, não progride e seu saber gira envolta de seu círculo vicioso da injustificabilidade, não transpondo o critério de demarcação elaborado pelos positivistas lógicos, que propõe um procedimento metodológico para que a ciência chegue a um saber unificado.

    Essa concepção de elucidação dos pseudoproblemas, seu desmembramento e busca de um sentido empírico para o saber teórico e prático refletem as influências que Gottlob Frege exerceu neste grupo. Frege, em decorrência de seus estudos na aritmética e na matemática, buscou purificar a linguagem de ambíguas, de modo a buscar um modus operandi de pensar, claríssimo e exato, como as ciências matemáticas, — visto que, segundo este autor, a aritmética decorre da lógica . Nessa busca, o filósofo desenvolve o critério de identidade em seus conceitos de sentido e referência, e, consequentemente em seu exemplo clássico: A definição estrela da manhã e a estrela da tarde, utilizadas por séculos como uma coordenada geográfica, refere-se ao planeta Vênus. O sentido, aquilo que pode mudar em uma proposição, estrela da manhã ou da tarde, diz respeito a referência, o planeta Vênus. A compreensão de Frege é, semelhantemente à concepção analítica do círculo vienense, que uma proposição verdadeira é aquela intrinsecamente conexa a referência.

    Ora, visto que Frege visava a construção de uma linguagem absolutamente lógica e universal, sem erros ou ambiguidades, e Carnap, definindo e delimitando o conhecimento válido aquele que é sujeito à empiria-positiva. A metafísica, na perspectiva contrária à Carnap e Frege, jaz em castelos de cartas e em uma linguagem obscura e confusa e falha ao critério metodológico científico-filosófico e linguístico fregiano, ou para dizer tal como Carnap, a metafísica é inútil. O dogmatismo metafísico impede a construção de uma linguagem pura e de uma concepção de mundo científico e, como diria Marilena Chauí, majoritariamente são estruturas de teologias-políticas, enquanto que o desenvolvimento de um pensar positivo e pragmático propicia um mundo mais belo e sublime para todos: “A concepção científica do mundo serve a vida, e a vida a acolhe”.





RESUMO: CARTA ENCÍCLICA, FIDES ET RATIO

    Objeto tradicionalmente debatido, sobretudo em seu apogeu, com a institucionalização das religiões, a saber, o lugar da fé, da filosofia e da teologia persegue o pensamento humano em sua epocalidade. As reflexões que versam acerca dos domínios de cada área do saber perpassam em uma linha tênue no qual, além da escassez consensual entre os pensadores, desenvolvem-se seja dispondo a racionalidade filosófica refém da autoridade teológica exteriorizada na Sagrada Escritura e nos dogmas religiosos ou antepondo a filosofia à vivência da fé. Seja como for, qualquer das posturas que possa estabelecer a área de exercício da razão e da fé abrange consequências epistemológicas, enquanto tal demarcação permanece no âmbito do pensamento reflexivo, e políticas, quando se convertem de convicções teóricas em atos na vida pública. 

    Desde as primeiras manifestações de caráter racional na região jônica da Grécia do século VI a.C., a fé e a razão encontram-se de maneira diretamente interligadas oscilando entre suas vertentes, opondo-se ou ainda misturando-as em um só saber. Dos fragmentos de Tales que versam acerca da divindade do mundo perpassando pelas influências pitagóricas na organização política e intelectual da Magna Grécia; da mística platônica à sistemática cristã do pensamento heleno em seus dogmas; de Descartes e seu fundamento epistêmico indubitável em Deus à ontoteologia de Heidegger. O debate é interminável. À vista da permanência do dilema no percurso do pensamento ocidental, traçar o itinerário do local da fé e da razão é percorrer a história da filosofia em sua completude. 

    João Paulo II, sucedendo o posto máximo da hierarquia da Igreja Católica Apostólica-Romana durante a transição do milênio e inserindo-se neste tempestuoso debate, procura responder à questão acerca do local da fé e razão no âmbito epistemológico e teológico em sua encíclica Fides et Ratio.

    Seja como for, o século XVII abriu suas fronteiras para a posteridade preparando os moldes estruturais que sustentam a sociedade atual no qual o Papa dialoga em sua exortação apostólica. Como efeito das transformações sócio-históricas que ocorreram no Ocidente, desde o fim do período medieval, atualmente o mundo encontra-se desencantado. Consequentemente, tanto a filosofia quanto a fé e suas categorias teológicas, na era moderna-contemporânea, resplandecem fragilizadas. Eis, portanto, o resultado da tragicidade do real que o homem se depara desde o fim do século XIX: da condição desumana dos assalariados nas indústrias europeias, à morte de Deus anunciada por Nietzsche, o fracasso da utópica razão esclarecida dos Iluministas, a vulgarização do sofrimento nos campos de batalha e de concentração das duas grandes guerras, a ascensão sistemas políticos totalitários, dentre outros demais males que fizeram o homem, em um ato de contestação, protestar diante do silêncio de Deus e do eclipse da razão. Em outras palavras, todo projeto teológico, filosófico e social idealizado tanto por filósofos quanto por teólogos passados falharam. Visto isso, a demarcação e definição do domínio do saber teológico e filosófico converte-se em uma questão de proporção magna no momento vigente resultante da crise da metafísica estabelecida por Kant e Nietzsche em especial nas esferas epistemológicas da discussão. 

    Levando em consideração tanto a importância da discussão na contemporaneidade quanto a sua permanência no pensamento ocidental, João Paulo II começa desenvolvendo sua encíclica através da própria exortação do conhecimento. Diz o Papa, que a humanidade em seu todo busca a Verdade, um saber essencial que possibilite uma compreensão clara e distinta de sua existência, sobretudo de suas questões inteligíveis e fundamentais para a vida humana, que constituem conjuntamente com suas respostas, diga-se de passagem, uma das maiores riquezas que a humanidade retém. A sublimidade da filosofia, da razão, resplandece em sua aptidão para responder a estas indagações, — não é sem motivo que Pitágoras e os helenos cunharam o termo amor à sabedoria para designar tal ciência. Contudo, ainda que os filósofos sejam capazes de alçarem suas asas do entendimento rumo à Verdade, a realidade desta última manifesta-se de múltiplas maneiras, em especial, por meio da sabedoria de Jesus Cristo que coordena o seu Corpo Místico, ligação entre o sagrado e o profano, a Igreja Católica. 

    Esta afirma e reafirma a importância da razão e da filosofia para os indivíduos, colaborando e dando novas direções para o desenvolvimento das ciências desde seus primeiros anos. Com base nos últimos Concílios, na tradição e dogmática católica, João Paulo II reitera a importância de uma religiosidade esclarecida para uma compreensão adequada das Sagradas Escrituras e do Evangelho. A fé, seja como for, não necessita, essencialmente, da razão filosófica, — como atestam diversos personagens bíblicos que não possuíam uma vasta formação intelectual. O Concílio Vaticano II, nesse sentido, é categórico acerca desta definição: a fé nasce e subsiste mediante a obediência do indivíduo a Deus e em sua Revelação, pleníssima na pessoa do Verbum Incarnatum. 

    O entendimento sobressaia-se alicerçado na fé, ou seja, na obediência a Deus, todavia, não com uma razão que subjuga-se cegamente aos decretos divinos e eclesiais, mas que medita e reflete acerca dos princípios revelados. Fato este exaltado no decorrer das narrativas sapienciais presentes na Bíblia e realizado por São Paulo em Atenas e pelos Padres da Igreja na dialética de helenização-cristianização do Ocidente. A fé e a razão, nos escritos veterotestamentários, entrelaçam-se: a razão alcança sua plenitude através do salto de fé na contemplação do Totalmente Outro. Com temor e tremor perante o mistério da transcendentalidade divina, o princípio da sabedoria desenvolve-se no homem. Não há, portanto, divergência ou oposição entre ambas, ainda que com um lento e vagaroso processo histórico o racionalismo escolástico exacerbado gerasse o estopim que resultaria na separação e repulsa da fé e razão a partir do século XVI. 

    Com efeito, a concepção do Papa de teologia e filosofia abre-se uma oportunidade de diálogo com os impasses adquiridos do século XIX para o período vigente possibilitando uma trajetória viável para ambos os domínios do saber que, diga-se de passagem, encontram-se mitigados. Definir o local de atuação das realizações teológicas e filosóficas no período atual consiste em repensar o papel que possuem e as consequências que emanam das posturas que estabelecem seus domínios. A emancipação intelectual que os Iluministas idealizaram falhou, todavia, a religião no mundo secularizado subsiste. A filosofia, contudo, fechada em seu próprio círculo, não medita os princípios metafísicos e especulativos, próprios do seu entendimento, possibilitando que o cogito esclarecido e a sociedade tecno-científica dirijam-se para um período dominado pelo niilismo tornando as manifestações do entendimento humano instrumentos de opressão e exploração dos indivíduos. 

