● Resumo:
Das concepções mitológicas à mentalidade tecno-científica contemporânea, a essência do homem sempre constituiu um tópico importante no itinerário do pensamento humano. Relevante para todos as manifestações existenciais do homem, a compreensão de sua essência resulta em implicações sociopolíticas de proporções magnas visto que, como Luigina Mortari aponta na Filosofia do Cuidado (2018) com base em Aristóteles, Winnicott e na tradição fenomenológica, não há ser humano sozinho, pelo contrário, todos são entes relacionais. “Ser-aí-com-outros", a dependência relacional com o mundo em sua totalidade está dada desde o nascimento do indivíduo, isto é, a partir do momento em que começa a con-viver: Carente de Ser, o cuidado como necessidade ontológica e vital do ser-aí resplandece em suas múltiplas faces na Faktische Lebenserfahrung: na chama que arde no olhar dos apaixonados, na amabilidade do pai para com seu filho, na dedicação do professor em orientar seus alunos etc; o princípio da amabilidade norteadora do ser-aí, o cuidado, manifesta-se na essência da singularidade plural dos indivíduos. Enganam-se, por conseguinte, os teóricos políticos e pensadores do Ocidente que constroem muros exaltando a autossuficiência do homem enfraquecendo as pontes que os unem. Alicerçada por V. Goldschmidt em Tempo Histórico e Tempo Lógico na Interpretação de Sistemas Filosóficos (1963), e D. Folscheid & J-J. Wunenburguer em Metodologia Filosófica (2000), o artigo analisará as obras referenciadas com o intuito de compreender o cuidado em sua natureza elementar, os modos no qual se apresenta na cotidianidade e, por fim, elucidar os fundamentos da filosofia do cuidado em Luigina Mortari.
● Palavras-chave: Mortari; Cuidado; Filosofia; Ética; Ontologia.
● Introdução:
A reflexão acerca da essência do homem ultrapassa a temporalidade do discurso antropológico-filosófico. Das concepções pré-filosóficas às compreensões behavioristas contemporâneas, a constituição integral do ser humano foi objeto de investigação em diferentes perspectivas que compartilham da mesma noção comum, quiçá uma lei eterna e universal da natureza: o homem é um ente intrinsecamente social. Luigina Mortari insere-se nessa busca pela compreensão dos fundamentos das relações humanas. Mortari, diferentemente de outros pensadores que dedicaram-se a mesma investigação antropológica, não procura elucidar as condições que versam acerca da totalidade do homem, mas uma específica e fundamental: o caráter relacional dos homens e sua dependência ontológica e física de ser-aí-com-outros, o cuidado.
Aspecto elementar da condição humana, o cuidado do ser-aí-com-outros constitui o centro de toda sociabilidade e de possível engajamento ético-político diante das etapas atuais do processo civilizatório ocidental. Heidegger em Ser e Tempo (2005) ilustra a dependência ontológica do ser-aí através da alegoria sobre a origem do homem: resumidamente, após o Cuidado pedir ao Céu que preenchesse de vida sua porção de terra, a Terra e o Céu reivindicam conflituosamente o homem, o Tempo visando dar fim aos conflitos entre as personagens determina que, enquanto houvesse vida, o homem estaria dependente do Cuidado, sua alma encaminharia-se posteriormente para o Céu e o seu corpo, de volta à Terra. Luigina Mortari, em suas reflexões fenomenológicas da condição social humana, atém-se no personagem e na propriedade do Cuidado. Cuidado este que escapa a sistematização e ao crivo da racionalidade do sujeito cartesiano, mas encontra-se pleno na espontaneidade da razão do coração no encontro com o Outro, ou seja, na loucura existencial da ruptura ontológica para com o mundo na fusão extática do ser-aí na intimidade da con-vivência com o Outro (MORTARI, 2018).
