RESUMO: PITÁGORAS E OS PITAGÓRICOS, CHARLES H. KAHN

• Apresentação: 
    Trabalho com inúmeras dificuldades em decorrência dos poucos registros escritos originais da tradição, Charles H. Kahn propõe uma síntese panorâmica sobre o pitagorismo do seu início às suas influências no período moderno e contemporâneo. Com o início no século VI a.C. a tradição pitagórica estende-se até a Revolução Científica pré-Iluminista no século XVII d.C. envolta sempre de divergências e marcos significativos em diversas áreas do pensamento ocidental. Permeada de lendas e mitos sobre a imagem do Pitágoras, procurar um registro que seja fidedigno da real imagem do filósofo abrange impasses enormes para o historiador da filosofia grega. 
    Pitágoras se tornara uma lenda em vida. Desde os pré-socráticos há quem retrate o pensador como um charlatão, como é o caso de Heráclito, e quem o considere como um verdadeiro filósofo, tal como Empédocles o retratava. A discussão perpassa o tempo, sem uma solução válida para a construção autêntica da imagem de Pitágoras. No âmbito acadêmico atual persistem os mesmos impasses: Burkert considera o mestre um líder, em contrapartida, Leonid Zhmud estima a capacidade intelectual revolucionária do filósofo. Kahn, no âmago destas discussões acadêmicas acerca do pitagorismo, refaz a trajetória da tradição no decorrer da história do pensamento. 

• Capítulo I: A questão pitagórica 
    Pitágoras, além do fascínio que há envolto de suas ideias e do mistério que sua tradição carrega, é também uma das imagens do período pré-socrático mais conhecidas. Aristóteles retrata que as questões pitagóricas é uma das bases fundamentais do pensamento de Platão, de modo similar, filósofos posteriores atribuem ao pensador da Magna Grécia o título de fundador da tradição platônica. Independentemente de como a recepção posterior de Pitágoras aconteceu na filosofia, o seu legado é evidente. Tanto Jâmblico como Whitehead consideram seu pensamento de suma importância para ciência da época: Pitágoras deu ênfase ao pensamento abstrato e na constituição matemática do real. Outros como Heráclito, Burkert e Zeller, definiam o fundador da tradição pitagórica como um líder religioso e fundador de uma seita, — ainda nesse mesmo raciocínio, Erick Frank considerava que as contribuições matemáticas não foram fruto do próprio Pitágoras, mas de matemáticos do sul da península itálica contemporâneos de Platão. 
    Há certo dualismo que justificam a imagem de Pitágoras no percorrer da história: o aspecto religioso-místico e a condição matemática-científica de suas ideias. De um lado, as questões religiosas da transmigração e sua imortalidade, a responsabilidade moral de se purificar e se libertar da escravidão da corporeidade. Doutro lado, o esforço para compreender a realidade sob a ordem geométrica mediante a ligação precisa entre música, fenômenos naturais e matemática. Para além dos ideais pitagóricos, há outra dualidade problemática acerca da tradição: a falta de conhecimento histórico seguro sobre a escola e a própria noção do termo “pitagórico” que repercute no tempo. Seja como for, ambos os dualismos, de ideias pitagóricas e de problemas que envolvem, tanto a condição espiritual como a matemática de Pitágoras constituem o cerne do seu pensamento. 

 • Capítulo II: Pitágoras e o modo de vida pitagórico
    Permeada de concepções lendárias e tardias de sua imagem, Pitágoras é retratado de modos completamente distintos a depender da época e do autor. Muitos, desde o período clássico consideram o filósofo como Apolo encarnado em decorrência de seu enorme saber. Diz Porfírio que Pitágoras adquiriu seu conhecimento após longas viagens em sua juventude no mundo de sua época: Aprendeu matemática e geometria com Anaximandro, estudou com os sábios egípcios, hebreus, árabes, caldeus, e com o próprio Zoroastro acerca de práticas religiosas e sobrenaturais. Já na Antiguidade Tardia, a humanidade de Pitágoras é obscurecida pelo aspecto místico que adquiriu se tornando um paradigma para de sabedoria. 
