Objeto tradicionalmente debatido, sobretudo em seu apogeu, com a institucionalização das religiões, a saber, o lugar da fé, da filosofia e da teologia persegue o pensamento humano em sua epocalidade. As reflexões que versam acerca dos domínios de cada área do saber perpassam em uma linha tênue no qual, além da escassez consensual entre os pensadores, desenvolvem-se seja dispondo a racionalidade filosófica refém da autoridade teológica exteriorizada na Sagrada Escritura e nos dogmas religiosos ou antepondo a filosofia à vivência da fé. Seja como for, qualquer das posturas que possa estabelecer a área de exercício da razão e da fé abrange consequências epistemológicas, enquanto tal demarcação permanece no âmbito do pensamento reflexivo, e políticas, quando se convertem de convicções teóricas em atos na vida pública.
Desde as primeiras manifestações de caráter racional na região jônica da Grécia do século VI a.C., a fé e a razão encontram-se de maneira diretamente interligadas oscilando entre suas vertentes, opondo-se ou ainda misturando-as em um só saber. Dos fragmentos de Tales que versam acerca da divindade do mundo perpassando pelas influências pitagóricas na organização política e intelectual da Magna Grécia; da mística platônica à sistemática cristã do pensamento heleno em seus dogmas; de Descartes e seu fundamento epistêmico indubitável em Deus à ontoteologia de Heidegger. O debate é interminável. À vista da permanência do dilema no percurso do pensamento ocidental, traçar o itinerário do local da fé e da razão é percorrer a história da filosofia em sua completude.
João Paulo II, sucedendo o posto máximo da hierarquia da Igreja Católica Apostólica-Romana durante a transição do milênio e inserindo-se neste tempestuoso debate, procura responder à questão acerca do local da fé e razão no âmbito epistemológico e teológico em sua encíclica Fides et Ratio.
Seja como for, o século XVII abriu suas fronteiras para a posteridade preparando os moldes estruturais que sustentam a sociedade atual no qual o Papa dialoga em sua exortação apostólica. Como efeito das transformações sócio-históricas que ocorreram no Ocidente, desde o fim do período medieval, atualmente o mundo encontra-se desencantado. Consequentemente, tanto a filosofia quanto a fé e suas categorias teológicas, na era moderna-contemporânea, resplandecem fragilizadas. Eis, portanto, o resultado da tragicidade do real que o homem se depara desde o fim do século XIX: da condição desumana dos assalariados nas indústrias europeias, à morte de Deus anunciada por Nietzsche, o fracasso da utópica razão esclarecida dos Iluministas, a vulgarização do sofrimento nos campos de batalha e de concentração das duas grandes guerras, a ascensão sistemas políticos totalitários, dentre outros demais males que fizeram o homem, em um ato de contestação, protestar diante do silêncio de Deus e do eclipse da razão. Em outras palavras, todo projeto teológico, filosófico e social idealizado tanto por filósofos quanto por teólogos passados falharam. Visto isso, a demarcação e definição do domínio do saber teológico e filosófico converte-se em uma questão de proporção magna no momento vigente resultante da crise da metafísica estabelecida por Kant e Nietzsche em especial nas esferas epistemológicas da discussão.
Levando em consideração tanto a importância da discussão na contemporaneidade quanto a sua permanência no pensamento ocidental, João Paulo II começa desenvolvendo sua encíclica através da própria exortação do conhecimento. Diz o Papa, que a humanidade em seu todo busca a Verdade, um saber essencial que possibilite uma compreensão clara e distinta de sua existência, sobretudo de suas questões inteligíveis e fundamentais para a vida humana, que constituem conjuntamente com suas respostas, diga-se de passagem, uma das maiores riquezas que a humanidade retém. A sublimidade da filosofia, da razão, resplandece em sua aptidão para responder a estas indagações, — não é sem motivo que Pitágoras e os helenos cunharam o termo amor à sabedoria para designar tal ciência. Contudo, ainda que os filósofos sejam capazes de alçarem suas asas do entendimento rumo à Verdade, a realidade desta última manifesta-se de múltiplas maneiras, em especial, por meio da sabedoria de Jesus Cristo que coordena o seu Corpo Místico, ligação entre o sagrado e o profano, a Igreja Católica.