    O modo de operação positivista de conceber o real pouco a pouco vai destruindo todas as tradições utópicas, éticas e estritamente humanas, dito doutro modo, o homem deixa de sonhar por um mundo melhor. À medida que o pensamento cientificista cresce e se consolida na sociedade, progressivamente diminui e se enfraquece o alcance dos valores morais. Logo, a religião deve assumir uma postura distinta na sociedade atual, é preciso que os preceitos divinos deixem de ser objetos especulativos indiscutíveis e se tornem abertos ao diálogo e, mediante isto, desenvolver práxis vividas das boas obras, consequência da fé. Uma teologia racional torna possível o engajamento e enfrentamento dos males atuais com a esperança para com um futuro mais sublime. A religiosidade deve ser uma prática racional vinculada com as obras de justiça e caridade visando o bem-estar entre os homens. Para a fé e teologia, não é conveniente, portanto, fechar-se em relação ao mundo. Além de que, a teologia dedicando-se fechada e distante do mundo torna-se uma ciência com uma postura negligente aos anseios de justiça expostos no Sermão da Montanha. Ter como objeto de investigação a Revelação e utilizar de critérios argumentos lógicos-racionais para construir seu repertório dogmático e racionalista propicia o aspecto pragmático da vivência religiosa e a salubridade da evangelização na contemporaneidade. 

    Visto isso, a teologia deve, segundo a encíclica, utilizar-se da filosofia para a evangelização. A razão, noção comum entre ambos os saberes, é o terreno onde há possibilidade de diálogo e enriquecimento cultural recíproco, para problemas contemporâneos comuns e relevantes para ambos. Ademais, toda a tradição cristã é fruto da relação e diálogo com os movimentos filosóficos e científicos vigentes em sua época, hoje, igualmente, torna-se de suma importância hoje construir pontes que unem os saberes com real e sincera simpatia na escuta do outro.



  • REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

JOÃO PAULO II, Papa. Carta encíclica Fides et Ratio: sobre as relações entre fé e razão. São Paulo: Paulinas, 2010.

SÍNTESE E PROBLEMATIZAÇÃO DO VALOR DA FILOSOFIA DE BERTRAND RUSSELL

    A reflexão do valor da filosofia perpassa o tempo e suas alternâncias. No mundo secularizado a questão toma proporções magnas e distintas mediante os desdobramentos próprios da passagem do período moderno ao contemporâneo. As reflexões acerca da problemática do papel do saber filosófico, do desenvolvimento das ciências exatas e naturais e do pensamento submetido a práxis capitalista ultrapassam os domínios herméticos dos intelectuais, resplandecendo em outras diversas manifestações culturais e no senso comum através da pergunta: Qual a utilidade e função da filosofia? Após os movimentos históricos do início do século XIX à contemporaneidade, a demarcação e limitação dos reinos dos diversos ramos do conhecimento tornou-se objeto de reflexão diante da ascensão de correntes filosóficas sistematizantes. As questões filosóficas direcionaram-se para a reflexão e enfrentamento ético, político e religioso na contemporaneidade. O ato de refletir sobre o “escândalo” da racionalidade contemplativa frente à prática, que rege a humanidade atualmente, é o pensar acerca das raízes e fundamentos da filosofia. 

    Russel coloca que o fundamento da filosofia é o pensar contemplativo que ascende à autonomia e à liberdade. A contemplação “neutra” do todo proporciona uma superação da alteridade, levando, consequentemente, a uma postura ético-política guiada por uma epistemologia abrangente e aberta à multiplicidade, — o Eu descobre o Não-Eu em um todo contemplativo. A filosofia não é dogmática, não possui verdades indubitáveis e leis no qual estrutura-se. Paradoxalmente, seu próprio valor encontra-se nesta incerteza e “imperfeição” ao não responder resolutamente seus problemas aporéticos. Nas aporias que o pensamento filosófico esforça-se para responder, a linguagem para compreender e interpretar o mundo se expande. O mundo, o Eu, ampliam-se com as suas questões sem respostas. 

    A perspectiva russeliana, ao contrário de seus contemporâneos analíticos, estabelece o seu domínio de pensamento contemplativo. Russel, aparentemente, retoma a noção do modo de pensar grego com as esperanças iluministas e idealistas (de Fichte e Schelling, especificamente). Com efeito, sua posição sobre o valor da filosofia é válida, mas não suficiente, diante da pressão que a sociedade tecnocrática estabelece para sua organização, porém encontra seu limite pelo mesmo motivo que é válida. Russel não apresenta em sua exortação à filosofia os impactos que a organização social exerce, influenciando e determinando o pensamento humano, ou seja, confere “[...] à educação um poder que ela não tem. Ela é apenas a imagem e o reflexo da sociedade. Ela a imita e a reproduz em tamanho reduzido; ela não a cria”. O pensar está sujeito à epocalidade do pensamento sob determinadas condições socioeconômicas, políticas e culturais. A contemplação, ainda que necessária na experiência fática de vida presente, é deslocada e impotente, pois “[...] não é com indivíduos isolados que se refaz a constituição moral dos povos”.




  • REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Russell, Bertrand. The Problems of Philosophy. Home University Library (1912). Oxford University Press, 1959. Reimpresso em 1971-2. Capítulo 15. Tradução de Jaimir Conte.
Durkheim, Émile. O suícidio: estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2019.


RESUMO: KANT’S CONCEPTION OF ANALYTIC JUDGMENT, IAN PROOPS

Kant, na primeira edição da Crítica da Razão Pura, apresenta quatro noções de juízos analíticos. Considerando a confusão dos comentadores, a importância do conceito no léxico de Kant e na história da filosofia, Ian Proops visa esclarecer em seu ensaio Kant’s Conception Of Analytic Judgment (2005), definindo e explicando metodologicamente, os empregos de juízos analíticos que o autor utiliza no decorrer da Crítica. Harmonizando-se com a disposição do conceito na primeira Crítica, Proops segue a caracterização posta por Kant, isto é, juízos analíticos como: Critério de Contenção (I); Princípio de Identidade (II); Clarificação-Explicação (III); Apreensão via Princípio de Não-Contradição (IV). Seguindo respectivamente a ordem estabelecida no trabalho analisado, o presente resumo tem como objetivo sistematizar as concepções de juízos analíticos na primeira Crítica mediante a exegese de Proops. 

    Na distinção que Kant apresenta na primeira Crítica, a base de todo juízo é divida em dois modos. De maneira sintética, quando algum predicado B está totalmente alheio e estranho ao sujeito A. Ou de modo analítico, no caso do predicado B ter algo que o sujeito A possui, pertencendo, consequentemente, ao sujeito. O juízo analítico, nessa primeira manifestação da Crítica, encontra-se sob a compreensão do Critério de Contenção, que é majoritariamente afirmativo, obtendo sua afirmação através da pertença “subliminar” do predicado no sujeito. Ora, como Kant afirma categoricamente que o Critério de Contenção aplica-se tão somente em juízos afirmativos, sua aplicação abrange, por consequência, a sua negação. Desta forma, segundo Proops, o juízo analítico, além de conter, ele exclui. O juízo analítico, portanto, apresenta-se pelo Critério de Contenção-Exclusão. 

    Com efeito, a primeira definição kantiana de juízos analíticos foi objeto de debates e contestações em dois principais tópicos. Na primeira objeção que Proops expõe, o Critério de Contenção-Exclusão aplica-se, contrariamente à perspectiva leibniziana, apenas em juízos nos quais possuem a estrutura de sujeito-predicado afirmativa impossibilitando a condições hipotéticas e disjuntivas. Segundamente, Kant não explica claramente como o predicado está contido no sujeito, para os opositores do criticismo, o Critério é uma metáfora inexplicável e subjetivista. Frege, Wittgenstein e outros, também rejeitam a análise epistemológica de Kant visto que a predicação está contida no próprio objeto singular e não no conceito. Seja como for, segundo Proops, o primeiro Critério não é metafórico ou subjetivista, pelo contrário, tal definição de juízo analítico encontra-se claro e distinto através do segundo Critério compreendido pelo Princípio de Identidade exposto na Crítica e, sobretudo, nos Prolegômenos. 

    Na segunda concepção de juízo analítico na Crítica por Princípio de Identidade, Kant elabora uma sutil alteração ou refinamento da primeira concepção apresentada. Seguindo a tradição lógica-filosófica, o juízo analítico seria aquele no qual o sujeito é correspondente ao predicado, ou seja, sempre é afirmativo. Exemplificando o princípio através da fórmula lógica de Leibniz, encontramos a validade do juízo analítico quando X é o mesmo que Y se, e somente se, todo predicado de X for igualmente verdadeiro em relação ao sujeito Y. Fazendo o uso desta segunda concepção presente na Crítica, Proops afirma, na direção contrária dos adeptos da segunda objeção do Critério de Contenção-Exclusão, que o Princípio de Identidade desenvolvido no terceiro capítulo da obra magna kantiana aponta a validade da primeira definição de juízo analítico. 

    Na seção seguinte da apresentação do Princípio de Identidade como juízo analítico, Kant faz uma distinção significativa entre a perspectiva analítica e sintética. A terceira concepção exposta na Crítica, marca a divisão entre o juízo explicativo e o ampliativo. Ora, vimos anteriormente que os juízos analíticos são afirmativos tanto por meio da primeira quanto da segunda definição, logo pela via analítica, todo conhecimento desenvolvido por meio deste método explicam os conceitos universais sem lhes acrescentar nenhuma ou pouca informação, e o predicado, necessariamente, é decomposto em conceitos parciais a priori . Visto isso, o juízo sintético seria aquele predicado que é pensado sem estar contido pelo Princípio de Identidade, ampliando, portanto, o conhecimento dado ao sujeito mediante a investigação da experiência empírica de algum fenômeno singular. 