    Para além dos mitos, historicamente sabemos que Pitágoras nasceu no século VI a.C., filho de um indivíduo influente na ilha de Samos, diante de um amplo desenvolvimento intelectual e cultural da Grécia Antiga: ao leste do território grego, em Mileto, prosperava a ciência e a filosofia da natureza. Não há fontes históricas seguras quanto a vida de Pitágoras anterior a fundação de sua escola em Crotona, o que podemos deduzir é quanto a sua personalidade e a influência de sua seita moldaram a cenário político desta região da Magna Grécia. Com efeito, apesar dos poucos registros históricos, a escola pitagórica teve uma organização político-social extremamente forte e eficaz contra a ação do tempo. 
    Os participantes da escola estavam ligados a ritos comuns a todos, eles eram designados por se juntarem para escutar os ensinamentos do mestre como homakooi. As práticas dos membros também é objeto de discussão, eles possuíam um voto de silêncio tanto dos ensinamentos e das práticas, a pouca quantidade sobre o tópico é tratada por autores posteriores à escola original. Aristóteles, depois séculos dois, afirmava que os pitagóricos não restringiam o consumo de carne, já Empédocles e o outros pitagóricos pósteros defendiam que a crença na transmigração das almas implica necessariamente uma restrição alimentar. Burkert, segue uma linha semelhante à do Estagirita, o alemão indica que as questões alimentares originais foram pensadas para impedir possíveis conflitos com a religião já institucionalizada em Crotona. Seja como for, os ensinamentos e rituais pitagóricos que provavelmente serviam como meios de identificação dos membros, persistiram até a época de Platão como referência de várias atitudes belas e sublimes. 
    Mesmo possuindo diversos resquícios históricos seguros quanto a comunidade de Pitágoras, há pouco material científico ou filosófico que seja seguramente de autoria do líder. O tópico principal atribuído a Pitágoras é seu grande interesse na metempsicose. Empédocles considerava que a sabedoria que possuía era fruto da recordação das reencarnações anteriores, enquanto Heródoto e Íon de Quíos ironizavam esse aspecto religioso de Pitágoras. Entre o século V e IV, a fama do filósofo já havia se expandido por todo território grego divergindo de opções sobre sua imagem: sábio, líder religioso e charlatão. Figura tal que há de ser completamente transformada pela influência da escola platônica. Jâmblico posteriormente afirmará que após a morte do líder, os membros se dividiram em duas vertentes que se afirmavam como membros verdadeiros da comunidade pitagórica: os mathematikoi e os akousmata, sendo os primeiros interessados no desenvolvimento das ciências matemáticas e os segundos com enfoque na religiosidade apreendida do mestre. Interpretação tal que permite conceber a escola pitagórica constituída pela mescla de ambos os gêneros de conhecimento, a saber, o religioso e o científico. 
    Pitágoras está inserido dentro da primeira linhagem filosófica grega que se preocupava com questões cosmológicas e da natureza em si. Ainda assim, seu nome é mais relacionado com a metempsicose, fato compreensível, visto que esta nova forma de conceber a alma demonstra uma ruptura com a noção homérica, — o homem, a partir do momento que está sujeito ao eterno retorno, se eleva a condição divina com sua psýche imortal. Apesar de todo o crédito imputado a Pitágoras no âmbito da transmigração, não é verossímil que ele tenha elaborado esta teoria sozinho, mas que sim, reinventou e a popularizou no mundo grego. 
