A CONSCIENTIZAÇÃO ACERCA DA AIDS NA UGANDA: PSICOEDUCAÇÃO.

        O sul da África desde meados da década de 70 vem sofrendo com uma grave epidemia do vírus do HIV. Em 2003 tem-se em média que aproximadamente 2,4 milhões de pessoas tenham falecido em decorrência da AIDS e cerca 30 milhões estão com o vírus ativo em seu organismo na região subsaariana do continente. Longe de ser tão somente uma questão de saúde de pública, a disseminação da enfermidade abalou toda infraestrutura sociopolítica agravando de modo contumaz as dificuldades já preexistentes dos países africanos. 

        Na região central da África, em Uganda, as taxas relacionadas ao vírus do HIV vêm diminuindo drasticamente proporcionando um exemplo profícuo frente as crises geradas por doenças sexualmente transmissíveis; com políticas públicas de conscientização, mudanças de comportamentos interpessoais, tratando a epidemia sem critérios morais pré-concebidos, o país, nas palavras do ex-epistemologista da Organização Mundial da Saúde, Rand Stoneburner, tomou uma “vacina social” mais eficaz e acessível financeiramente que os métodos de combate ao HIV empregados em outras regiões do globo tal como o uso de preservativos e fármacos que impedem o desenvolvimento da patologia no corpo humano — ademais, é válido destacar que a facilidade de acesso a preservativos se mostrou ineficaz frente a sistemática educativa (Botsuana e Zimbábue, mesmo com a disponibilidade de camisinhas, continuam com uma taxa elevada de pessoas com HIV positivo). 

        O ponto de virada na grave relação com a AIDS na Uganda sucedeu após o presidente Yoweri Museveni assumiu o cargo estatal. Com um país devastado por ditaduras, conflitos internos, doenças infecciosas, Museveni começou uma larga campanha de combate à disseminação do HIV com três critérios preventivos basilares: castidade, observância e zelo matrimonial, e preservativos. Ainda que com pouco apoio de instituições humanitárias do ocidente que estimulavam o uso de preservativos, amplas entidades da sociedade uganlandesa se mobilizaram com o governo e com a Comissão de Aids de Uganda afim de proporcionar uma conscientização salutar acerca da problemática e da intimidade sexual da população. 

        O resultado da conscientização: no final do século passado e início dos anos 2000 a epidemia já estava excepcionalmente controlada no país africano com altos índices de indivíduos se abstendo de relações sexuais fora do casamento, com casais fiéis aos seus respectivos companheiros, com redes de informação sobre a AIDS em todo território, concomitantemente, com facilidade de obtenção de preservativos por parte do grupo de risco (meretrizes e pessoas que trabalham de forma ativa com o sexo), e de igual importância, o índice de contaminação radicalmente atenuado em dois terços. 

        Dentre todas as medidas adotadas, na antiga capital da Uganda também fora estabelecido por voluntários uma rede apoio para pessoas que testam positivo para o HIV, a Organização de Apoio à Aids visa enfrentar os preconceitos ligados a enfermidade e proporcionar um auxílio adequado para os indivíduos infectados; igualmente, com o intuito de prevenir a epidemia à longo prazo, desde o início dos estudos as crianças são instruídas sobre questões acerca da sexualidade e dos riscos de possuir uma vida sexual ativa fora do matrimônio ou relações vulneráveis às DSTs. 

        Não obstante, apesar de todo progresso que o país conquistou da década de 80 para o início do século XXI Uganda ainda sofre com as consequências da crise de saúde pública ocasionada pela Aids, por exemplo, com um número significativo de órfãos, filhos de pais vitimados pela enfermidade, e com uma taxa elevada de contaminação comparada aos países europeus.  

        Com efeito, de acordo com os dados levantados pelo Programa de Aids da ONU, nos países adjacentes a situação epidêmica é ainda mais alarmante com índices elevadíssimos de pessoas com o vírus ativo do HIV. O presidente Museveni deduz que a negligência perante a AIDS se origina pelo tabu existente sobre a sexualidade em regiões mais conservadoras da África; tal como no Quênia, onde em decorrência da contrariedade popular e estatal diante dos métodos de combate a AIDS, o governo só declarou estado de emergência quando a propagação do vírus já havia gerado consequências substanciais, estima-se que acerca de 700 pessoas faleciam diariamente resultante da doença em 1999. Todavia, com a chegada ao governo em 2002, o presidente queniano Mwai Kibai, o combate e prevenção à AIDS tomou uma proporção significativa com centros médicos e educativos para a popular. Seguindo o exemplo de Uganda, Quênia e Zâmbia, vêm se desenvolvendo principalmente entre os jovens através das mudanças de atitudes funcionais e preventivas em relação ao sexo.



 

AS NOÇÕES COMUNS DE MIMESE EM PLATÃO E ARISTÓTELES

        O conceito de mimese é parte do vocabulário ocidental desde os primeiros expoentes da literatura grega como Homero e Hesíodo, alcançando seu desenvolvimento sobretudo no decorrer de toda a história da filosofia: da primeira Ilustração grega aos critérios estéticos de Adorno no século XX. Ainda que outros filósofos pré-socráticos já houvessem utilizado do termo em seus pensamentos, tão-somente com Platão e Aristóteles, séculos mais tarde, a noção de mimese será incorporada e aprofundada em suas obras iniciando a teoria da arte na filosofia ocidental. 

        Não obstante, apesar de tradicionalmente atribuído ao livro décimo da República de Platão e na Poética de Aristóteles, o conceito possui significações distintas em outras obras dos filósofos demonstrando a importância e versatilidade da palavra no repertório filosófico grego no decorrer do período socrático. Desde os diálogos platônicos de juventude até os tardios a mimese é inserida, e na filosofia aristotélica, o conceito é aplicado em múltiplas maneiras tanto nos fundamentos físicos quanto biológicos. A despeito da multiplicidade que a mimese foi desenvolvida em Platão e em Aristóteles, é sobretudo no âmbito da estética e da arte que será majoritariamente atuante em seus pensamentos e influente na tradição filosófica posterior. 