    De todas as quatro definições que Kant coloca de juízos analíticos, a quarta é o princípio supremo de todo juízo analítico. O princípio da Não-Contradição é o paradigma para toda noção geral de verdade a priori, — seja à afirmação pela Identidade ou à negação pela Contradição, o predicado expressa de antemão algo já presente no sujeito. O filósofo apoia-se em Leibniz, ainda que com diferenças, ao eleger o Princípio de Identidade-ou-Contradição como as duas bases necessárias para todo entendimento humano. Esse é o critério presente em todas as demais concepções de juízos analíticos por sintetizar o caráter verdadeiro e universal de toda análise verdadeira. 

    Com efeito, Proops não exagera ao elencar tal Princípio como o mais fundamental de toda compreensão de analiticidade na primeira edição da Crítica e ao salientar a importância das definições kantianas de juízos analíticos. Além de ser um dos eixos epistemológicos que levariam a perda da credibilidade do saber metafísico, o delineamento conceitual kantiano permanece importante e necessário na contemporaneidade, destaca-se, sobretudo, sua função elementar nas colaborações fregerianas para o pensamento filosófico analítico, e, consequentemente, para os avanços nas investigações das estruturas lógicas da linguagem e do entendimento.




  • BIBLIOGRAFIA:
PROOPS, Ian. Kant's Conception of Analytic Judgment. International Phenomenological Society. Vol. 70, No. 3 (May, 2005), pp. 588-612. Acesso em: http://www.jstor.org/stable/40040818

O CONCEITO DE ALMA E CONSCIÊNCIA EM SAMUEL CLARKE

Samuel Clarke, discípulo de Isaac Newton, filósofo, teólogo e bispo anglicano, foi um dos pensadores britânicos mais notáveis do século XVIII. Clarke, discorreu acerca de diversos tópicos no decorrer de sua vida, destacando-se, sobretudo, no campo metafísico. Sua principal obra, dedicada a refutar os principais tópicos ontológicos do sistema espinosano e hobbesiano, esbarra em diferentes assuntos que, oriundos do dualismo cartesiano, perdurariam no pensamento moderno. Dentre os tópicos que Clarke desenvolve em sua obra magna e em suas correspondências com Anthony Collins, está seu entendimento sobre a questão levantada por Descartes, debatida veemente por inúmeros pensadores no início da modernidade como Locke e Leibniz, no que diz respeito à constituição do dualismo entre mente-corpo.


    Os argumentos que Clarke utiliza para desenvolver seus argumentos acerca da alma e consciência humana, demonstram a importância do tema neste período da filosofia anglo-americana. As doutrinas materialistas e naturalistas de Espinosa e Hobbes difundiram-se por toda Europa Ocidental, ainda que modificadas por seus seguidores.


    Dentre os aspectos do pensamento materialista que circulavam no Reino Unido no século XVIII, estava o emergentismo que considerava a alma e a consciência uma propriedade que provém de uma organização de componentes de matéria. Clarke rejeita tal posicionamento, afirmando a intangibilidade da alma por uma versão do princípio chamado posteriormente por Kant na Crítica da Razão Pura de “Aquiles de todos os raciocínios dialéticos da psicologia pura” (A 351-352), onde a indivisibilidade do sujeito contradiz a divisibilidade da matéria. A consciência, para existir, exige que pertença a um sujeito individual, indivisível e uniforme.


    A negação de Clarke contra a emergência da consciência pela matéria acontece pelaimplicação lógica de que o composto qualitativo da totalidade da alma é, simultaneamente,parte e totalidade da alma, impossível, portanto, ser resultante da matéria, levando em consideração que esta última é constituída de entes particulares mensuráveis e quantificáveis. É necessário que a alma seja imaterial e a consciência signifique ato reflexo. Caso contrário, seria preciso dizer, em primeiro lugar, que a matéria seja dotada de percepção e inteligência e, segundamente, os seus aspectos qualitativos e subjetivos dos objetos fossem intrínseco a eles.


    No primeiro caso, Clarke argumenta que a percepção e a inteligência são atributos do ato de reflexão pelo qual o indivíduo compreende que os seus pensamentos, suas percepções e ações são próprias e particulares. O filósofo deliberadamente não explica como realizam-se os procedimentos que ocorrem na consciência da pessoa humana, contudo afirma que de fato não é necessário tal explicação, em função de seu argumento conseguir demonstrar universalmente que é impossível que a matéria possua pensamento ou consciência.


    Na segunda hipótese, no qual Clarke constrói seu argumento, os aspectos qualitativos dos conteúdos provenientes dos fenômenos são intrinsecamente pertencentes ao sujeito. Com efeito, Johannes Kepler, cerca de um século antes, demonstrara categoricamente, por meio de seus estudos na óptica e dióptrica, que são os objetos que emitem a luz ao olho humano, e não o inverso (tal como concebido dos gregos até o século X d.C.). Newton progride com a óptica kepleriana: não apenas os objetos refletem a luz, mas também as cores, ou seja, em si, os objetos não possuem a qualidade da cor. No âmbito da sensibilidade e da imanência, cabe apenas a forma do objeto e seu movimento. Cores, sons, sabores, aromas, toques, etc. são modificações ou pensamentos da mente que são favorecidos pela potência circunstancial que o fenômeno têm para gerar alguma impressão no sujeito.


    Clarke, ademais, afirma que a alma é parcialmente extensa. Na esteira de suas compreensões metafísicas, apenas Deus não está sujeito ao espaço-tempo, consequentemente, a alma não está fora do mundo, a despeito de sua incorporeidade. A determinação do local da alma é obtida, principalmente, por inferências lógicas, ainda que Clarke considere uma parte do cérebro no qual “encontra-se”, o sensorium. Dois argumentos autônomos sustentam a condição vertical da alma: Onde há possibilidade de ação, há substância. Ora, verifica-se claramente uma relação alma-corpo; segue-se disso que a alma é parcialmente coextensivaao cérebro. Clarke não explica além de raciocínios lógicos como sucede-se tal relação alma-corpo. Esta parte da definição do seu conceito de alma é dubitável por não ater-se às críticas de Henry More e Leibniz quanto aos impasses presentes na concepção holmenmerista.


    Seja como for, a concepção de alma e consciência nos trabalhos e correspondências de Clarke contribuem indiretamente para a filosofia da mente em decorrência das intenções do autor nessas áreas de investigação do entendimento. Clarke estava interessado em solucionar, com um eixo de pensamento igualmente forte e válido, as implicações ontoteológicas e éticas dos sistemas naturalistas e materialistas que abalavam as estruturas do pensamento religioso cristão e, por acaso, acaba também debatendo e afastado-se de outras correntes filosóficas vigentes, como a de Leibniz, Descartes e Locke. Como vimos anteriormente, ainda que com a ausência de algumas explicações significativas no que diz respeito ao tema, a alma e a consciência em Clarke são incorpóreas, sujeitas às condições espaciais, e aptas às compreensões qualitativas dos fenômenos através do ato reflexo sobre as impressões que este último suscita no sujeito transcendental simples.


    
                                                                    



● REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CLARKE, Samuel. A Demonstration of the Being and Attributes of God And Other
Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
______. The Correspondence of Samuel Clarke and Anthony Collins. Buffalo, NY:
Broadview Press, 2011.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 5. Ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2001.
ROZEMOND, Martin. “The Achilles Argument and the Nature of Matter in the
Clarke-Collins Correspondence”. The Achilles of Rationalist Psychology. London:
Springer, 2008, p. 159–175.
______. “Can Matter Think? The Mind-Body Problem in the Clarke-Collins
Correspondence”. Topics in Early Modern Philosophy of Mind. London: Springer,
2009, p. 171–192.

As múltiplas faces do modo-de-ser-cuidado segundo Luigina Mortari

Resumo:

Das concepções mitológicas à mentalidade tecno-científica contemporânea, a essência do homem sempre constituiu um tópico importante no itinerário do pensamento humano. Relevante para todos as manifestações existenciais do homem, a compreensão de sua essência resulta em implicações sociopolíticas de proporções magnas visto que, como Luigina Mortari aponta na Filosofia do Cuidado (2018) com base em Aristóteles, Winnicott e na tradição fenomenológica, não há ser humano sozinho, pelo contrário, todos são entes relacionais. “Ser-aí-com-outros", a dependência relacional com o mundo em sua totalidade está dada desde o nascimento do indivíduo, isto é, a partir do momento em que começa a con-viver: Carente de Ser, o cuidado como necessidade ontológica e vital do ser-aí resplandece em suas múltiplas faces na Faktische Lebenserfahrung: na chama que arde no olhar dos apaixonados, na amabilidade do pai para com seu filho, na dedicação do professor em orientar seus alunos etc; o princípio da amabilidade norteadora do ser-aí, o cuidado, manifesta-se na essência da singularidade plural dos indivíduos. Enganam-se, por conseguinte, os teóricos políticos e pensadores do Ocidente que constroem muros exaltando a autossuficiência do homem enfraquecendo as pontes que os unem. Alicerçada por V. Goldschmidt em Tempo Histórico e Tempo Lógico na Interpretação de Sistemas Filosóficos (1963), e D. Folscheid & J-J. Wunenburguer em Metodologia Filosófica (2000), o artigo analisará as obras referenciadas com o intuito de compreender o cuidado em sua natureza elementar, os modos no qual se apresenta na cotidianidade e, por fim, elucidar os fundamentos da filosofia do cuidado em Luigina Mortari.