     Não há registros que permitam fazer uma genealogia da metempsicose até Pitágoras, a posteriormente será concebido que ele viajou ao oriente em busca de conhecimentos tendo contato com religiões budistas e hindus. Associado desde a Antiguidade ao culto órfico, Kahn demonstra que há incompatibilidade entre ambos os ensinamentos: Orfeu é vinculado ao deus Dioniso, seus membros deixavam por escrito seus ensinamentos, prestavam reverência a diversos deuses, e sua concepção cosmológica repleta de mitos; os pitagóricos, contrariamente, são afeitos ao estilo de vida apolíneo austero, transmitiam seus ensinamentos oralmente e concebiam a natureza em ordem geométrica. Ainda que fundamentalmente distintas, houve um sincretismo entre ambas, a lira de Orfeu será expressão para a música cósmica dos pitagóricos e serão concebidos, o orfismo e o pitagorismo, quase como sinônimos pelas tradições seguintes. 

• Capítulo III: A filosofia pitagórica antes de Platão 
    O pitagorismo anterior a Platão é rodeada de lendas sobre os movimentos iniciais da escola. Além de Pitágoras, houve outro pitagórico expoente chamado Hipaso de Metaponto do qual conhecemos tão somente por doxográfos (geralmente parciais quanto ao tratamento hostil ou amigável com a seita). Derivado dos escritos de Filolau em meados do século V a.C., o véu místico que cobria as doutrinas de Pitágoras começava a desaparecer dando início, de fato, a história da filosofia pitagórica. O conteúdo da obra de Filolau dedica-se sobretudo no âmbito cosmológico da filosofia refletindo o ambiente intelectual que permeava o território grego em sua primeira Ilustração: tal como Tales e Anaximandro, Pitágoras e seus discípulos perscrutavam os archaí do cosmo. Filolau em seus fragmentos aperfeiçoara alguns conceitos de pensadores contemporâneos e anteriores aos seus escritos. 
    Para o pitagórico, a natureza é unida por um princípio de harmonia que coaduna elementos ilimitados e limitados formando uma só ordem e todo. A harmonia é um princípio fundamental na cosmovisão de Filolau, por meio desta, com a mesma função que Heráclito atribui, os contrários se unificam e a multiplicidade se conflui com a unidade em noções matemáticas e musicais. Constituída por essas concepções, a harmonia e o próprio sistema astronômico filolaico é uma operação de adição dos números inteiros de três acordes musicais que sucede na soma de dez. Ora, como o dez é o número perfeito por excelência, o fogo um recurso importantíssimo, e o centro da circunferência local das maiores honras, o universo, por conseguinte, corresponde ao microcosmo: há um fogo central e dez astros, dentre os quais o planeta Terra, dão voltas em seu entorno. 
    As discussões mais recentes sobre o sistema astronômico dos pitagóricos não possuem um consenso entre os historiadores da filosofia. Burkert considera como uma “mitologia científica”, Huffman, ao contrário, admira a exatidão da astronomia contemplativa construída a priori por Filolau. Seja como for, tal concepção de organização da natureza, quase um milênio depois, permitirá Copérnico denominar Filolau como seu precursor e seu sistema heliocêntrico de astronomia filolaica ou pitagórica. Não obstante, apesar da semelhança evidente com o modelo astronômico comprovado empiricamente pela astronomia posterior, a concepção de Filolau apresenta mais um pensamento simbólico ou uma analogia da musicalidade matemática do universo do que um saber científico scricto sensu. Aristóteles e Sexto Empírico dizem que os pitagóricos concebiam toda realidade sob a ordem numérica: o cosmo se faz percebido pelo homem pela matemática. Nessa perspectiva matemática do mundo, os números são duais, são tanto particulares quanto gerais que habitam no Um. 
    Além do desenvolvimento na cosmologia grega, a geometria e a matemática avançaram a largos passos pelos discípulos de Pitágoras. As formas geométricas representam os algarismos, o número dez considerado perfeito, é representado pelo triângulo formado pela soma dos números inteiros. O triângulo, tetractus, é o símbolo pleno da perfectibilidade da harmonia numérica e musical da Natureza. Estes e outros elementos expressos na obra de Filolau permitem deduzir que são anteriores a sua escrita remontando aos ensinamentos que circulavam na escola pitagórica inicial, sendo esse escrito uma fonte confiável da filosofia pitagórica em seu estágio ainda mais “puro”.