1.1. As manifestações do modo-de-ser cuidado:
Existir é a expansão do Ser no âmago necessário do con-viver. O ser humano compartilha sua existência desde sua concepção no ventre da mãe. Os entes são, necessária e naturalmente, relacionais. Contudo, Mortari aponta que ao mesmo tempo que o ser-aí depende e sustenta-se mediante a convivência, sua vulnerabilidade sobressai de ambos os modos: tanto na solidão quanto na união, o ser-aí está vulnerável. Na solidão, o homem é insuficiente e incapaz de desenvolver-se plenamente enquanto ser humano; na união, dependentes um dos outros, o ser humano encontra-se sujeito aos atos relacionais de outrem e responsável por suas ações como efeito da teia relacional no qual está inserido. O encontro com a totalidade Infinita de Lévinas, “[...] nos alimenta de ser, mas, ao mesmo tempo, nos limita. Somos necessitados do outro, e por isso, procuramos a relação com o outro” (MORTARI, 2018, p. 52).
Seja como for, é mediante esta fragilidade do ser-aí que o Cuidado e sua condição ontológica se manifesta, nesta ruptura da horizontalidade nas relações humanas. Com efeito, Heidegger não elencou sem razão o Cuidado como um dos constituintes da origem humana: “[...] Em seu ser-no-mundo cotidiano e que lhe pertence a cada vez, importa-lhe o seu ser. Assim como no falar sobre o mundo reside um auto-expressar-se do ser-aí sobre si mesmo, do mesmo modo todo manusear que cuida de é um cuidar do ser do ser-aí” (HEIDEGGER,1997, p. 21). No decorrer da história humana, o Cuidado apresenta-se de sutilmente em inúmeros modos nas macros e micros-estruturas da sociedade: nas instituições sociais, na moral, na ciência, nos templos, no mundo comercial, na chama que arde no olhar dos apaixonados, na amabilidade do pai para com seu filho, na dedicação do professor em orientar seus alunos. Onde há seres humanos, o Cuidado está presente. A importância deste componente humano, não se limita apenas aos benefícios do bem-estar social (como designavam alguns filósofos políticos modernos), mas à fecundidade e plenitude do Ser. A riqueza e a plenitude do ser-aí que se faz no contato com o Outro, na experiência fática de vida — o que é, diga-se de passagem, afirmado desde a concepção eudaimônica de Aristóteles na Ética a Nicômaco. Contato este que realiza-se pela razão do coração: entes vulneráveis que clamam uns aos outros pela percepção da delicadeza do ser-aí; consumação do Ser e bem-aventurança recíproca, a compreensão da responsabilidade de Cuidar de
Outrem e do Mundo que efetua-se na harmonia das relações, e, deste modo: “Sentimos a alegria intensa e leve do ser-aí” (MORTARI, 2008, p. 53).
Ainda que os aspectos relacionais do ser-aí propiciem um aumento na potência de ação dos indivíduos. Da Revolução Mercantil à Contemporaneidade, os vínculos relacionais do Cuidado enfraqueceram-se. A “descoberta” da individualidade no pensamento Ocidental desencadeou os paradigmas da autossuficiência humana que, ao contrário do que pensou Nietzsche com a ascensão do além-homem, tão somente exterioriza a pequenez do indivíduo. De todas as consequências da exaltação da autossuficiência humana, destacam-se duas
posturas predominantes perante a existência: em primeiro lugar, a tendência do niilismo e suas expressões nos mais diferentes âmbitos da con-vivência; em segundo, não menos importante, o hedonismo do viver e a práxis como causa eficiente e final de todas as ações humanas. Do niilismo, despontam a melancolia e a languidez que, por sua vez, “[...] só inspiram ao indivíduo indiferença e distanciamento” (DURKHEIM, 2019, p. 357). Do hedonismo, atrofiado e sustentado pelos desenvolvimentos industriais, surgem os desejos e os apetites impossíveis de serem satisfeitos que desaguam na desilusão e na melancolia. Com efeito, ambas são dialeticamente interligadas: o hedonismo, provindo da fetichização dos desejos e da mercadoria, necessariamente insaciável, gera o niilismo, visto que, reciprocamente, “[...] todas aquelas sensações novas, indefinidamente acumuladas, não conseguiram constituir um sólido capital de felicidade do qual pudéssemos viver nos dias de provações” (DURKHEIM, 2019, p. 326).