        Para uma compreensão segura sobre a noção de mimese em Platão é preciso, antes de tudo, pormenorizar a epistemologia presente em seu pensamento. De acordo com o discípulo de Sócrates, não há ciência sem o uso da dialética. A ascensão dialética é a base de seu dualismo e de seu entendimento sobre o que é o conhecimento verdadeiro. O filósofo, influenciado pelos pensadores eleatas, identificara uma clara distinção entre o permanente e o transitório, afirmando a superioridade do primeiro em relação ao segundo. De acordo com seu dualismo, Platão compreendia o mundo fenomênico como uma cópia imperfeita do mundo suprassensível, e uma vez que os objetos materiais estão sujeitos ao devir, por si só não possui nenhum valor científico. 

        Para compreender o que Platão concebe como conhecimento verdadeiro, é imprescindível ter o entendimento de como ocorre a ascensão dialética e a divisão que o mesmo faz sobre a realidade empírica e inteligível. O fundador da primeira Academia grega acreditava ser essencial constatar a superioridade às Ideias sobre os objetos sensíveis justamente pelo fato que a sensibilidade está em constante mudança, enquanto as Ideias, habitantes do mundo suprassensível, permaneceriam imutáveis e, portanto, esta deveria ser o objeto de uma investigação segura, sem estar correndo o risco que deixar cair-se no engano ocasionado pelas sensações. 

        A alegoria da caverna, retratada na República, representa as etapas do processo dialético rumo ao conhecimento verdadeiro. Como já foi dito, Platão distingue dois tipos de saberes, o sensível e o inteligível, que se subdividem: nas sombras, aparência sensível dos objetos; nas marionetes, representação própria dos objetos empíricos; no muro, limiar que separa os dois tipos de conhecimento; no exterior da caverna, realidade das ideias em si; por fim, no sol, suprema ideia do Bem e da Verdade. Platão, através da narrativa do mito da caverna, demonstra que as coisas do mundo sensível são apenas ilusões, e que para contemplar as Ideias só é possível através da reflexão, do raciocínio, do pensamento. Em suma, Platão demonstra a passagem do conhecimento meramente opinativo (dóxa) para o conhecimento real e verdadeiro (epistéme) que só seria alcançado mediante a dialética que engloba tanto o saber matemático quanto o filosófico. 

        Visto isso, intimamente conexa com a epistemologia e metafísica de Platão, a mimese no livro X da República é submetida a critérios gnosiológicos que atestam sua invalidade como modelo de conhecimento, levando, consequentemente, ao campo da ética e sua rejeição. É válido destacar que a discussão acerca da mimese como imitação é posterior à alegoria da caverna, reforçando a construção da teoria do conhecimento platônica e suas implicações na vida política. 

        A arte, como imitação, é concebida por um viés negativo por Platão: é inferior ao saber filosófico, embrutece o homem suscitando paixões baixas, e principalmente, afasta o indivíduo cada vez mais do Sumo Bem, ou na terminologia alegórica exposta no mito da caverna do livro VII da República, mantém o indivíduo entretido em seus grilhões. Cópia do mundo sensível, a arte é a falsificação da falsidade e deve ser proibida na utopia platônica. Em todas suas manifestações, a arte é a imitação dos fenômenos que são imperfeitos em si. Portanto, a mimese compreendida como imitação da natureza e, por conseguinte, das aparências, é algo que deve ser afastado dos indivíduos que visam a contemplação da verdade e a ordenação de sua alma com o auxílio da racionalidade. 

        Diferentemente de seu mestre, Aristóteles não concebe a mimese de modo negativo ou que afasta o homem da verdade. A imitação possui para o Estagirita uma significação dupla: em primeiro lugar, o aspecto ativo que representa uma ação ou uma atitude; em segundo, o retratado verdadeiro e universal da natureza. A arte recria a natureza, o homem, concebido como ente natural, é mimetizador em todos seus atos, e o artista aquele que vai considerar, nas possibilidades das possibilidades, o universal. 

        Desse modo, a poesia e a mimese poética, é um saber mais profundamente filosófico do que a história narrada pelos historiadores; enquanto o primeiro retrata a natureza e o gênero humano em seu modo atemporal e essencial, o historiador descreve fatos particulares restritos a um só tempo e acontecimento. Aristóteles, portanto, não compreende a mimese como algo falso e cópia imperfeita da cópia do mundo suprassensível, mas a entende como a imitação de um processo real uma vez que escapa a causa material e capta a formalidade do objeto. A própria natureza, de acordo com o fundador do Liceu, é artística por imitar um princípio teleológico interno, enquanto o ser humano, como causa eficiente dos processos poéticos mimetiza pela exterioridade. A arte, ao contrário de Platão, é indutiva: parte do particular para o universal, abrindo um caminho para a realidade que subjaz na sensibilidade do mundo. 

        O poeta, ao imitar a natureza em suas possibilidades, descreve algo que pode ser verossímil na realidade possibilitando conhecer tanto a realidade quanto as aptidões intelectivas próprias da alma racional. Além do mais, para Aristóteles, a poesia mediante a mimese é própria do ser humano, um modo que possibilita a obtenção de conhecimento estimulando o indivíduo a buscar os critérios universais do real. Em síntese, é possível traçar diversos contrates entre as noções comuns de Platão e Aristóteles, sendo as principais respectivamente: para o ateniense a mimese é falsa e embrutece o ser humano; para o estagirita a mimese demonstra o real em sua universalidade e engrandece o homem ao impulsioná-lo à saber.




A DIFERENÇA ENTRE A ÉTICA TELEOLÓGICA, DEONTOLÓGICA E UTILITARISTA

        As éticas teleológicas, deontológicas e utilitaristas são três abordagens distintas na filosofia moral, diferindo em suas bases teóricas e critérios para determinar a moralidade de uma ação. Cada uma das quais compreendendo uma hierarquia de valores distintos dependendo da abordagem filosófica que a ética é tratada. De forma sintética, é possível definir em três conceitos principais chaves para ambas: Na perspectiva teleológica, que possui um fim último, é a felicidade; na ética deontológica, imanente a toda ação virtuosa, o dever; no viés utilitarista, com o auxílio da razão pragmática, a ação útil a si e a coletividade. As diferenças mais notáveis entre as éticas são intrinsecamente ligadas com a própria conceituação de seu repertório teórico, portanto, cabe explicá-las para demarcar as principais diferenças essas abordagens em discussão:

        Ética Teleológica (consequencialismo): As éticas teleológicas, também conhecidas como consequencialistas, concentram-se nas consequências ou nos fins últimos de uma ação para determinar sua moralidade. O termo "teleológico" deriva da palavra grega "telos", que significa "fim" ou "objetivo". Nessas noções éticas, o valor moral de uma ação é determinado com base em seus resultados ou consequências. O foco principal está em maximizar o bem-estar, a felicidade, a satisfação ou algum outro objetivo final desejado. Exemplos de éticas teleológicas incluem Aristóteles e Tomás de Aquino como autores que discorrem nessa perspectiva. Para o Estagirita, o telos de todas as ações é a felicidade, enquanto para o Aquinate, na mesma linha que Aristóteles, a teleologia da ética é a bem-aventurança de estar em comunhão com Deus.