• Capítulo IV: A filosofia pitagórica no tempo de Platão 
    No século IV a.C. já havia uma larga comunidade pitagórica espalhada em toda Grécia influenciando o cenário intelectual matemático e filosófico. Além da localidade tradicional da escola pitagórica, no sul da Itália, que se dedicavam a ciência e a filosofia, no oriente grego, na Ásia Menor, o aspecto religioso do pitagorismo ganhava força, semelhantemente, em Atenas os pitagóricos são retratados nas comédias como ascetas mendicantes. 
    Arquitas de Tarento foi dos expoentes pitagóricos nesse período. Retratado como um homem de virtude e sabedoria exemplares, Arquitas exerceu cargos importantes na política grega contribuindo em diversas áreas do conhecimento: música, filosofia da natureza, matemática, astronomia, física etc. O filósofo foi um grande matemático desenvolvendo significativamente a harmonia musical do universo de Pitágoras chegando a influenciar matemáticos posteriores como Euclides. Tem-se poucos registros de Arquitas e seu ciclo social, grande parte do conteúdo a respeito de sua pessoa perpassou o tempo pelos comentadores. Apesar da pouca informação sobre o filósofo sabemos que, além de ser um indivíduo prestigiado na elite grega, era amigo de Platão. 
    Platão foi fortemente influenciado pelos ensinamentos de Pitágoras e um ponto fundamental na história da filosofia pitagórica. Em diversos diálogos é perceptível a transformação das ideias pitagóricas, Platão possui dois tópicos fundamentais de interesse em comum com os pitagóricos: a imortalidade da alma e a matemática como instrumento para compreensão do cosmo. No Górgias já é possível identificar traços da tradição pitagórica, Sócrates faz uma especulação sobre a vida após a morte e diz que o corpo é uma sepultura. No Mênon, o mestre de Platão faz referência direta para com a imortalidade da alma humana e da transmigração das almas, mais esmiuçada no Fédon, Fedro e República, Platão traz os conceitos religiosos de Pitágoras para o âmbito gnosiológico e político. Apesar de todo o arcabouço pitagórico nos diálogos de Platão, a criação de um “novo pitagorismo” acontecera sobretudo no Mênon e no Fédon. 
    No diálogo tardio de Platão, o protagonista do Timeu é um chefe de estado de Locri, no sul da Itália. Neste trabalho, Platão já havia desenvolvido sua epistemologia com ênfase no conhecimento matemático para compreender a realidade. O modelo cosmológico exposto no diálogo é marcado principalmente pela geometria e matemática simbólica, com outros conceitos que já haviam sido trabalhados por Arquitas e Filolau, mas que ganhava novas cores por Platão, no Timeu é sintetizado o saber pitagórico. Os aspectos pitagóricos neste diálogo são tão evidentes que A.E. Taylor atribuí as teorias ali presentes como autoria dos pitagóricos de Atenas do século IV. Provavelmente, segundo Kahn, o diálogo do Timeu, individualmente, foi o mais importante para a posteridade da escola pitagórica. 

• Capítulo V: A nova filosofia pitagórica na Academia antiga 
    As divergências sobre Pitágoras adquirem uma nova roupagem após a difusão dos diálogos platônicos. Há duas grandes tendências nesse debate: considerar Pitágoras o primeiro platônico, ou, como Platão discípulo e plagiador. Platão foi o responsável por transformar a imagem de Pitágoras em um arquétipo de verdadeiro filósofo gerando essa discussão oriundas das menções pitagóricas nos diálogos e na doutrina oral da Academia. Pitágoras, nesse período, discutido por vários filósofos, inclusive Aristóteles. 