1.1.2 A Técnica e o Pensamento Meditativo como modo-de-ser-cuidado:
Copérnico e Kepler forneceram as bases do que viria a ser a filosofia, a ciência e a técnica moderna. Com Galileu Galilei, todavia, começa-se uma mudança substancial nas explicações filosóficas e matemáticas das estruturas e nos modos de compreensão dos fenômenos da natureza. No ensaio Il Saggiatore publicado em 1623, o astrônomo e físico italiano afirma categoricamente que os fatos verdadeiros que se sucedem na natureza são matemáticos e geométricos, dimensionáveis e calculáveis, — Galilei fornece o que Heidegger designa na Conferência Sobre A Questão da Técnica de 1933 como a essência, ou armação, da τέχνή moderna: “A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que, [...] está escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas[...]; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto” (GALILEU, 1983, p. 32, grifo meu). Perde-se, com efeito, o valor dos aspectos qualitativos no modus operandi de filosofar acerca dos fenômenos naturais e a possibilidade de obtenção de um conhecimento seguro mediante o uso do próprio exercício da razão natural estabelece o princípio de cognoscibilidade próprio do saber científico.
A despeito das contribuições galileanas e baconianas no progresso do pensamento filosófico-científico moderno serem colossais é com René Descartes, sucessor dos trabalhos de Galilei, que há uma clarificação e distinção nos princípios que serão posteriormente os paradigmas no pensamento ocidental. Com efeito, diz Alexandre Koyré acerca da importância do fundador da filosofia moderna:“[...] Não foi, em todo caso, Galileu, nem Bruno, e sim Descartes quem clara e distintamente formulou os princípios da nova ciência [...]” (KOYRÉ, 2006, p. 89).
Pela elaboração de um método rigoroso capaz de sistematizar as diversas manifestações do saber científico em uma unidade metodológica que se sobressaísse na simetria presente entre as diferentes áreas de atuação do entendimento, Descartes satisfaz, firmando um novo paradigma na história do pensamento humano, à necessidade do seu período de uma estrutura epistemológica válida e universal que possibilitasse uma estabilidade maior no desenvolvimento das ciências (VERNEAUX, 1977). Consequência da valorização renascentista do homem, do êxtase causado pelos critérios matemáticos-geométricos e seus avanços nas ciências positivas, da expansão econômica e política das grandes potências, da ordenação e racionalização do real por Descartes, o otimismo do progresso constrói a nova civilização predominante na Europa.
Contudo, diz Heidegger, o cogito cartesiano objetifica o ente. O Ser, e consequentemente o ser-aí, é esvaziado pela técnica moderna. O ser-aí, da consolidação da Revolução Científica no Ocidente à pós-modernidade, está em uma crescente deserção e fuga de pensamento e reflexão. Com a matematização do mundo e do Ser, o pensamento calculativo desenvolve-se: a causa eficiente antecipa a final; o cálculo predomina ainda que não se utilize de noções estritamente matemáticas; é um pensamento que analisa metodicamente “[...] possibilidades continuamente novas, sempre com maiores perspectivas e simultaneamente mais econômicas. O pensamento que calcula corre de oportunidade em oportunidade. O pensamento que calcula nunca para, nunca chega a meditar” (HEIDEGGER,1959, p. 13). Ora, a meditação ou reflexão é também um tipo de pensamento. Esta última, diferentemente do pensamento que calcula, pensa e reflete sobre o sentido ou causa final que está presente no mundo. É este modo de pensar que a técnica e a sociedade tecnocrática obscurecem e fazem o homem atual careça de pensamento.
Heidegger, em seu discurso tardio sobre a Serenidade, estabelece a importância e o modo no qual o pensamento pode ser uma via de acesso para o Cuidado. O ato reflexivo não precisa elevar-se patamares transcendentais ou místicos, mas ater-se à Faktische Lebenserfahrung, ou seja, é suficiente “[...] demorarmo-nos (verweilen) junto do que está perto e meditarmos sobre o que está mais próximo: aquilo que diz respeito a cada um de nós, aqui e agora; aqui, neste pedaço de terra natal; agora, na presente hora universal” (HEIDEGGER, 1959, p. 14).