● Palavras-chave: Mortari; Cuidado; Filosofia; Ética; Ontologia.

Introdução:

    A reflexão acerca da essência do homem ultrapassa a temporalidade do discurso antropológico-filosófico. Das concepções pré-filosóficas às compreensões behavioristas contemporâneas, a constituição integral do ser humano foi objeto de investigação em diferentes perspectivas que compartilham da mesma noção comum, quiçá uma lei eterna e universal da natureza: o homem é um ente intrinsecamente social. Luigina Mortari insere-se nessa busca pela compreensão dos fundamentos das relações humanas. Mortari, diferentemente de outros pensadores que dedicaram-se a mesma investigação antropológica, não procura elucidar as condições que versam acerca da totalidade do homem, mas uma específica e fundamental: o caráter relacional dos homens e sua dependência ontológica e física de ser-aí-com-outros, o cuidado.
    Aspecto elementar da condição humana, o cuidado do ser-aí-com-outros constitui o centro de toda sociabilidade e de possível engajamento ético-político diante das etapas atuais do processo civilizatório ocidental. Heidegger em Ser e Tempo (2005) ilustra a dependência ontológica do ser-aí através da alegoria sobre a origem do homem: resumidamente, após o Cuidado pedir ao Céu que preenchesse de vida sua porção de terra, a Terra e o Céu reivindicam conflituosamente o homem, o Tempo visando dar fim aos conflitos entre as personagens determina que, enquanto houvesse vida, o homem estaria dependente do Cuidado, sua alma encaminharia-se posteriormente para o Céu e o seu corpo, de volta à Terra. Luigina Mortari, em suas reflexões fenomenológicas da condição social humana, atém-se no personagem e na propriedade do Cuidado. Cuidado este que escapa a sistematização e ao crivo da racionalidade do sujeito cartesiano, mas encontra-se pleno na espontaneidade da razão do coração no encontro com o Outro, ou seja, na loucura existencial da ruptura ontológica para com o mundo na fusão extática do ser-aí na intimidade da con-vivência com o Outro (MORTARI, 2018).

1.1. As manifestações do modo-de-ser cuidado:

    Existir é a expansão do Ser no âmago necessário do con-viver. O ser humano compartilha sua existência desde sua concepção no ventre da mãe. Os entes são, necessária e naturalmente, relacionais. Contudo, Mortari aponta que ao mesmo tempo que o ser-aí depende e sustenta-se mediante a convivência, sua vulnerabilidade sobressai de ambos os modos: tanto na solidão quanto na união, o ser-aí está vulnerável. Na solidão, o homem é insuficiente e incapaz de desenvolver-se plenamente enquanto ser humano; na união, dependentes um dos outros, o ser humano encontra-se sujeito aos atos relacionais de outrem e responsável por suas ações como efeito da teia relacional no qual está inserido. O encontro com a totalidade Infinita de Lévinas, “[...] nos alimenta de ser, mas, ao mesmo tempo, nos limita. Somos necessitados do outro, e por isso, procuramos a relação com o outro” (MORTARI, 2018, p. 52).
    Seja como for, é mediante esta fragilidade do ser-aí que o Cuidado e sua condição ontológica se manifesta, nesta ruptura da horizontalidade nas relações humanas. Com efeito, Heidegger não elencou sem razão o Cuidado como um dos constituintes da origem humana: “[...] Em seu ser-no-mundo cotidiano e que lhe pertence a cada vez, importa-lhe o seu ser. Assim como no falar sobre o mundo reside um auto-expressar-se do ser-aí sobre si mesmo, do mesmo modo todo manusear que cuida de é um cuidar do ser do ser-aí” (HEIDEGGER,1997, p. 21). No decorrer da história humana, o Cuidado apresenta-se de sutilmente em inúmeros modos nas macros e micros-estruturas da sociedade: nas instituições sociais, na moral, na ciência, nos templos, no mundo comercial, na chama que arde no olhar dos apaixonados, na amabilidade do pai para com seu filho, na dedicação do professor em orientar seus alunos. Onde há seres humanos, o Cuidado está presente. A importância deste componente humano, não se limita apenas aos benefícios do bem-estar social (como designavam alguns filósofos políticos modernos), mas à fecundidade e plenitude do Ser. A riqueza e a plenitude do ser-aí que se faz no contato com o Outro, na experiência fática de vida — o que é, diga-se de passagem, afirmado desde a concepção eudaimônica de Aristóteles na Ética a Nicômaco. Contato este que realiza-se pela razão do coração: entes vulneráveis que clamam uns aos outros pela percepção da delicadeza do ser-aí; consumação do Ser e bem-aventurança recíproca, a compreensão da responsabilidade de Cuidar de
Outrem e do Mundo que efetua-se na harmonia das relações, e, deste modo: “Sentimos a alegria intensa e leve do ser-aí” (MORTARI, 2008, p. 53).
    Ainda que os aspectos relacionais do ser-aí propiciem um aumento na potência de ação dos indivíduos. Da Revolução Mercantil à Contemporaneidade, os vínculos relacionais do Cuidado enfraqueceram-se. A “descoberta” da individualidade no pensamento Ocidental desencadeou os paradigmas da autossuficiência humana que, ao contrário do que pensou Nietzsche com a ascensão do além-homem, tão somente exterioriza a pequenez do indivíduo. De todas as consequências da exaltação da autossuficiência humana, destacam-se duas
posturas predominantes perante a existência: em primeiro lugar, a tendência do niilismo e suas expressões nos mais diferentes âmbitos da con-vivência; em segundo, não menos importante, o hedonismo do viver e a práxis como causa eficiente e final de todas as ações humanas. Do niilismo, despontam a melancolia e a languidez que, por sua vez, “[...] só inspiram ao indivíduo indiferença e distanciamento” (DURKHEIM, 2019, p. 357). Do hedonismo, atrofiado e sustentado pelos desenvolvimentos industriais, surgem os desejos e os apetites impossíveis de serem satisfeitos que desaguam na desilusão e na melancolia. Com efeito, ambas são dialeticamente interligadas: o hedonismo, provindo da fetichização dos desejos e da mercadoria, necessariamente insaciável, gera o niilismo, visto que, reciprocamente, “[...] todas aquelas sensações novas, indefinidamente acumuladas, não conseguiram constituir um sólido capital de felicidade do qual pudéssemos viver nos dias de provações” (DURKHEIM, 2019, p. 326).