    Espeusipo e Xenócrates buscavam similaridades entre a doutrina platônica e pitagórica. Epeusipo nessa tentativa substituiu as formas de Platão por números atribuindo a autoria para os antigos pitagóricos, e ambos os filósofos tratavam o diálogo do Timeu como uma obra essencialmente pitagórica. Nessa mesma tendência, Heráclides de Ponto perscrutou o Pitágoras platonizado pelo viés mais místico dos diálogos, colocou o fundador da comunidade sendo o primeiro e verdadeiro amante da sabedoria, e o primeiro membro da Academia de Platão. 
    Em contrapartida aos filósofos que tentaram por Pitágoras como um platônico, Dicearco de Messina e Aristóxeno de Tarento, discípulos de Aristóteles, vão na direção contrária. Dicearco, recusa todo lado místico do pitagorismo, mas admite que Pitágoras foi um grande líder e político influente com suas doutrinas. Enquanto Aristóxeno, compõem o primeiro trabalho de teoria musical sem os aspectos da harmonia pitagórica, além de derrubar todo os aspectos mitológicos em Pitágoras, e considerar Platão como um plagiador do fundador da escola. Independentemente do modo como foi concebida a relação de Pitágoras com Platão, permanecerá em toda Antiguidade a imagem que a filosofia platônica é estritamente pitagórica. 

• Capítulo VI: A sobrevivência do pitagorismo na época helenística 
    A escola pitagórica, por mais que tenha saído dos tópicos de interesse dos filósofos no século III ao I a.C., permaneceu ainda influente e admirada por muitos. Influência localizada principalmente no sul da Itália, o culto pitagórico é documentado arqueologicamente pelas tabuletas de ouro com símbolos órficos em diversas regiões greco-romanas. O vínculo entre orfismo e pitagorismo que ocorriam dentro dos cultos desta época é algo que permite tão somente especulações, todavia, ainda mais bem registrado é a “literatura pitagórica” que firma a presença dos ideais pitagóricos no período helenístico. 
    As “literaturas pitagóricas” são obras anônimas redigidas em prosa dórica com forte presença da metafísica desenvolvida pela Academia platônica que eram atribuídas a grandes discípulos de Pitágoras como Filolau e Arquitas. O movimento começou em Roma e Alexandria no século I a.C. com Nigídio Fígulo, de acordo com Cícero, revivendo os ensinamentos pitagóricos no Império Romano. Nessas obras encontram-se tópicos distintos e mesclados, em um popular curto tratado de filosofia de natureza atribuído a Arquitas é combinado, dentre outros, muitos elementos da doutrina aristotélica e dos dois princípios desenvolvidos por Filolau, e também sob a mesma autoria do amigo de Platão, encontra-se um tratado de ética elaborado sob o viés aristotélico. Arquitas foi o principal pitagórico antigo a ter o nome vinculado ao movimento pitagórico emergente no Império, não apenas de obras cosmológicas e morais foram atribuídas a seu nome, mas inclusive tratados lógicos. 
    Não obstante, apesar de toda literatura forjada, Kahn elenca dois que foram significativos para o repertório intelectual dos pitagóricos. O primeiro é de escrito por Diógenes Laércio, que traz elementos cosmológicos do platonismo tardio com um monismo substancial que privilegia a Unidade do cosmo, também elabora uma psicologia mesclando saberes pitagóricos, pré-socráticos e platônicos, e por fim, uma construção de uma moralidade religiosa e ritualística que remonta a tradição autêntica das primeiras comunidades pitagóricas do sul italiano. O segundo escrito relevante foi preservado por Sexto Empírico que relata a importância da matemática para os pitagóricos e no valor que a racionalidade possui para desvendar a natureza numérica que há no real, ora como os pitagóricos creem que o universo é todo numérico, tão somente com o exercício intelectivo da matemática se é possível perscrutar profundamente a natureza. 