        Ética Deontológica: As éticas deontológicas, em contraste com as teleológicas, concentram-se nos deveres, obrigações e princípios morais inerentes à própria ação, independentemente de suas consequências. A palavra "deontologia" tem origem no grego "deon", que significa "dever". De acordo com a ética deontológica, algumas ações são moralmente corretas ou incorretas por natureza, independentemente das consequências que possam surgir. Exemplos de éticas deontológicas incluem a ética kantiana, que se baseia no princípio do Imperativo Categórico, e a ética dos direitos, que se concentra no respeito aos direitos individuais. O dever, ao contrário do fim, é o demarcador da ação moral e imanente à nervura do real.

        Ética Utilitarista: O utilitarismo é uma forma específica de ética teleológica cujo norte direcionador é o princípio da utilidade, também conhecido como princípio do maior bem-estar. O utilitarismo enfatiza a maximização da felicidade, do bem-estar ou do prazer como critério para determinar a moralidade de uma ação tanto relacionada aos aspectos do indivíduo quanto ao corpo político em sua integralidade. Ele avalia as ações com base em seu impacto nas consequências globais, buscando produzir a maior quantidade de felicidade (que é sinônimo de prazer) ou bem-estar para o maior número de pessoas possível mediante a utilidade de determinada ação. Em resumo, as éticas teleológicas concentram-se nas consequências de uma ação para determinar sua moralidade; enquanto as éticas deontológicas enfatizam os deveres e princípios morais inerentes à própria ação, independentemente das consequências; já a ética utilitária é estruturada, diferente da teleológica em si e da deontológica, pelo prazer consequente de um ato, ou seja, a retidão de uma ação depende exclusivamente da bondade final que esta acarreta independentemente dos meios que levam ao prazer final. 





UMA INTERPRETAÇÃO HEIDEGGERIANA DA EXISTÊNCIA HUMANA NA MÚSICA CONSTRUÇÃO DE CHICO BUARQUE

        A construção é parte da civilização humana, talvez, seu aspecto mais significativo. Escapando tão somente a exterioridade de suas manifestações, como é o conteúdo aparente na música em análise do Chico Buarque. Em sua etimologia latina, construir provém de construire designando o edificar, levantar. O homem constrói a realidade em seu entorno: edificando sistemas abstratos tanto filosóficos quanto artísticos; levantando monumentos arquitetônicos e manifestando a grandeza em sua complexidade sociocultural do ser humano no decorrer da história. Construir é próprio do ser humano em sua capacidade de transformar a natureza. 

        Refletida por Heidegger em Ser e Tempo, a existência é construída visto que a sua condição finita no mundo, intrínseca a sua essência, constitui parte de uma dimensão ontológica do ser humano: a realidade, sua existência não lhe são dadas de antemão em um plano imutável, mas estão por serem edificadas movidas pela tensão contraditória entre existir e não-existir. A despeito da existência humana não lhe ser dada em todas suas dimensões, o Ser, que se manifesta no Dasein, é histórico, isto é, o homem é lançado no mundo em determinados contextos que forjam a significação existencial que lhe buscada para lidar com a angústia da própria temporalidade finita. A consciência da própria morte impulsiona a dispor de uma autenticidade do viver, ou, na terminologia de Espinosa, faz que o homem exista em ato. Essa autenticidade da existência, para Heidegger, é construída. O pensamento é uma construção, e pensar é construir. 

        Não apenas a existência e a própria construção é debatida nos círculos filosóficos, Chico Buarque elabora uma música na qual retrata a condição de um operário que perpassa os dias de sua existência de modo automático sob uma condição inautêntica de viver. Sob uma proposta hermenêutica diferente, Chico com seu Dasein, em um período histórico formado pelas condições precárias do trabalhador, em plena ditadura militar, concebe a alienação tanto do construtor civil quanto das pessoas que consideram belo e sublime a condição automatizada da exploração da mão de obra proletária. 

        Inautenticidade, nos termos de Heidegger, é a palavra-chave para caracterizar a condição retratada na música. Viver autenticamente é existir se lançando para o futuro, buscando através das condições históricas o sentido de uma vida plena de significado, fazendo de seus atos expressões do Ser que se manifesta no mundo. Ora, um operário que vive por meio de condições que impedem a capacidade de reflexão de pensar, ou seja, construir, transcorre sua existência sem que encontre uma autenticidade própria do seu ser-no-mundo. A própria existência, a autenticidade que é essencial para a realização do ser humano, se torna objeto nas condições de trabalho capitalista: o homem, na concepção de alienação exposta no O Capital de Marx, transforma-se na própria mercadoria que produz. Segue-se que, sendo a autenticidade inerentemente humana, e o homem feito mercadoria pela condição alienante do trabalho, resplandece em cada ato automatizado do homem-máquina a inautenticidade do seu viver.




A DIFERENÇA CONCEITUAL ENTRE ÉTICA E MORAL

    O homem é um ser político, concebido seja com viés naturalista ou contratualista, a moral necessariamente emerge frente aos costumes sociais visando ao bem-estar coletivo. Intrínseca a todo corpo social, a moralidade abrange códigos, princípios e valores que ganham consistência mediante a relação individual e pública do agir. Para esta não há um fundador específico há quem possa se atribuir a constituição moral de um povo. Ela é anônima, formada por inúmeros indivíduos que seguindo as tradições e inovações conceberam um modo do bem-agir em determinado espaço e tempo próprio, são conceitos ambientais próprios e sujeitos a ação do tempo, exemplificando: uma ação que seria considerada bela e sublime na moral tradicional patriarcal, aplicada na contemporaneidade, com novos princípios e valores, estaria inadequada e injusta. 