1.1.2 A Técnica e o Pensamento Meditativo como modo-de-ser-cuidado:

    Copérnico e Kepler forneceram as bases do que viria a ser a filosofia, a ciência e a técnica moderna. Com Galileu Galilei, todavia, começa-se uma mudança substancial nas explicações filosóficas e matemáticas das estruturas e nos modos de compreensão dos fenômenos da natureza. No ensaio Il Saggiatore publicado em 1623, o astrônomo e físico italiano afirma categoricamente que os fatos verdadeiros que se sucedem na natureza são matemáticos e geométricos, dimensionáveis e calculáveis, — Galilei fornece o que Heidegger designa na Conferência Sobre A Questão da Técnica de 1933 como a essência, ou armação, da τέχνή moderna: “A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que, [...] está escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas[...]; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto” (GALILEU, 1983, p. 32, grifo meu). Perde-se, com efeito, o valor dos aspectos qualitativos no modus operandi de filosofar acerca dos fenômenos naturais e a possibilidade de obtenção de um conhecimento seguro mediante o uso do próprio exercício da razão natural estabelece o princípio de cognoscibilidade próprio do saber científico.
    A despeito das contribuições galileanas e baconianas no progresso do pensamento filosófico-científico moderno serem colossais é com René Descartes, sucessor dos trabalhos de Galilei, que há uma clarificação e distinção nos princípios que serão posteriormente os paradigmas no pensamento ocidental. Com efeito, diz Alexandre Koyré acerca da importância do fundador da filosofia moderna:“[...] Não foi, em todo caso, Galileu, nem Bruno, e sim Descartes quem clara e distintamente formulou os princípios da nova ciência [...]” (KOYRÉ, 2006, p. 89).
    Pela elaboração de um método rigoroso capaz de sistematizar as diversas manifestações do saber científico em uma unidade metodológica que se sobressaísse na simetria presente entre as diferentes áreas de atuação do entendimento, Descartes satisfaz, firmando um novo paradigma na história do pensamento humano, à necessidade do seu período de uma estrutura epistemológica válida e universal que possibilitasse uma estabilidade maior no desenvolvimento das ciências (VERNEAUX, 1977). Consequência da valorização renascentista do homem, do êxtase causado pelos critérios matemáticos-geométricos e seus avanços nas ciências positivas, da expansão econômica e política das grandes potências, da ordenação e racionalização do real por Descartes, o otimismo do progresso constrói a nova civilização predominante na Europa.
    Contudo, diz Heidegger, o cogito cartesiano objetifica o ente. O Ser, e consequentemente o ser-aí, é esvaziado pela técnica moderna. O ser-aí, da consolidação da Revolução Científica no Ocidente à pós-modernidade, está em uma crescente deserção e fuga de pensamento e reflexão. Com a matematização do mundo e do Ser, o pensamento calculativo desenvolve-se: a causa eficiente antecipa a final; o cálculo predomina ainda que não se utilize de noções estritamente matemáticas; é um pensamento que analisa metodicamente “[...] possibilidades continuamente novas, sempre com maiores perspectivas e simultaneamente mais econômicas. O pensamento que calcula corre de oportunidade em oportunidade. O pensamento que calcula nunca para, nunca chega a meditar” (HEIDEGGER,1959, p. 13). Ora, a meditação ou reflexão é também um tipo de pensamento. Esta última, diferentemente do pensamento que calcula, pensa e reflete sobre o sentido ou causa final que está presente no mundo. É este modo de pensar que a técnica e a sociedade tecnocrática obscurecem e fazem o homem atual careça de pensamento.
    Heidegger, em seu discurso tardio sobre a Serenidade, estabelece a importância e o modo no qual o pensamento pode ser uma via de acesso para o Cuidado. O ato reflexivo não precisa elevar-se patamares transcendentais ou místicos, mas ater-se à Faktische Lebenserfahrung, ou seja, é suficiente “[...] demorarmo-nos (verweilen) junto do que está perto e meditarmos sobre o que está mais próximo: aquilo que diz respeito a cada um de nós, aqui e agora; aqui, neste pedaço de terra natal; agora, na presente hora universal” (HEIDEGGER, 1959, p. 14).
    A difusão da técnica moderna desencantou o mundo, gerando, como vimos anteriormente, a dialética niilista-hedonista e seus desdobramentos que desencadeiam o mal-estar na contemporaneidade. Entretanto, apesar da condição insalubre da sociedade tecnocrática, o Cuidado apresenta-se, além de seus múltiplos modos, no pensamento reflexivo e na serenidade perante à técnica e às circunstâncias instáveis da transformação vigente no mundo. O Cuidado, neste sentido, assumiria aspectos sociopolíticos e educacionais. A meditação sobre a relação com a técnica, exerceria uma postura crítica e distante em relação aos avanços tecno-científicos, procuraria estabelecer um novo enraizamento das relações humanas através da proximidade com o mundo. A técnica, está em todos os âmbitos da existência, intimamente próxima dos indivíduos na contemporaneidade, portanto, como diz Heidegger, seria tolice condenar ou fugir dela, mas é preciso não se deixar retificar por ela
através do pensamento meditativo, e mediante isto, possuir a liberdade e a dignidade humana perante à τέχνή. O Cuidado está centrado no pensamento meditativo que a manifestação do ser no outro. O ato de cuidar envolve a educação e reflexão coletiva sobre o uso saudável da técnica, e desse modo podermos “[...] dizer «sim» à utilização inevitável dos objectos técnicos e podemos ao mesmo tempo dizer «não», impedindo que nos absorvam e, desse modo, verguem, confundam e, por fim, esgotem a nossa natureza (Wesen)” (HEIDEGGER, 1959, p. 23-24).

    Considerações finais:

    Como vimos anteriormente, o Cuidado é um dos componentes ontológicos fundamentais do ser-aí, que mitiga-se, mas, sem se esgotar, pela objetivação do ente e do Ser via à racionalização do mundo. Em virtude do caráter relacional do ser-aí, o Cuidado que manifesta-se cotidianamente na experiência fática de vida transcende seus impasses na era contemporânea. Todavia, para esta transcendência do ato de cuidar na relação com a infinitude e totalidade do Outro, é preciso tempo, serenidade e reflexão, que Heidegger desenvolve como sendo os protetores da essência humana na sociedade tecnocrática, e que pode ser também uma atitude de Cuidado e resistência à reificação maquínica que a sociedade pós-industrial impõe salvaguardando a dignidade e a liberdade do ser-aí.     O pensamento reflexivo é expressão plena do Cuidado. A reflexão torna possível a percepção da vulnerabilidade e solidão do ser-aí. É este modo-de-pensar-cuidado que faz o ser-aí guiar-se pela razão do coração, ou seja, através do amor. É o Cuidado exteriorizado no pensamento que medita sobre o uso da técnica para ceder a uma liberdade responsável e solidária na teia relacional que o ser-aí-com-outros desfruta. Compreendendo, portanto, o modo-de-ser-cuidado pela reflexão, diz Heidegger, “[...] o cuidar é referido ao agora num processo sem fim; ele diz: agora, do agora até depois, para um próximo agora”
(HEIDEGGER, 1997, p. 31).

                                                                        

                            

    ● REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DURKHEIM, Émile. O suícidio: estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2019)
FOLSCHIEID, D & WUNENBURGUER, J-J. Metodologia Filosófica. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
GALILEI, Galileu. “O Ensaiador”. In: Os Pensadores: Bruno, Galileu e Campanella. 3.
Ed. São Paulo: Editora Abril, 1983.
HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica (M. A. Werle, Trad.). Scientiae Studia, 5(3),
375- 398. 2007. Recuperado em 05 de março de 2018, de http://www.revistas.usp.br/ss/article/view/11117/12885 .
______. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1959.
______. O Conceito de Tempo. São Paulo: Edusp, 1997.
______. Ser e Tempo: Parte I. Petropólis: Editora Vozes, 2005.
KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2006.
MORTARI, Luigina. Filosofia do cuidado: filosofia do cuidado. São Paulo: Paulus, 2018.
VERNEAUX, Roger. Hístoria de La Filosofia Moderna. Barcelona: Editora Herder, 1977

RESUMO: PITÁGORAS E OS PITAGÓRICOS, CHARLES H. KAHN

• Apresentação: 
    Trabalho com inúmeras dificuldades em decorrência dos poucos registros escritos originais da tradição, Charles H. Kahn propõe uma síntese panorâmica sobre o pitagorismo do seu início às suas influências no período moderno e contemporâneo. Com o início no século VI a.C. a tradição pitagórica estende-se até a Revolução Científica pré-Iluminista no século XVII d.C. envolta sempre de divergências e marcos significativos em diversas áreas do pensamento ocidental. Permeada de lendas e mitos sobre a imagem do Pitágoras, procurar um registro que seja fidedigno da real imagem do filósofo abrange impasses enormes para o historiador da filosofia grega. 
    Pitágoras se tornara uma lenda em vida. Desde os pré-socráticos há quem retrate o pensador como um charlatão, como é o caso de Heráclito, e quem o considere como um verdadeiro filósofo, tal como Empédocles o retratava. A discussão perpassa o tempo, sem uma solução válida para a construção autêntica da imagem de Pitágoras. No âmbito acadêmico atual persistem os mesmos impasses: Burkert considera o mestre um líder, em contrapartida, Leonid Zhmud estima a capacidade intelectual revolucionária do filósofo. Kahn, no âmago destas discussões acadêmicas acerca do pitagorismo, refaz a trajetória da tradição no decorrer da história do pensamento. 

• Capítulo I: A questão pitagórica 
    Pitágoras, além do fascínio que há envolto de suas ideias e do mistério que sua tradição carrega, é também uma das imagens do período pré-socrático mais conhecidas. Aristóteles retrata que as questões pitagóricas é uma das bases fundamentais do pensamento de Platão, de modo similar, filósofos posteriores atribuem ao pensador da Magna Grécia o título de fundador da tradição platônica. Independentemente de como a recepção posterior de Pitágoras aconteceu na filosofia, o seu legado é evidente. Tanto Jâmblico como Whitehead consideram seu pensamento de suma importância para ciência da época: Pitágoras deu ênfase ao pensamento abstrato e na constituição matemática do real. Outros como Heráclito, Burkert e Zeller, definiam o fundador da tradição pitagórica como um líder religioso e fundador de uma seita, — ainda nesse mesmo raciocínio, Erick Frank considerava que as contribuições matemáticas não foram fruto do próprio Pitágoras, mas de matemáticos do sul da península itálica contemporâneos de Platão. 
    Há certo dualismo que justificam a imagem de Pitágoras no percorrer da história: o aspecto religioso-místico e a condição matemática-científica de suas ideias. De um lado, as questões religiosas da transmigração e sua imortalidade, a responsabilidade moral de se purificar e se libertar da escravidão da corporeidade. Doutro lado, o esforço para compreender a realidade sob a ordem geométrica mediante a ligação precisa entre música, fenômenos naturais e matemática. Para além dos ideais pitagóricos, há outra dualidade problemática acerca da tradição: a falta de conhecimento histórico seguro sobre a escola e a própria noção do termo “pitagórico” que repercute no tempo. Seja como for, ambos os dualismos, de ideias pitagóricas e de problemas que envolvem, tanto a condição espiritual como a matemática de Pitágoras constituem o cerne do seu pensamento. 