    A permanência da produção dos livros pitagóricos perdurou por mais de um milênio, a maioria dessas obras são conteúdos simples misturados de diversas doutrinas, dos primeiros pitagóricos aos estoicos. Apesar da falta de credibilidade que há nessas obras, existem dois fatos importantes que delas resultaram: em primeiro lugar, a influência e a força dos ensinamentos de Pitágoras no período Clássico; em segundo, não menos importante, a elaboração de uma nova fase na tradição pitagórica que se distancia cada vez mais da autêntica. 

 • Capítulo VII: A tradição pitagórica em Roma 
    Pitágoras esteve em pauta sobretudo em Roma com a ascensão do Império. Os primeiros registros da exaltação pitagórica foram no século III a.C. quando uma estátua do fundador da comunidade fora construída no fórum romano. Para além da filosofia, da mística e da matemática, Pitágoras tornou-se objeto dos poetas e parte do folclore popular dos romanos, Ovídio e Ênio introduziram o mestre em suas obras poéticas. Ademais, até mesmo nos tratados de agricultura há influências dos pitagóricos, Catão nomeia uma espécie de repolho como brassica pythagorea. Fato compreensível dado o período histórico vigente de patriotismo em Roma, em busca de um símbolo máximo de sabedoria e virtude, Pitágoras, como fora descrito desde Aristóteles, é italiano e sua comunidade fundada na península itálica. 
    Políticos e intelectuais importantes também possuíam um apreço especial por Pitágoras. Varrão, por exemplo, foi sepultado de acordo com os critérios ritualísticos dos pitagóricos. Cícero, em diversas obras exalta Pitágoras: em sua tradução do Timeu, dedica sua empreitada à Nigídio Fígulo; relata em De Finibus a emoção que vivenciou em Metaponto ao procurar a casa onde Pitágoras falecera; e também nas Disputas Tusculanas afirma que os primeiros republicanos da Itália tinham em sua perspectiva a grandeza de virtude e sabedoria de Pitágoras. 
    Grande divulgador das doutrinas pitagóricas em solo romano foi Nigídio Fígulo, há poucas informações sobre o pitagórico, conhecemos seus feitos principalmente por notas anedóticas, por Cícero e Varrão. Fígulo era conhecido por possuir conhecimentos de diversas regiões do mundo greco-romano dando ênfase, em especial, ao caráter esotérico do pitagorismo. Seus ensinamentos são marcados pela mistura entre mágica e ciência, era um pythagoricus et magus. Não apenas Nigídio Fígulo foi um pitagórico ilustre em Roma, mas também Quinto Sêxtio que possuía um círculo de membros que guardavam rígidos princípios morais. 
    Ambos os filósofos que foram notáveis em Roma por sua doutrina pitagórica, mesclaram os saberes morais platônicos e pitagóricos produzindo uma nova espécie de moralidade que acentuava a importância da consciência ética, a autocrítica e a interioridade como forma de edificação. Após as influências romanas, Pitágoras e os pitagóricos transformaram-se, novamente, em uma nova doutrina.

• Capítulo VIII: Os filósofos neopitagóricos 
    O título de neopitagórico é fruto também de debates sobre o posicionamento de cada historiador da filosofia. Kahn considerará como neopitagórico aqueles que veem a tradição platônica pela ótica de Pitágoras. O primeiro filósofo que se encaixa nos critérios do autor é Eudoro de Alexandria. Trabalhando principalmente na cosmologia do Timeu, Eudoro elabora uma ética derivada da cosmologia platônica desenvolvida pela mesclagem das ideias de Pitágoras e de Platão. Especificamente metafísica e sobrenatural, seus ensinamentos rompem com a Nova Academia retornando aos moldes da primeira escola platônica do século IV a.C. Na mesma linha metafísica com viés pitagórico, também em Alexandria, Fílon utiliza-se das noções platônicas-pitagóricas para elaborar sua exegese bíblica, principalmente em sua numerologia, remodelando os aspectos simbólicos dos números pitagóricos. Posteriormente próximo de 50 a.C. a 50 d.C. outro movimento neopitagórico eclode no Ocidente. Três filósofos do qual sabemos pouca coisa foram responsáveis, apesar de sua obscuridade, de influenciar significativa a doutrina pitagórica: Moderado de Gades, Numênio de Apaméia, e Nicômaco de Gerasa. A principal diferença entre os três com Eudoro e Fílon, é a atribuição das próprias ideias a si mesmo, ao contrário de tributar para Platão ou Pitágoras. 