    Fruto da racionalidade filosófica, a ética se distingue da moral em decorrência de seu caráter sistemático e reflexivo — ou seja, enquanto a moralidade ela surge pela experiência do viver, a ética, pelo contrário, nasce do pensar sobre a moral. Outra diferença contumaz entre ambas as áreas do pensamento humano é seu aspecto “autoral”, é possível atribuir um autor para dada reflexão sobre o tema, no decorrer da história da filosofia, por exemplo, inúmeros pensadores se dedicaram a repensar a ética proporcionando ferramentas para fazer uma análise ética da sociedade: pode-se fazer um discernimento ético se utilizando de Aristóteles, Espinosa ou Kant, enquanto no âmbito da moral, tal discernimento é inválido dado seu caráter temporal e subjetivo de alguma localidade, isto é, não se pode utilizar dos preceitos morais do êxodo do povo hebreu para se fazer um juízo da moralidade norte-americana do século XXI.

    Ela teoriza a respeito do bem-agir humano com o fim de dar respostas consistentes acerca do bem problematizando e superando os limites da moral vigente em determinado contexto, construindo códigos de normas, princípios e valores. Não obstante, a ética também abrange múltiplas áreas do viver humano, tanto no âmbito profissional quanto nos debates bioéticos. A reflexão de cunho ético se torna estritamente necessária para uma possível revisão dos valores presentes na moral; como a moral está sujeita às mudanças do tempo, conforme já explicitado, elas podem se tornar antiquadas e maléficas para o convívio dos indivíduos.




HERMENÊUTICA EM SCHLEIERMACHER : LINGUAGEM, TALENTO, CÍRCULO E MÉTODO HERMENÊUTICO

        Para Schleiermacher hermenêutica é um processo artístico de compressão e interpretação de textos. Mesmo sendo uma arte de compreender, para uma interpretação válida dos escritos é preciso certos aspectos mecânicos não fechados em si mesmos para a compreensão dos textos. O composto básico e constituinte de toda hermenêutica é a linguagem que, para nosso autor, comunica e é infinita em suas possibilidades de manifestação. Todavia, é válido destacar que diferentemente da retórica que também se utiliza da linguagem, a hermenêutica tem seu fim último em desvendar os pensamentos do orador no qual ela se dedica.   

        Tendo em vista que o telos hermenêutico é uma clarificação do uso da linguagem do orador em seus escritos, uma arte que se consuma na interpretação gramatical, Schleiermacher considera que é necessário possuir um talento para com a linguagem e de conhecimentos dos indivíduos, e também experiência que o sujeito, que se dedica a interpretar um texto, deve dispor. Não obstante, é preciso ter um conhecimento suficiente do “círculo hermenêutico” aparente que o autor interpretado está inserido e pode ser pormenorizado sabendo: seu idioma original, o ambiente intelectual de sua época, dentre outros aspectos que o influenciaram a fechar um ciclo de pensamento que se expressa mediante o uso da linguagem. 

        Ademais, para Schleiermacher, o processo de hermenêutica está ligada a passos interligados para uma possível elucidação do texto, seguida da interpretação gramatical e técnica, há a psicológica que serve de auxílio para a compreensão dos textos através de uma perspectiva totalizante da vida do autor que há de ser interpretado. Dentre outros componentes essenciais para esta forma de interpretação, Schleiermacher elenca duas fundamentais: o método comparativo e divinatório. Respectivamente, o comparativo coloca o autor interpretado, com sua individualidade descoberta diante de outros contemporâneos seus que debatiam acerca do mesmo tema, se expressavam com o mesmo gênero de escrita, possibilitando conhecer tanto a identidade quanto a alteridade do autor em seu meio. Já o método divinatório, corresponde à um processo de abstração por parte do hermeneuta que se coloca no lugar do autor trabalhado e, ao tentativas e erros, se transformar e tentar entender a individualidade do sujeito diretamente.  

        Em síntese, o interpréte precisa utilizar todos os passos e meios de interpretação para elaborar sua arte de compreensão de forma bela e sublime. A hermenêutica não fechada em si mesma, nem suas regras e técnicas, mas é um modo no qual o autor deixa de fazer parte de um determinado contexto sócio-histórico para entrar em um diálogo com o seu leitor que elucida de modo sistemático seus pensamentos para além de tão somente o manejo e entendimento da linguagem do autor. Nesse sentido, a hermenêutica exige puramente de talento da linguagem e de empatia para entender outros indivíduos.




POSICIONAMENTOS TEÍSTAS E HUMANISTAS ATEUS DIANTE DO PROBLEMA DO MAL

  •  O teísmo e as reações diante do mal: 
        A reflexão do mal perpassa o tempo e suas alternâncias. No mundo secularizado a questão toma proporções magnas e distintas mediante os entendimentos teístas e humanistas ateístas próprios da passagem do período moderno ao contemporâneo. As reflexões acerca da problemática do mal, do silêncio e do desamparo de Deus ultrapassam os domínios teológicos-filosóficos e resplandecem em outras diversas manifestações culturais. Após os movimentos históricos do início do século XIX à contemporaneidade, o sentido da existência humana tornou-se objeto de reflexão diante do mal que atinge proporções industriais e globalizadas. A questão do mal direcionou-se para o enfrentamento ético, político e religioso. O ato de refletir sobre o escândalo da maldade que assola a humanidade, mesmo de modo secularizado, é o pensar acerca do projeto soteriológico próprio das tradições religiosas de natureza judaico-cristã.  

        Objeto tradicionalmente debatido em critérios metafísicos, o mal no período moderno-contemporâneo é visto por meio da nervura do real imanente que o homem se depara: Da condição desumana dos assalariados nas indústrias europeias, à morte de Deus anunciada por Nietzsche, o fracasso da utópica razão esclarecida dos Iluministas, a vulgarização do sofrimento nos campos de batalha e de concentração das duas grandes guerras, a ascensão sistemas políticos totalitários, dentre outros demais males que fizeram o homem, em um ato de contestação, protestar diante do silêncio de Deus. Dito de outro modo, todo projeto filosófico-social sonhado por pensadores do século XVII ao XIX falharam, o ser humano defronte aos impasses recém-adquiridos em sua trajetória se dispõe a resolvê-los por outro caminho. 