Esta afirma e reafirma a importância da razão e da filosofia para os indivíduos, colaborando e dando novas direções para o desenvolvimento das ciências desde seus primeiros anos. Com base nos últimos Concílios, na tradição e dogmática católica, João Paulo II reitera a importância de uma religiosidade esclarecida para uma compreensão adequada das Sagradas Escrituras e do Evangelho. A fé, seja como for, não necessita, essencialmente, da razão filosófica, — como atestam diversos personagens bíblicos que não possuíam uma vasta formação intelectual. O Concílio Vaticano II, nesse sentido, é categórico acerca desta definição: a fé nasce e subsiste mediante a obediência do indivíduo a Deus e em sua Revelação, pleníssima na pessoa do Verbum Incarnatum.
O entendimento sobressaia-se alicerçado na fé, ou seja, na obediência a Deus, todavia, não com uma razão que subjuga-se cegamente aos decretos divinos e eclesiais, mas que medita e reflete acerca dos princípios revelados. Fato este exaltado no decorrer das narrativas sapienciais presentes na Bíblia e realizado por São Paulo em Atenas e pelos Padres da Igreja na dialética de helenização-cristianização do Ocidente. A fé e a razão, nos escritos veterotestamentários, entrelaçam-se: a razão alcança sua plenitude através do salto de fé na contemplação do Totalmente Outro. Com temor e tremor perante o mistério da transcendentalidade divina, o princípio da sabedoria desenvolve-se no homem. Não há, portanto, divergência ou oposição entre ambas, ainda que com um lento e vagaroso processo histórico o racionalismo escolástico exacerbado gerasse o estopim que resultaria na separação e repulsa da fé e razão a partir do século XVI.
Com efeito, a concepção do Papa de teologia e filosofia abre-se uma oportunidade de diálogo com os impasses adquiridos do século XIX para o período vigente possibilitando uma trajetória viável para ambos os domínios do saber que, diga-se de passagem, encontram-se mitigados. Definir o local de atuação das realizações teológicas e filosóficas no período atual consiste em repensar o papel que possuem e as consequências que emanam das posturas que estabelecem seus domínios. A emancipação intelectual que os Iluministas idealizaram falhou, todavia, a religião no mundo secularizado subsiste. A filosofia, contudo, fechada em seu próprio círculo, não medita os princípios metafísicos e especulativos, próprios do seu entendimento, possibilitando que o cogito esclarecido e a sociedade tecno-científica dirijam-se para um período dominado pelo niilismo tornando as manifestações do entendimento humano instrumentos de opressão e exploração dos indivíduos.
O modo de operação positivista de conceber o real pouco a pouco vai destruindo todas as tradições utópicas, éticas e estritamente humanas, dito doutro modo, o homem deixa de sonhar por um mundo melhor. À medida que o pensamento cientificista cresce e se consolida na sociedade, progressivamente diminui e se enfraquece o alcance dos valores morais. Logo, a religião deve assumir uma postura distinta na sociedade atual, é preciso que os preceitos divinos deixem de ser objetos especulativos indiscutíveis e se tornem abertos ao diálogo e, mediante isto, desenvolver práxis vividas das boas obras, consequência da fé. Uma teologia racional torna possível o engajamento e enfrentamento dos males atuais com a esperança para com um futuro mais sublime. A religiosidade deve ser uma prática racional vinculada com as obras de justiça e caridade visando o bem-estar entre os homens. Para a fé e teologia, não é conveniente, portanto, fechar-se em relação ao mundo. Além de que, a teologia dedicando-se fechada e distante do mundo torna-se uma ciência com uma postura negligente aos anseios de justiça expostos no Sermão da Montanha. Ter como objeto de investigação a Revelação e utilizar de critérios argumentos lógicos-racionais para construir seu repertório dogmático e racionalista propicia o aspecto pragmático da vivência religiosa e a salubridade da evangelização na contemporaneidade.
Visto isso, a teologia deve, segundo a encíclica, utilizar-se da filosofia para a evangelização. A razão, noção comum entre ambos os saberes, é o terreno onde há possibilidade de diálogo e enriquecimento cultural recíproco, para problemas contemporâneos comuns e relevantes para ambos. Ademais, toda a tradição cristã é fruto da relação e diálogo com os movimentos filosóficos e científicos vigentes em sua época, hoje, igualmente, torna-se de suma importância hoje construir pontes que unem os saberes com real e sincera simpatia na escuta do outro.
- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
JOÃO PAULO II, Papa. Carta encíclica Fides et Ratio: sobre as relações entre fé e razão. São Paulo: Paulinas, 2010.

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