    Moderado possui uma perspectiva intensamente sóbria sobre as doutrinas de Pitágoras. Para ele, os ensinamentos tradicionais pitagóricas são fáceis de serem compreendidos, todavia, em decorrência da incapacidade dos filósofos em explicarem a numerologia pitagórica substituíram pelas Formas. Moderado, portanto, está alinhado com a tradição que concebe Platão como um plagiador de Pitágoras, uma vez que a própria noção de número para os discípulos da escola pitagórica era entendida já como atributos imateriais da realidade. Outra contribuição significativa do filósofo de Gades é a nova chave hermenêutica do Parmênides de Platão, também para a metafísica neoplatônica acerca da matéria e do Uno, e inclusive para o entendimento gnóstico moral da materialidade da natureza. 
    De maneira similar a Moderado, Nicômaco, seguindo uma linha pitagórica distinta, também possui uma noção lúcida de Pitágoras. Nicômaco dedicou-se na geometria, matemática e música, não foi responsável por inovar estas ciências em seu período, sua contribuição se dá principalmente na sistematização didática de conceitos matemáticos. Sua Introdução à Aritmética transcorrerá o tempo, e será utilizado na Idade Média como material didático para os alunos. A metafísica que Nicômaco irá elaborar sutilmente é consequência da sua teoria da harmonia musical de interpretação dos movimentos celestes, aliás, a própria metafísica, para o filósofo, poderia ser substituída pela aritmética dado que esta é a própria linguagem que o demiurgo se expressa na natureza. Grande parte dos seus escritos se perderam, suas informações que ficaram intactas são de alçada de Jâmblico e Porfírio em utilizar das ideias do neopitagórico como contra-argumento para as incursões cristãs que ocorriam no período. 
    O último neopitagórico que Kahn apresenta é Numênio. As influências do filósofo foram enormes na filosofia ocidental, seus textos eram lidos e debatidos por Plotino e seus discípulos que beberam em larga medida dos seus escritos. Numênio tinha o intuito de buscar a pureza da Academia Antiga e encontrar a essência de todo conhecimento platônico. Sua principal obra, pode-se dizer, é uma interpretação do Timeu, Sobre o Bem, dedica-se em questões cosmológicas reunindo as teorias básicas de Pitágoras com o desenvolvimento exercido nessas ideias por Platão. Sinteticamente, seu modelo cosmológico aproveita a noção unitária do deus dos pitagóricos e platônicos que faz da realidade o melhor possível em decorrência de sua bondade. O Uno é correlato ao Nous que se subdivide na construção da natureza, de modo similar a emanação plotiniana, a alma humana possuí completamente o intelecto divino, o corpo inerente a matéria é mau por estar distinta dos primeiros objetos elaborados pelo demiurgo. Após Numênio, absolutamente todo pitagorismo será aproveitado pelos neoplatônicos. 