        Dostoiévski no romance Os Irmãos Karamazov anuncia e retrata a condição do homem moderno na presença do mal. O autor suspende o juízo perante a moral e dos valores transcendentes que tanto a tradição religiosa quanto a filosófica sustentou e construiu o mundo ocidental. O homem deixando de contemplar os céus, percebe a fragilidade e as consequências da sustentação metafísica do agir. Não obstante, apesar da dúvida da presença de Deus na história da humanidade, o escritor russo afirma que sua existência é necessária como impedimento para plena liberdade da moral, isto é, os resultados do livre agir humano que afirmam sua capacidade para a maldade levam, fatalmente, à afirmação de Deus. Para mais disto, a existência do Ente Absolutíssimo construído pelas religiões é fundamental para a própria noção de humanidade e a liberdade das ações, sua existência permite, de modo universal, a distinção entre o bem e o mal moral tornando os humanos verdadeiramente humanos.  

        Sintetizadas nas palavras de Ivan Karamazov, Dostoiévski aponta para a incompatibilidade do mal, da vítima inocente e do agente do mal. A criação é corrompida pelo sofrimento, pela injustiça, e provoca o autor, a revolta própria dos homens em face de um Deus bondoso e onisciente é a contradição existente para a dureza do existir empírico diante a sublimidade dos dogmas religiosos. Por consequência essa aporia já debatida por Lucrécio, o escritor, tal como Jó, contesta a criação e o projeto redentor do Cristo. A fé, nesse sentido, deixa de ser objeto de racionalização e adquire uma postura existencial frente às dores do mundo.  

        Propondo dar uma solução válida aos novos modos de lidar com o mal, por um trajeto filosófico, Horkheimer por vias diferentes se dispõe a responder à problemática através das influências que recebeu em sua formação filosófica. Em consonância com Schopenhauer, o fundador da teoria crítica reafirma os movimentos absurdos da história e dos sistemas teleológicos dos idealistas metafísicos, de Hegel e Marx. O sofrimento escapa a qualquer possível sistematização racional, é ilógico, é irremediável e irreversível uma vez que a experiência do mal já fora consumada. Sem qualquer sentido que dê um caminho ou a justifique os movimentos históricos, a concepção de vir-a-ser na história é concebida como mitologia e vã filosofia. 

        De modo semelhante Walter Benjamin compreendia a história como uma grande retenção acumulativa de experiências trágicas e absurdas, o que acaba por levar a uma re-teologia escatológica contra a falácia do progresso humano. O integrante da Escola de Frankfurt em suas Teses sobre a filosofia da história, discorre sobre sua concepção de história que caminha rumo à uma teodiceia: não há resolução acabada nos processos de sofrimento humano, é incompleto e não existe ponto final nas consequências do mal já cometido, a história continua e o homem carrega o fardo de seus próprios erros. 

        Fruto do desencantamento do mundo anunciado com Weber, Horkheimer afirma que os trajetos que a sociedade dirigida e do cogito esclarecido encaminha-se para um período de incivilidade, fazendo de todos os meios e manifestações humanas instrumentos de exploração e opressão. Além de que o modus operandi positivista de conceber o real, para o filósofo, pouco a pouco vai destruindo todas as tradições utópicas, éticas e estritamente humanas, dito doutro modo, o homem deixa de sonhar por um mundo melhor. À medida que o pensamento cientificista cresce e se consolida na sociedade, progressivamente diminui e se enfraquece o alcance dos valores morais. Visto isso, a religião deve assumir uma postura distinta na sociedade capitalista, é preciso que os preceitos divinos deixem de ser objetos especulativos e se tornem imanentes, práxis vividas das leis divinas. 

        A religiosidade torna possível o engajamento e enfrentamento do mal com a esperança para um futuro mais sublime, ou seja, a religiosidade pode ser uma prática vinculada com as boas obras de justiça. Na sociedade administrada, para a fé e teologia, não é conveniente prender-se em especulações acerca da natureza divina e suas problemáticas metafísicas adjacentes. Além de que a teologia se dedicando exclusivamente aos critérios transcendentes da fé torna-se uma ciência com uma postura positivista ao ter como objeto de investigação a revelação e os argumentos lógicos-racionais para construir seu repertório dogmático e racionalista por negligenciar o aspecto pragmático da vivência religiosa. Desse modo, diferentemente do que Kant estipulava, Deus não é tão somente regulador da consciência humana, mas principalmente, para Horkheimer, estopim para o bem-agir em sociedade. 

        Dentro do cenário histórico político-social do século XX, a desesperança que afligia o mundo ocidental levou Horkheimer se afastar de correntes filosóficas que predispunham algum projeto messiânico, seja de cunho intelectual ou social, fazendo que o pensador teórico-crítico refletisse também sob a influência que recebeu de alguns conceitos religiosos e teológicos. Por conseguinte, seu posicionamento de engajamento da fé como fomentador de esperança na luta contra o mal o torna mais próximo de Dostoiévski que de Kant ou de outros filósofos que marcaram sua trajetória intelectual, inclusive do seu próprio círculo de pensador. Horkheimer, nesse sentido, é uma anomalia.  

        Ausente de lógica e incoerente em si, a história é o agente que faz o indivíduo dar um salto de fé no âmago do sagrado e, de modo contraditório, é o que impede a afirmação do Deus presente nos passos que a humanidade traça no tempo. Horkheimer, como já mencionado, se afasta de influências que prezam por um mundo melhor utópico, o filósofo movido pela máxima cristã de amor com o próximo e com a com-paixão schopenhauriana, considera que por meio destas últimas é possível manter viva a esperança e a chama transformadora do real sem cair no desespero diante da irracionalidade imanente à história. 

        Ainda que Horkheimer rejeite quaisquer tentativas de racionalização da fé especulativa ou de teodiceia, o mesmo não tende para o ateísmo pela insuficiência da razão em construir um pensamento válido que concilie a questão do mal, da bondade e existência de Deus. Sendo os homens incapazes de dizer algo que dê sentido para o mal no mundo, cabe, portanto, viver uma moral que seja harmonizável com os critérios divinos já cristalizados pela tradição teológico-filosófica. Logo, com a impossibilidade de discursar coerentemente acerca das questões divinas e profanas do mal e suas questões seguintes, levar uma existência pautada no amor, na justiça e caridade se torna uma orientação válida para resistir às investidas da maldade no percurso histórico. Horkheimer, consequentemente, em uma posição teísta esclarece um dos questionamentos emergentes de sua época, o mal moral. 