 • Capítulo II: Pitágoras e o modo de vida pitagórico
    Permeada de concepções lendárias e tardias de sua imagem, Pitágoras é retratado de modos completamente distintos a depender da época e do autor. Muitos, desde o período clássico consideram o filósofo como Apolo encarnado em decorrência de seu enorme saber. Diz Porfírio que Pitágoras adquiriu seu conhecimento após longas viagens em sua juventude no mundo de sua época: Aprendeu matemática e geometria com Anaximandro, estudou com os sábios egípcios, hebreus, árabes, caldeus, e com o próprio Zoroastro acerca de práticas religiosas e sobrenaturais. Já na Antiguidade Tardia, a humanidade de Pitágoras é obscurecida pelo aspecto místico que adquiriu se tornando um paradigma para de sabedoria. 
    Para além dos mitos, historicamente sabemos que Pitágoras nasceu no século VI a.C., filho de um indivíduo influente na ilha de Samos, diante de um amplo desenvolvimento intelectual e cultural da Grécia Antiga: ao leste do território grego, em Mileto, prosperava a ciência e a filosofia da natureza. Não há fontes históricas seguras quanto a vida de Pitágoras anterior a fundação de sua escola em Crotona, o que podemos deduzir é quanto a sua personalidade e a influência de sua seita moldaram a cenário político desta região da Magna Grécia. Com efeito, apesar dos poucos registros históricos, a escola pitagórica teve uma organização político-social extremamente forte e eficaz contra a ação do tempo. 
    Os participantes da escola estavam ligados a ritos comuns a todos, eles eram designados por se juntarem para escutar os ensinamentos do mestre como homakooi. As práticas dos membros também é objeto de discussão, eles possuíam um voto de silêncio tanto dos ensinamentos e das práticas, a pouca quantidade sobre o tópico é tratada por autores posteriores à escola original. Aristóteles, depois séculos dois, afirmava que os pitagóricos não restringiam o consumo de carne, já Empédocles e o outros pitagóricos pósteros defendiam que a crença na transmigração das almas implica necessariamente uma restrição alimentar. Burkert, segue uma linha semelhante à do Estagirita, o alemão indica que as questões alimentares originais foram pensadas para impedir possíveis conflitos com a religião já institucionalizada em Crotona. Seja como for, os ensinamentos e rituais pitagóricos que provavelmente serviam como meios de identificação dos membros, persistiram até a época de Platão como referência de várias atitudes belas e sublimes. 
    Mesmo possuindo diversos resquícios históricos seguros quanto a comunidade de Pitágoras, há pouco material científico ou filosófico que seja seguramente de autoria do líder. O tópico principal atribuído a Pitágoras é seu grande interesse na metempsicose. Empédocles considerava que a sabedoria que possuía era fruto da recordação das reencarnações anteriores, enquanto Heródoto e Íon de Quíos ironizavam esse aspecto religioso de Pitágoras. Entre o século V e IV, a fama do filósofo já havia se expandido por todo território grego divergindo de opções sobre sua imagem: sábio, líder religioso e charlatão. Figura tal que há de ser completamente transformada pela influência da escola platônica. Jâmblico posteriormente afirmará que após a morte do líder, os membros se dividiram em duas vertentes que se afirmavam como membros verdadeiros da comunidade pitagórica: os mathematikoi e os akousmata, sendo os primeiros interessados no desenvolvimento das ciências matemáticas e os segundos com enfoque na religiosidade apreendida do mestre. Interpretação tal que permite conceber a escola pitagórica constituída pela mescla de ambos os gêneros de conhecimento, a saber, o religioso e o científico. 
    Pitágoras está inserido dentro da primeira linhagem filosófica grega que se preocupava com questões cosmológicas e da natureza em si. Ainda assim, seu nome é mais relacionado com a metempsicose, fato compreensível, visto que esta nova forma de conceber a alma demonstra uma ruptura com a noção homérica, — o homem, a partir do momento que está sujeito ao eterno retorno, se eleva a condição divina com sua psýche imortal. Apesar de todo o crédito imputado a Pitágoras no âmbito da transmigração, não é verossímil que ele tenha elaborado esta teoria sozinho, mas que sim, reinventou e a popularizou no mundo grego. 
     Não há registros que permitam fazer uma genealogia da metempsicose até Pitágoras, a posteriormente será concebido que ele viajou ao oriente em busca de conhecimentos tendo contato com religiões budistas e hindus. Associado desde a Antiguidade ao culto órfico, Kahn demonstra que há incompatibilidade entre ambos os ensinamentos: Orfeu é vinculado ao deus Dioniso, seus membros deixavam por escrito seus ensinamentos, prestavam reverência a diversos deuses, e sua concepção cosmológica repleta de mitos; os pitagóricos, contrariamente, são afeitos ao estilo de vida apolíneo austero, transmitiam seus ensinamentos oralmente e concebiam a natureza em ordem geométrica. Ainda que fundamentalmente distintas, houve um sincretismo entre ambas, a lira de Orfeu será expressão para a música cósmica dos pitagóricos e serão concebidos, o orfismo e o pitagorismo, quase como sinônimos pelas tradições seguintes. 

• Capítulo III: A filosofia pitagórica antes de Platão 
    O pitagorismo anterior a Platão é rodeada de lendas sobre os movimentos iniciais da escola. Além de Pitágoras, houve outro pitagórico expoente chamado Hipaso de Metaponto do qual conhecemos tão somente por doxográfos (geralmente parciais quanto ao tratamento hostil ou amigável com a seita). Derivado dos escritos de Filolau em meados do século V a.C., o véu místico que cobria as doutrinas de Pitágoras começava a desaparecer dando início, de fato, a história da filosofia pitagórica. O conteúdo da obra de Filolau dedica-se sobretudo no âmbito cosmológico da filosofia refletindo o ambiente intelectual que permeava o território grego em sua primeira Ilustração: tal como Tales e Anaximandro, Pitágoras e seus discípulos perscrutavam os archaí do cosmo. Filolau em seus fragmentos aperfeiçoara alguns conceitos de pensadores contemporâneos e anteriores aos seus escritos. 
    Para o pitagórico, a natureza é unida por um princípio de harmonia que coaduna elementos ilimitados e limitados formando uma só ordem e todo. A harmonia é um princípio fundamental na cosmovisão de Filolau, por meio desta, com a mesma função que Heráclito atribui, os contrários se unificam e a multiplicidade se conflui com a unidade em noções matemáticas e musicais. Constituída por essas concepções, a harmonia e o próprio sistema astronômico filolaico é uma operação de adição dos números inteiros de três acordes musicais que sucede na soma de dez. Ora, como o dez é o número perfeito por excelência, o fogo um recurso importantíssimo, e o centro da circunferência local das maiores honras, o universo, por conseguinte, corresponde ao microcosmo: há um fogo central e dez astros, dentre os quais o planeta Terra, dão voltas em seu entorno. 
    As discussões mais recentes sobre o sistema astronômico dos pitagóricos não possuem um consenso entre os historiadores da filosofia. Burkert considera como uma “mitologia científica”, Huffman, ao contrário, admira a exatidão da astronomia contemplativa construída a priori por Filolau. Seja como for, tal concepção de organização da natureza, quase um milênio depois, permitirá Copérnico denominar Filolau como seu precursor e seu sistema heliocêntrico de astronomia filolaica ou pitagórica. Não obstante, apesar da semelhança evidente com o modelo astronômico comprovado empiricamente pela astronomia posterior, a concepção de Filolau apresenta mais um pensamento simbólico ou uma analogia da musicalidade matemática do universo do que um saber científico scricto sensu. Aristóteles e Sexto Empírico dizem que os pitagóricos concebiam toda realidade sob a ordem numérica: o cosmo se faz percebido pelo homem pela matemática. Nessa perspectiva matemática do mundo, os números são duais, são tanto particulares quanto gerais que habitam no Um. 
    Além do desenvolvimento na cosmologia grega, a geometria e a matemática avançaram a largos passos pelos discípulos de Pitágoras. As formas geométricas representam os algarismos, o número dez considerado perfeito, é representado pelo triângulo formado pela soma dos números inteiros. O triângulo, tetractus, é o símbolo pleno da perfectibilidade da harmonia numérica e musical da Natureza. Estes e outros elementos expressos na obra de Filolau permitem deduzir que são anteriores a sua escrita remontando aos ensinamentos que circulavam na escola pitagórica inicial, sendo esse escrito uma fonte confiável da filosofia pitagórica em seu estágio ainda mais “puro”.