A difusão da técnica moderna desencantou o mundo, gerando, como vimos anteriormente, a dialética niilista-hedonista e seus desdobramentos que desencadeiam o mal-estar na contemporaneidade. Entretanto, apesar da condição insalubre da sociedade tecnocrática, o Cuidado apresenta-se, além de seus múltiplos modos, no pensamento reflexivo e na serenidade perante à técnica e às circunstâncias instáveis da transformação vigente no mundo. O Cuidado, neste sentido, assumiria aspectos sociopolíticos e educacionais. A meditação sobre a relação com a técnica, exerceria uma postura crítica e distante em relação aos avanços tecno-científicos, procuraria estabelecer um novo enraizamento das relações humanas através da proximidade com o mundo. A técnica, está em todos os âmbitos da existência, intimamente próxima dos indivíduos na contemporaneidade, portanto, como diz Heidegger, seria tolice condenar ou fugir dela, mas é preciso não se deixar retificar por ela
através do pensamento meditativo, e mediante isto, possuir a liberdade e a dignidade humana perante à τέχνή. O Cuidado está centrado no pensamento meditativo que a manifestação do ser no outro. O ato de cuidar envolve a educação e reflexão coletiva sobre o uso saudável da técnica, e desse modo podermos “[...] dizer «sim» à utilização inevitável dos objectos técnicos e podemos ao mesmo tempo dizer «não», impedindo que nos absorvam e, desse modo, verguem, confundam e, por fim, esgotem a nossa natureza (Wesen)” (HEIDEGGER, 1959, p. 23-24).
● Considerações finais:
Como vimos anteriormente, o Cuidado é um dos componentes ontológicos fundamentais do ser-aí, que mitiga-se, mas, sem se esgotar, pela objetivação do ente e do Ser via à racionalização do mundo. Em virtude do caráter relacional do ser-aí, o Cuidado que manifesta-se cotidianamente na experiência fática de vida transcende seus impasses na era contemporânea. Todavia, para esta transcendência do ato de cuidar na relação com a infinitude e totalidade do Outro, é preciso tempo, serenidade e reflexão, que Heidegger desenvolve como sendo os protetores da essência humana na sociedade tecnocrática, e que pode ser também uma atitude de Cuidado e resistência à reificação maquínica que a sociedade pós-industrial impõe salvaguardando a dignidade e a liberdade do ser-aí. O pensamento reflexivo é expressão plena do Cuidado. A reflexão torna possível a percepção da vulnerabilidade e solidão do ser-aí. É este modo-de-pensar-cuidado que faz o ser-aí guiar-se pela razão do coração, ou seja, através do amor. É o Cuidado exteriorizado no pensamento que medita sobre o uso da técnica para ceder a uma liberdade responsável e solidária na teia relacional que o ser-aí-com-outros desfruta. Compreendendo, portanto, o modo-de-ser-cuidado pela reflexão, diz Heidegger, “[...] o cuidar é referido ao agora num processo sem fim; ele diz: agora, do agora até depois, para um próximo agora”
(HEIDEGGER, 1997, p. 31).
● REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DURKHEIM, Émile. O suícidio: estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2019)
FOLSCHIEID, D & WUNENBURGUER, J-J. Metodologia Filosófica. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
GALILEI, Galileu. “O Ensaiador”. In: Os Pensadores: Bruno, Galileu e Campanella. 3.
Ed. São Paulo: Editora Abril, 1983.
HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica (M. A. Werle, Trad.). Scientiae Studia, 5(3),
375- 398. 2007. Recuperado em 05 de março de 2018, de http://www.revistas.usp.br/ss/article/view/11117/12885 .
______. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1959.
______. O Conceito de Tempo. São Paulo: Edusp, 1997.
______. Ser e Tempo: Parte I. Petropólis: Editora Vozes, 2005.
KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2006.
MORTARI, Luigina. Filosofia do cuidado: filosofia do cuidado. São Paulo: Paulus, 2018.
VERNEAUX, Roger. Hístoria de La Filosofia Moderna. Barcelona: Editora Herder, 1977

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