  • O humanismo ateu e o problema do mal:
        O mal é algo que transcende aos questionamentos teístas ou religiosos, a discussão sobre como lidar com sua existência percorre inclusive entre os pensamentos ateus mobilizando uma ética solidária. De acordo com Lévinas, o desamparo de um Ente Absolutíssimo pessoal impulsiona o humanismo ateu em direção a solidariedade. Como não há quem possa salvar os homens de si e dos males inerentes a sua natureza, compete aos próprios indivíduos tornarem do mundo um local mais humano e justo. A concepção ateísta do mal parte da própria imanente da tragicidade da história subjetiva e universal dos indivíduos. Essa proposta é a perspectiva prática de motivação para o problema do mal inescapável da existência.         No âmbito filosófico-literário Camus em seu romance trágico, A Peste, vai mais à frente de Horkheimer discorrendo, para além do mal moral, a dimensão física do sofrimento e da dor. Para o franco-argelino, as explicações cristãs fracassaram em decorrência do silêncio de Deus para com o sofrimento de inocentes. Não se pode crer em um Deus que se oculta em neblinas de vagas promessas enquanto sua criação chora as dores do mundo. A falta de justificativa para a experiência da dor é o sumo-obstáculo que impede a afirmação do divino na qualidade de Ente de Amor e Bondade, deste modo, o próprio Deus se torna inviável dada as vivências do mundo. Não há bem-aventurança alguma que amenize a inaceitabilidade do mal físico e moral.         Em seu ensaio filosófico O homem revoltado, Camus compreende a história mediante uma hermenêutica antropocêntrica atéia, para o autor o encadeamento de ações humanas são uma revolta que escapa a universalidade da metafísica. A nervura do real separada pela absoluta transcendência do divino possibilita que os homens se revoltem para com seu Criador. Apesar dos protestos dos homens, visto que no decorrer da história Deus se manteve passivo frente as tragédias que sucediam no mundo é vão implorar algum socorro ou pedir auxílio à racionalidade para encontrar uma ordem justificável para os atos humanos. Todavia, mesmo acreditando no total desamparo que os homens se encontram e na ausência de valores imutáveis, Camus reconhece a necessidade de Deus para que os indivíduos moderem seus atos e o mundo não se torne um local ainda mais árduo para vida.         Na não-existência de um Ente Absoluto não há critérios para se definir a santidade ou pecaminosidade. O mal está no mundo e sempre vence, não há condenação para o injusto e salvação para o justo devoto, isto é, a injustiça vence. Logo, como não há um centro moral metafísico para a determinação das ações humanas, o homem deve assumir o local de Deus e corrigir a história na luta contra o mal, mesmo com a certeza de que o sofrimento inevitavelmente há de vencer. Ora, o próprio esforço solidário para lutar contra as injustiças e as maldades que sucedem no itinerário humano é a demonstração da grandeza e sublimidade que o homem contém em si. Em oposição à problemática da natureza do mal, o engajamento para sua contenção não deve ser entendido nos moldes kantianos de moral, por imperativo categórico, mas, sim, dada a fragilidade dos homens, por intervenção a compaixão e ternura para com os indivíduos que sofrem.         Camus, mesmo se autoproclamando ateu, reconhece a necessidade da religião tanto para com os indivíduos como na luta contra o mal. A objeção camusiana para com a fé, em uma linha de pensamento já advertida por Marx nas Teses sobre Feuerbach, é para a tendência de algumas vertentes religiosas estimularem a passividade diante da dor, ou seja, a crença de uma esperança anestesiadora para com o sofrimento sem as devidas ações necessárias para o desenvolvimento de uma existência coletiva mais justa. Infiel ou fiel aos dogmas de fé, o homem bom e justo que enfrenta o mal é melhor do que Deus que se mantém indiferente aos clamores desiludidos dos homens. Por essa discrepância existente entre a solidariedade humana e a benevolência de Deus, é incompreensível qualquer tentativa de fundamentar ou de conciliar ambas as posições em um mesmo corpo teórico. É ineficaz e absurda, portanto, toda justificativa de conciliação, filosófica ou mitológica, com base nas premissas das religiões de natureza judaico-cristã, — o homem enquanto pecador e mal por natureza, e, Deus essencialmente perfeitíssimo e modelo universal de virtude.         Ainda que as pretensões religiosas sejam belas e sublimes, o mal derrota toda esperança soteriológica. Exemplificado na figura do médico contra a peste, ainda que o sofrimento se faça inescapável, é preciso lutar até as últimas consequências contra o mal. O ato de revolta dos homens diante do absurdo do real e de seus esforços inúteis por uma realidade melhor, longe de desaguar em um niilismo defronte as adversidades, é o estopim para o ser humano eleve sua potência capacidade de amar e estimar a vida, só existe esta única possibilidade uma vez que os indivíduos estão sozinhos e têm tão somente a si mesmos para lidar com o mal em sua amplitude. Os homens estão sozinhos na indiferença de Deus e do universo, desta maneira, é preciso que acolher verdadeiramente o absurdo e ser otimista quanto a própria humanidade.         Com o espírito próprio da filosofia continental da metade do século XX, Camus está inserido no desencantamento dos mitos de progresso, da religião e do projeto emancipador do Iluminismo. Em uma perspectiva diferente, o autor se assemelha aos ideais de Horkheimer ao propor um humanismo solidário no enfrentamento do mal, ainda que não pretenda que a religiosidade seja o condutor principal para solidariedade neste campo de batalha. Sem fé no destino humano, em um Deus que salva e com a esperança nas boas ações humanas, Camus, de determinado modo, chega no cerne da tradição cristã, embora seu pensamento, fundamentalmente, não seja religioso.         O filósofo em seus ideais sobre o problema do mal representa grande parte dos humanistas-ateus estabelecendo que, mesmo sem o cultivo dos critérios próprios da fé e com o alicerce no próprio absurdo da existência, é possível o enfrentamento da dor e do sofrimento mediante a solidariedade e compaixão. No O homem revoltado, o pensador reconhece os méritos do cristianismo ao tentar superar a maldade e a morte na figura do Deus fragilizado no alto da cruz, ainda que a religião tenha fracassado em reconstruir a história por meio do sacrifício compassivo de Jesus. Camus compreende que a fé no Deus crucificado é própria do homem revoltado que não se conforma com o absurdo da finitude e da injustiça. A despeito da excelência do ato penitencial do Cristo e do homem solidário que enfrenta o mal através do silêncio de Deus, Camus não propõe uma solução para o problema do mal, todavia, desperta os homens para com um otimismo consigo mesmo em uma possível construção de um mundo melhor.         No itinerário da questão acerca do mal da transição do período moderno ao contemporâneo, Ernest Bloch possui um lugar ímpar no debate. Com ideais marxistas e transcendentes cristãos, o alemão discorre, em uma tentativa de harmonizar o materialismo dialético com o projeto messiânico religioso. Diferentemente de Horkheimer que entendia a história de modo pessimista e de Camus no absurdo da existência, Bloch constrói uma estrutura teórica que expõe o homem, sua tragicidade, no âmbito de arquiteto e construtor de um mundo futuro que há de corrigir, ou pelo menos remediar, o mal ligado as ações humanas, ou seja, é impelido pela esperança plena no homem. Como tanto o mal metafísico quanto o empírico são inevitáveis, os seres humanos devem aprender com os males já cometidos, pensar no tempo que há de vir, para elaborar um presente que, solidariamente, é composto para as próximas gerações.
        A emenda do mundo para com os indivíduos futuros comporta uma ética utópica, uma aposta de intencionalidade, herdada de elementos da tradição cristã. O cristianismo é uma forma de religiosidade que se pauta na esperança por intermédio da contemplação da glória de Deus no paraíso e do Cristo que há de fazer justiça aos que choram pelo Reino do Céu. Todavia, Bloch rejeita a imagem de um Deus transcendente e pretende que o próprio ser humano, fiel ou ateu, seja, enquanto sujeito-histórico, o artífice do mundo que sofre para uma postura heroica na luta contra o mal moral. Uma vez que não há Deus que salve o mundo, compete o homem ser o redentor de si mesmo e se justificar diante do mal. Dado que o homem assume a postura de salvador e demiurgo do real, Bloch inverte faz de sua solução para o mal uma antropodiceia.         Para o filósofo, o cerne da questão do mal e as investidas contra sua proliferação independe da motivação pragmática que impele os indivíduos na busca de um mundo mais justo. No fim, o que acaba sendo importante é a própria luta para conter a maldade. Desta maneira, não hierarquização sobre qual modo contém uma eficácia maior para a solidariedade, ambas posturas, ateias ou religiosas, na práxis para a retificação da experiência da dor, desaguam no alcance da potência humana para a mobilização e vivência da esperança. Porventura, a principal diferença entre as posturas existenciais é a significação do mal que escapa ao crivo racional, — o religioso ultrapassa por meio do sentido que obtém da fé e suas justificativas na transcendência de Deus para a idealização própria para experienciar o mal.         Apesar do clamor de esperança para com o futuro que Bloch desenvolve em sua antropodiceia, o valor para manifestação do engajamento perante o mal, provindos da religiosidade é insuperável. Tão somente a intenção de construir um mundo mais ameno é frágil ante a função político-social que as expressões religiosas possuem. O ato de fé para o ser humano possui raízes profundas, a tendência a transcender não é abalada pelo avanço da técnica cientificista. Comprometida para com o âmbito ético da humanidade, visto os problemas emergentes que perpassaram o século XIX e XX, ascende uma perspectiva religiosa na Europa e nas Américas que atestam a contribuição da fé no combate para o mal em suas três dimensões, — independentemente dos impasses adquiridos após as mudanças de pensamento no Ocidente, a religião ainda consegue manter-se essencial para a humanidade pela significação e motivação para ultrapassagem do sofrimento moral, físico e metafísico.