• Capítulo IV: A filosofia pitagórica no tempo de Platão 
    No século IV a.C. já havia uma larga comunidade pitagórica espalhada em toda Grécia influenciando o cenário intelectual matemático e filosófico. Além da localidade tradicional da escola pitagórica, no sul da Itália, que se dedicavam a ciência e a filosofia, no oriente grego, na Ásia Menor, o aspecto religioso do pitagorismo ganhava força, semelhantemente, em Atenas os pitagóricos são retratados nas comédias como ascetas mendicantes. 
    Arquitas de Tarento foi dos expoentes pitagóricos nesse período. Retratado como um homem de virtude e sabedoria exemplares, Arquitas exerceu cargos importantes na política grega contribuindo em diversas áreas do conhecimento: música, filosofia da natureza, matemática, astronomia, física etc. O filósofo foi um grande matemático desenvolvendo significativamente a harmonia musical do universo de Pitágoras chegando a influenciar matemáticos posteriores como Euclides. Tem-se poucos registros de Arquitas e seu ciclo social, grande parte do conteúdo a respeito de sua pessoa perpassou o tempo pelos comentadores. Apesar da pouca informação sobre o filósofo sabemos que, além de ser um indivíduo prestigiado na elite grega, era amigo de Platão. 
    Platão foi fortemente influenciado pelos ensinamentos de Pitágoras e um ponto fundamental na história da filosofia pitagórica. Em diversos diálogos é perceptível a transformação das ideias pitagóricas, Platão possui dois tópicos fundamentais de interesse em comum com os pitagóricos: a imortalidade da alma e a matemática como instrumento para compreensão do cosmo. No Górgias já é possível identificar traços da tradição pitagórica, Sócrates faz uma especulação sobre a vida após a morte e diz que o corpo é uma sepultura. No Mênon, o mestre de Platão faz referência direta para com a imortalidade da alma humana e da transmigração das almas, mais esmiuçada no Fédon, Fedro e República, Platão traz os conceitos religiosos de Pitágoras para o âmbito gnosiológico e político. Apesar de todo o arcabouço pitagórico nos diálogos de Platão, a criação de um “novo pitagorismo” acontecera sobretudo no Mênon e no Fédon. 
    No diálogo tardio de Platão, o protagonista do Timeu é um chefe de estado de Locri, no sul da Itália. Neste trabalho, Platão já havia desenvolvido sua epistemologia com ênfase no conhecimento matemático para compreender a realidade. O modelo cosmológico exposto no diálogo é marcado principalmente pela geometria e matemática simbólica, com outros conceitos que já haviam sido trabalhados por Arquitas e Filolau, mas que ganhava novas cores por Platão, no Timeu é sintetizado o saber pitagórico. Os aspectos pitagóricos neste diálogo são tão evidentes que A.E. Taylor atribuí as teorias ali presentes como autoria dos pitagóricos de Atenas do século IV. Provavelmente, segundo Kahn, o diálogo do Timeu, individualmente, foi o mais importante para a posteridade da escola pitagórica. 

• Capítulo V: A nova filosofia pitagórica na Academia antiga 
    As divergências sobre Pitágoras adquirem uma nova roupagem após a difusão dos diálogos platônicos. Há duas grandes tendências nesse debate: considerar Pitágoras o primeiro platônico, ou, como Platão discípulo e plagiador. Platão foi o responsável por transformar a imagem de Pitágoras em um arquétipo de verdadeiro filósofo gerando essa discussão oriundas das menções pitagóricas nos diálogos e na doutrina oral da Academia. Pitágoras, nesse período, discutido por vários filósofos, inclusive Aristóteles. 
    Espeusipo e Xenócrates buscavam similaridades entre a doutrina platônica e pitagórica. Epeusipo nessa tentativa substituiu as formas de Platão por números atribuindo a autoria para os antigos pitagóricos, e ambos os filósofos tratavam o diálogo do Timeu como uma obra essencialmente pitagórica. Nessa mesma tendência, Heráclides de Ponto perscrutou o Pitágoras platonizado pelo viés mais místico dos diálogos, colocou o fundador da comunidade sendo o primeiro e verdadeiro amante da sabedoria, e o primeiro membro da Academia de Platão. 
    Em contrapartida aos filósofos que tentaram por Pitágoras como um platônico, Dicearco de Messina e Aristóxeno de Tarento, discípulos de Aristóteles, vão na direção contrária. Dicearco, recusa todo lado místico do pitagorismo, mas admite que Pitágoras foi um grande líder e político influente com suas doutrinas. Enquanto Aristóxeno, compõem o primeiro trabalho de teoria musical sem os aspectos da harmonia pitagórica, além de derrubar todo os aspectos mitológicos em Pitágoras, e considerar Platão como um plagiador do fundador da escola. Independentemente do modo como foi concebida a relação de Pitágoras com Platão, permanecerá em toda Antiguidade a imagem que a filosofia platônica é estritamente pitagórica. 

• Capítulo VI: A sobrevivência do pitagorismo na época helenística 
    A escola pitagórica, por mais que tenha saído dos tópicos de interesse dos filósofos no século III ao I a.C., permaneceu ainda influente e admirada por muitos. Influência localizada principalmente no sul da Itália, o culto pitagórico é documentado arqueologicamente pelas tabuletas de ouro com símbolos órficos em diversas regiões greco-romanas. O vínculo entre orfismo e pitagorismo que ocorriam dentro dos cultos desta época é algo que permite tão somente especulações, todavia, ainda mais bem registrado é a “literatura pitagórica” que firma a presença dos ideais pitagóricos no período helenístico. 
    As “literaturas pitagóricas” são obras anônimas redigidas em prosa dórica com forte presença da metafísica desenvolvida pela Academia platônica que eram atribuídas a grandes discípulos de Pitágoras como Filolau e Arquitas. O movimento começou em Roma e Alexandria no século I a.C. com Nigídio Fígulo, de acordo com Cícero, revivendo os ensinamentos pitagóricos no Império Romano. Nessas obras encontram-se tópicos distintos e mesclados, em um popular curto tratado de filosofia de natureza atribuído a Arquitas é combinado, dentre outros, muitos elementos da doutrina aristotélica e dos dois princípios desenvolvidos por Filolau, e também sob a mesma autoria do amigo de Platão, encontra-se um tratado de ética elaborado sob o viés aristotélico. Arquitas foi o principal pitagórico antigo a ter o nome vinculado ao movimento pitagórico emergente no Império, não apenas de obras cosmológicas e morais foram atribuídas a seu nome, mas inclusive tratados lógicos. 
    Não obstante, apesar de toda literatura forjada, Kahn elenca dois que foram significativos para o repertório intelectual dos pitagóricos. O primeiro é de escrito por Diógenes Laércio, que traz elementos cosmológicos do platonismo tardio com um monismo substancial que privilegia a Unidade do cosmo, também elabora uma psicologia mesclando saberes pitagóricos, pré-socráticos e platônicos, e por fim, uma construção de uma moralidade religiosa e ritualística que remonta a tradição autêntica das primeiras comunidades pitagóricas do sul italiano. O segundo escrito relevante foi preservado por Sexto Empírico que relata a importância da matemática para os pitagóricos e no valor que a racionalidade possui para desvendar a natureza numérica que há no real, ora como os pitagóricos creem que o universo é todo numérico, tão somente com o exercício intelectivo da matemática se é possível perscrutar profundamente a natureza. 
    A permanência da produção dos livros pitagóricos perdurou por mais de um milênio, a maioria dessas obras são conteúdos simples misturados de diversas doutrinas, dos primeiros pitagóricos aos estoicos. Apesar da falta de credibilidade que há nessas obras, existem dois fatos importantes que delas resultaram: em primeiro lugar, a influência e a força dos ensinamentos de Pitágoras no período Clássico; em segundo, não menos importante, a elaboração de uma nova fase na tradição pitagórica que se distancia cada vez mais da autêntica. 

 • Capítulo VII: A tradição pitagórica em Roma 
    Pitágoras esteve em pauta sobretudo em Roma com a ascensão do Império. Os primeiros registros da exaltação pitagórica foram no século III a.C. quando uma estátua do fundador da comunidade fora construída no fórum romano. Para além da filosofia, da mística e da matemática, Pitágoras tornou-se objeto dos poetas e parte do folclore popular dos romanos, Ovídio e Ênio introduziram o mestre em suas obras poéticas. Ademais, até mesmo nos tratados de agricultura há influências dos pitagóricos, Catão nomeia uma espécie de repolho como brassica pythagorea. Fato compreensível dado o período histórico vigente de patriotismo em Roma, em busca de um símbolo máximo de sabedoria e virtude, Pitágoras, como fora descrito desde Aristóteles, é italiano e sua comunidade fundada na península itálica. 
    Políticos e intelectuais importantes também possuíam um apreço especial por Pitágoras. Varrão, por exemplo, foi sepultado de acordo com os critérios ritualísticos dos pitagóricos. Cícero, em diversas obras exalta Pitágoras: em sua tradução do Timeu, dedica sua empreitada à Nigídio Fígulo; relata em De Finibus a emoção que vivenciou em Metaponto ao procurar a casa onde Pitágoras falecera; e também nas Disputas Tusculanas afirma que os primeiros republicanos da Itália tinham em sua perspectiva a grandeza de virtude e sabedoria de Pitágoras. 
    Grande divulgador das doutrinas pitagóricas em solo romano foi Nigídio Fígulo, há poucas informações sobre o pitagórico, conhecemos seus feitos principalmente por notas anedóticas, por Cícero e Varrão. Fígulo era conhecido por possuir conhecimentos de diversas regiões do mundo greco-romano dando ênfase, em especial, ao caráter esotérico do pitagorismo. Seus ensinamentos são marcados pela mistura entre mágica e ciência, era um pythagoricus et magus. Não apenas Nigídio Fígulo foi um pitagórico ilustre em Roma, mas também Quinto Sêxtio que possuía um círculo de membros que guardavam rígidos princípios morais. 
    Ambos os filósofos que foram notáveis em Roma por sua doutrina pitagórica, mesclaram os saberes morais platônicos e pitagóricos produzindo uma nova espécie de moralidade que acentuava a importância da consciência ética, a autocrítica e a interioridade como forma de edificação. Após as influências romanas, Pitágoras e os pitagóricos transformaram-se, novamente, em uma nova doutrina.