    Além destes, Jâmblico e Porfírio exerceram um papel fundamental no destino da tradição pitagórica e neoplatônica posterior. Eles retratam em suas Vidas de Pitágoras o lado mais místico e esotérico do fundador da comunidade pitagórica, reforçando a imagem mítica de Pitágoras como uma forma de contenção do cristianismo que se espalhava em território pagão. Foram também responsáveis por fazer de Pitágoras um santo e um pioneiro da tradição platônica, destacando o valor matemático dos ideais de Platão. Jâmblico, diferentemente da biografia de Porfírio, em seus escritos sobre a doutrina pitagórica, dá ênfase nos aspectos doutrinários, dogmáticos e institucionais do pitagorismo. Platão, nesse ínterim neopitagórico, continuará sendo louvado pelas suas contribuições para a filosofia, porém com o viés neoplatônico de conceber suas doutrinas sem nenhuma distinção entre platonismo e pitagorismo, — ambas as doutrinas se fundem em um só corpo. 

• Capítulo IX: O legado pitagórico 
    O legado da tradição pitagórica para o pensamento do ocidente é de suma importância e divide-se em três principais tópicos: o âmbito sobrenatural, alimentar e matemático. No primeiro aspecto, a sobre-naturalidade do pitagorismo se dá especialmente pela imagem construída, desde a fundação da primeira escola de Pitágoras, que o fundador é um homem-divino, sábio e possuidor de grandes virtudes. No segundo, as influências se dão via a concepção de transmigração das almas e os ensinamentos morais que acarretava o lado místico do saber pitagórico. No terceiro e último legado, a importância da matemática como ferramenta para a compreensão do universo que irá ter suas consequências mais notáveis em Kepler e Newton. A acentuação do lado mítico do pitagorismo se deu no período helenístico e neoplatônico. Com a revivência das ideias de Pitágoras, principalmente em Roma e Alexandria, formaram-se muitos círculos pitagóricos que seguiam a ritualística da escola. O movimento religioso pitagórico foi popular, Ovídio e outros poetas retratam o Pitágoras deificado. Não obstante, fora do ambiente intelectual do pitagorismo, foram notáveis alguns personagens, como Alexandre de Abonuteico e Apolônio de Tianam, que eram considerados “santos” e sábios no conhecimento do oculto. Pitágoras, seus discípulos e ensinamentos nesse período escaparam da elite intelectual romana, se integrando na cultura e no folclore popular. 
    Correlata ao aspecto religioso de Pitágoras, o vegetarianismo que surgiu no primeiro século da Era Comum em Roma é consequência da noção da metempsicose pitagórica. Apesar das divergências que há sobre a origem desse movimento no Império Romano, o crédito fora atribuído pela tradição a Pitágoras. Tanto a noção de “familiaridade” com os seres vivos como a imagem de homem virtuoso, permanecerão intacta até no século XVIII quando Voltaire exalta as doutrinas pitagóricas por possibilitarem uma relação para com o mundo mais bela e sublime. 
    Já no âmbito matemático do pitagorismo, foi onde causou maior influência e também o seu fim. As noções matemáticas e numéricas deixadas pelos pitagóricos chegaram a Idade Média e foram utilizadas por séculos, passando pelos filósofos e cientistas da Renascença que será feita de instrumento para a exegese da Cabala. Para além dos medievais e renascentistas, a principal obra que Pitágoras influenciou foi a Harmonia de Ptolomeu que será de suma importância para as contribuições astronômicas de Kepler no século XVII. Copérnico, como grande parte dos filósofos renascentistas, faz citação a Pitágoras para justificar sua explanação sobre o movimento da Terra. Todavia, tão somente com Kepler que o pitagorismo é evidentemente vivido. Kepler concebe Deus como um sumo-artífice geométrico, influenciado pelo Timeu, que pode ser descoberto pelas relações matemáticas que há nos fenômenos. Kepler, segundo Kahn, só conseguiu dar continuidade aos trabalhos de Tycho Brache por ter o ímpeto pitagórico de desvendar a natureza pela ótica geométrica. Com os trabalhos do astrônomo o pitagorismo chega ao fim, do século XVII em diante, o cientista ser pitagórico só pode ser considerado metaforicamente. 

                                    




• REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 KAHN, Charles H. Pitágoras e os pitagóricos: uma breve história. São Paulo: Editora Loyola, 2007

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