  • Inconsistência e implausibilidade da teodicéia e conclusão: 
        Com o intuito de demonstrar a fragilidade das explicações da fé defronte o sofrimento, a teodiceia obtêm uma proporção magna com o pensamento analítico não apenas com o seu desenvolvimento reflexivo no campo ético-metafísico, mas também no teórico e lógico. A investigação sobre o mal, nessa perspectiva, deixa de centralizar as dimensões qualitativas da subjetividade do sofrimento no homem e suas soluções, para a compreensão integralmente racional da exatidão dos argumentos teológicos que se propõem a justificar as dores do mundo via a imagem de um Deus todo-poderoso e pleno de Amor.         O primeiro problema ao tentar discorrer sobre o mal na perspectiva fria da lógica matemática é a própria conceituação do mal em si mesmo, a experiência de qualquer dimensão da dor não é objetiva ou quantificável. Segundo N. Pike, a observação do fato empírico não carrega juízo de valor algum, a presença do mal é determinada pela sociedade na qual se apresenta; o sujeito julga o objeto pela identidade construída socio-culturalmente. O segundo inconveniente de tratar sobre o mal é pelo caráter totalizante e universal que as religiões partem: Deus, o Sumo-Bem e Criador do real, convive lado a lado com a presença do mal em sua Criação. Não obstante, nessa segunda colocação acerca do sofrimento, não há ainda contradição lógica entre ambas as premissas entre a existência ou não do divino, mas sim quanto à sua essência.         A vivência da fé escapa ao crivo total da ratio ocidental que tenta racionalizar toda realidade. Existe uma diferença contumaz entre pensar como as teodiceias explicam logicamente o mal e a compreensão sobre como Deus permite que o mal se encontre em sua Criação. Frequentemente as experiências da vida não são lógicas ou possuem plena explicação racional, Heidegger advertiu sobre a tentativa de sistematizar Deus e seus movimentos em um pensamento integral por desaguar em um racionalismo que não assume os limites da razão em face da contingência do viver. Absolutamente toda tentativa de sistematizar a experiência do mal fracassa frente a diversidade e universalidade do sofrimento. O mal, simplesmente, desafia o entendimento dos homens.         O ser humano é livre, a projeção de um mundo melhor não depende apenas da vontade de Deus, mas principalmente da própria ação sublime do homem na história. Como Kant observou, a idealização de uma possível realidade que seja melhor do que as dos fenômenos tais como se apresentam aos sentidos é um desvio da razão em decorrência da fragilidade dos processos indutivos dos conhecimentos a priori: não há como saber se o futuro há de ser menos ou mais perfeito que o real imanente que se impõe e escapa ao entendimento. A filosofia analítica, desse modo, contribui para a demonstração que as teodiceias falham ao tentar explicar as contrariedades presentes na afirmação da bondade de Deus e da maldade no mundo, além da ênfase facultada ao principal obstáculo racional do sofrimento que põe em xeque toda credibilidade dos argumentos teístas ou religiosos.         Em síntese, é possível afirmar que toda e qualquer tentativa de justificar o mal é uma tentativa falha em si mesma. Toda especulação, religiosa ou ateia, perde sua força frente a experiência vivida do mal e do sofrimento. A razão e a consciência religiosa possuem limites de apreensão da realidade do mundo, subsistem ainda questões aporéticas que perpassam o entendimento humano que percebe o real de modo fragmentado, hipotético e subjetivo.         Visto que a teodiceia na contemporaneidade perde suas forças pela virada antropológica do sofrimento inerente à existência do homem, a práxis do enfretamento do mal aumenta sua potência de ação. Ademais, qualquer posição e solução que o homem assume defronte ao mal é uma contestação humana tão inerente ao seu ser quanto a própria universalidade das experiências trágicas do existir. A questão central, no fim, é o combate contra o mal em sua totalidade, — físico, metafísico e moral —, em um ambiente globalizado em que as diferenças ideológicas, mesmo com suas divergências teóricas, possam lutar com o propósito solidário de amenizar as dores do mundo. Na transição da modernidade ao período contemporâneo, de Dostoiévski aos Analíticos, há um traço comum entre todas as perspectivas humanistas teístas e ateístas: A responsabilidade social do homem para com seus semelhantes, sua culpa e grandeza na história. “Hoje, antropodiceia ocupa o lugar da teodiceia, a resposta prática e solidária contra o mal substitui a especulação teórica.” (ESTRADA, 2004, cap. VI, p. 376.)