• Capítulo VIII: Os filósofos neopitagóricos 
    O título de neopitagórico é fruto também de debates sobre o posicionamento de cada historiador da filosofia. Kahn considerará como neopitagórico aqueles que veem a tradição platônica pela ótica de Pitágoras. O primeiro filósofo que se encaixa nos critérios do autor é Eudoro de Alexandria. Trabalhando principalmente na cosmologia do Timeu, Eudoro elabora uma ética derivada da cosmologia platônica desenvolvida pela mesclagem das ideias de Pitágoras e de Platão. Especificamente metafísica e sobrenatural, seus ensinamentos rompem com a Nova Academia retornando aos moldes da primeira escola platônica do século IV a.C. Na mesma linha metafísica com viés pitagórico, também em Alexandria, Fílon utiliza-se das noções platônicas-pitagóricas para elaborar sua exegese bíblica, principalmente em sua numerologia, remodelando os aspectos simbólicos dos números pitagóricos. Posteriormente próximo de 50 a.C. a 50 d.C. outro movimento neopitagórico eclode no Ocidente. Três filósofos do qual sabemos pouca coisa foram responsáveis, apesar de sua obscuridade, de influenciar significativa a doutrina pitagórica: Moderado de Gades, Numênio de Apaméia, e Nicômaco de Gerasa. A principal diferença entre os três com Eudoro e Fílon, é a atribuição das próprias ideias a si mesmo, ao contrário de tributar para Platão ou Pitágoras. 
    Moderado possui uma perspectiva intensamente sóbria sobre as doutrinas de Pitágoras. Para ele, os ensinamentos tradicionais pitagóricas são fáceis de serem compreendidos, todavia, em decorrência da incapacidade dos filósofos em explicarem a numerologia pitagórica substituíram pelas Formas. Moderado, portanto, está alinhado com a tradição que concebe Platão como um plagiador de Pitágoras, uma vez que a própria noção de número para os discípulos da escola pitagórica era entendida já como atributos imateriais da realidade. Outra contribuição significativa do filósofo de Gades é a nova chave hermenêutica do Parmênides de Platão, também para a metafísica neoplatônica acerca da matéria e do Uno, e inclusive para o entendimento gnóstico moral da materialidade da natureza. 
    De maneira similar a Moderado, Nicômaco, seguindo uma linha pitagórica distinta, também possui uma noção lúcida de Pitágoras. Nicômaco dedicou-se na geometria, matemática e música, não foi responsável por inovar estas ciências em seu período, sua contribuição se dá principalmente na sistematização didática de conceitos matemáticos. Sua Introdução à Aritmética transcorrerá o tempo, e será utilizado na Idade Média como material didático para os alunos. A metafísica que Nicômaco irá elaborar sutilmente é consequência da sua teoria da harmonia musical de interpretação dos movimentos celestes, aliás, a própria metafísica, para o filósofo, poderia ser substituída pela aritmética dado que esta é a própria linguagem que o demiurgo se expressa na natureza. Grande parte dos seus escritos se perderam, suas informações que ficaram intactas são de alçada de Jâmblico e Porfírio em utilizar das ideias do neopitagórico como contra-argumento para as incursões cristãs que ocorriam no período. 
    O último neopitagórico que Kahn apresenta é Numênio. As influências do filósofo foram enormes na filosofia ocidental, seus textos eram lidos e debatidos por Plotino e seus discípulos que beberam em larga medida dos seus escritos. Numênio tinha o intuito de buscar a pureza da Academia Antiga e encontrar a essência de todo conhecimento platônico. Sua principal obra, pode-se dizer, é uma interpretação do Timeu, Sobre o Bem, dedica-se em questões cosmológicas reunindo as teorias básicas de Pitágoras com o desenvolvimento exercido nessas ideias por Platão. Sinteticamente, seu modelo cosmológico aproveita a noção unitária do deus dos pitagóricos e platônicos que faz da realidade o melhor possível em decorrência de sua bondade. O Uno é correlato ao Nous que se subdivide na construção da natureza, de modo similar a emanação plotiniana, a alma humana possuí completamente o intelecto divino, o corpo inerente a matéria é mau por estar distinta dos primeiros objetos elaborados pelo demiurgo. Após Numênio, absolutamente todo pitagorismo será aproveitado pelos neoplatônicos. 
    Além destes, Jâmblico e Porfírio exerceram um papel fundamental no destino da tradição pitagórica e neoplatônica posterior. Eles retratam em suas Vidas de Pitágoras o lado mais místico e esotérico do fundador da comunidade pitagórica, reforçando a imagem mítica de Pitágoras como uma forma de contenção do cristianismo que se espalhava em território pagão. Foram também responsáveis por fazer de Pitágoras um santo e um pioneiro da tradição platônica, destacando o valor matemático dos ideais de Platão. Jâmblico, diferentemente da biografia de Porfírio, em seus escritos sobre a doutrina pitagórica, dá ênfase nos aspectos doutrinários, dogmáticos e institucionais do pitagorismo. Platão, nesse ínterim neopitagórico, continuará sendo louvado pelas suas contribuições para a filosofia, porém com o viés neoplatônico de conceber suas doutrinas sem nenhuma distinção entre platonismo e pitagorismo, — ambas as doutrinas se fundem em um só corpo. 

• Capítulo IX: O legado pitagórico 
    O legado da tradição pitagórica para o pensamento do ocidente é de suma importância e divide-se em três principais tópicos: o âmbito sobrenatural, alimentar e matemático. No primeiro aspecto, a sobre-naturalidade do pitagorismo se dá especialmente pela imagem construída, desde a fundação da primeira escola de Pitágoras, que o fundador é um homem-divino, sábio e possuidor de grandes virtudes. No segundo, as influências se dão via a concepção de transmigração das almas e os ensinamentos morais que acarretava o lado místico do saber pitagórico. No terceiro e último legado, a importância da matemática como ferramenta para a compreensão do universo que irá ter suas consequências mais notáveis em Kepler e Newton. A acentuação do lado mítico do pitagorismo se deu no período helenístico e neoplatônico. Com a revivência das ideias de Pitágoras, principalmente em Roma e Alexandria, formaram-se muitos círculos pitagóricos que seguiam a ritualística da escola. O movimento religioso pitagórico foi popular, Ovídio e outros poetas retratam o Pitágoras deificado. Não obstante, fora do ambiente intelectual do pitagorismo, foram notáveis alguns personagens, como Alexandre de Abonuteico e Apolônio de Tianam, que eram considerados “santos” e sábios no conhecimento do oculto. Pitágoras, seus discípulos e ensinamentos nesse período escaparam da elite intelectual romana, se integrando na cultura e no folclore popular. 
    Correlata ao aspecto religioso de Pitágoras, o vegetarianismo que surgiu no primeiro século da Era Comum em Roma é consequência da noção da metempsicose pitagórica. Apesar das divergências que há sobre a origem desse movimento no Império Romano, o crédito fora atribuído pela tradição a Pitágoras. Tanto a noção de “familiaridade” com os seres vivos como a imagem de homem virtuoso, permanecerão intacta até no século XVIII quando Voltaire exalta as doutrinas pitagóricas por possibilitarem uma relação para com o mundo mais bela e sublime. 
    Já no âmbito matemático do pitagorismo, foi onde causou maior influência e também o seu fim. As noções matemáticas e numéricas deixadas pelos pitagóricos chegaram a Idade Média e foram utilizadas por séculos, passando pelos filósofos e cientistas da Renascença que será feita de instrumento para a exegese da Cabala. Para além dos medievais e renascentistas, a principal obra que Pitágoras influenciou foi a Harmonia de Ptolomeu que será de suma importância para as contribuições astronômicas de Kepler no século XVII. Copérnico, como grande parte dos filósofos renascentistas, faz citação a Pitágoras para justificar sua explanação sobre o movimento da Terra. Todavia, tão somente com Kepler que o pitagorismo é evidentemente vivido. Kepler concebe Deus como um sumo-artífice geométrico, influenciado pelo Timeu, que pode ser descoberto pelas relações matemáticas que há nos fenômenos. Kepler, segundo Kahn, só conseguiu dar continuidade aos trabalhos de Tycho Brache por ter o ímpeto pitagórico de desvendar a natureza pela ótica geométrica. Com os trabalhos do astrônomo o pitagorismo chega ao fim, do século XVII em diante, o cientista ser pitagórico só pode ser considerado metaforicamente. 

                                    




• REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 KAHN, Charles H. Pitágoras e os pitagóricos: uma breve história. São Paulo: Editora Loyola, 2007

RESUMO DE PSICOLOGIA SOCIAL: CONFORMIDADE E OBEDIÊNCIA

  1. Duas formas em que ocorre a conformidade segundo David G. Myers: A conformidade manifesta-se de inúmeras maneiras. David G. Myers, no...