  • Bibliografia:
ESTRADA, Juan Antonio. A impossível teodicéia: a crise da fé em Deus e o problema do mal. São Paulo: Paulinas, 2004.

SIGNIFICADO DA AUTOTRANSCENDÊNCIA EM BATTISTA MONDIN

    A autotranscendência é um percurso no qual o homem alça um voo sistemático sobre si, superando a sua própria existência e sua complexidade para um plano mais elevado. Essa posição que engloba os seres humanos é também uma chave elementar, única e segura para a compreensão integral da natureza dos homens. Em síntese, é possível dizer que a experiência autotranscendente ocorre em três principais âmbitos, egocêntrica, filantrópica e teocêntrica; ambas compartilham o princípio de fazer que o homem ultrapasse a si e chegue a um patamar mais elevado de entendimento acerca da realidade, todavia, os processos que levam o sujeito a tal nível mudam com base na concepção que o indivíduo parte para a ascensão de um plano superior. 

    A primeira das concepções que Mondin irá elencar em sua obra é a egocêntrica, esta é a via de autotranscendência na qual é possível identificar facilmente no decorrer de toda a história do pensamento filosófico ocidental, desde os pensadores clássicos gregos aos existencialistas contemporâneos do século XX. Os filósofos, mesmo que ajam discrepâncias ímpares em seus pensamentos, grande parte deles compartilham a noção que o ser humano precisa se aperfeiçoar frente a situação atual em que se encontra visando adquirir um estado superior de ser, excelência e felicidade plena. O homem, nessa perspectiva, possui uma inclinação excepcional para o mal da ignorância, das paixões e do engano, portanto, com diferentes “exercícios” intelectivos é possível encontrar um estado de estar no mundo original, verdadeiro para realizar a própria existência de modo perfeitamente pleno. 

    Na concepção egocêntrica o homem busca um ser pessoal excelente. Reconhecendo que indivíduo consegue ultrapassar a si constantemente, este vai em busca de um patamar intelectivo que há de elevá-lo a conferir, corrigir, ordenar o “antigo eu” para à auto-realização total de sua vida. Essa noção de transcendência é marcada por uma atitude própria do sujeito que têm o intuito de se emancipar do jugo que mantém a humanidade presa em um estado de infelicidade, consequentemente cabe ascender apoiado à iniciativa, força e esforço particular — com efeito, ninguém pode aperfeiçoar-se por terceiros, nos termos de Immanuel Kant, compete ao indivíduo sair do estado de trevas para o esclarecimento. Não obstante, como Mondin aponta, frequentemente atesta a experiência que todos os esforços que o homem pode fazer é infrutífero, não é possível adquirir alcançar o modo de perfeição almejado mediante as próprias forças. 

    Visto que a concepção utilizada pelos filósofos muitas vezes é estéril para o homem atingir uma plenitude transcendente singular, o autor passa para a segunda concepção procurando uma solução para autotranscendência que seja de fato eficiente para o aperfeiçoamento humano. Esta segunda noção, a filantrópica, foi instituída pelos fundadores das ciências sociais no século XIX, em especial com Marx e Comte, esses e outros vários autores dessa área do saber perceberam que é possível que a autotranscendência também possui um valor que escapa ao indivíduo, isto é, ultrapassar a si com vista ao bem-estar geral da sociedade se desprendendo dos grilhões do individualismo rumo à uma humanidade livre da miséria, da desigualdade e dos demais problemas sociais para a obtenção da perfeita felicidade. Essa dimensão sociopolítica é principalmente verificada no sangue ardente e sonhador da juventude que se manifesta ativamente contra as estruturas tradicionais da sociedade. 

    A autotranscendência filantrópica traz uma perspectiva diferente da egocêntrica, o homem transcende porque é um ser social. Todavia, mesmo Marx e seus seguidores posteriores deixam um vácuo significativo frente ao aspecto pessoal da autotranscendência, mesmo uma sociedade utopicamente perfeita, esse fato não consegue compreender a totalidade do homem. O movimento de superação de si com a finalidade de um futuro abstrato e distante é sinônimo de abandonar as necessidades atuais dos indivíduos tanto social quanto pessoalmente, negligenciando o agora para um corpo social que todos, sejam os revolucionários ou as massas conduzidas, não poderão usufruir inteiramente. Além do mais, como estabelece Gollwitzer, todos os fatos fenomênicos são fugazes e imperfeitos, logo atribuir permanência em algo tão mutável e vivo como a sociedade é uma abstração elevada, quase infantil. Em vista desses fatos apontados por Mondin e Gollwitzer, a concepção filantrópica tal qual a egocêntrica é infértil para dar um sentido apto para o aspecto dinâmico autotranscendente da natureza humana. 

    A última concepção de autotranscendência que Mondin vai estabelecer em sua busca para dar uma solução segura para a superação do indivíduo é a teocêntrica, que possui dentre seus intérpretes e estudiosos Rahner, Marcel, Metz, etc. Esta tem sua base na fé, fazendo que o homem saía de si e da realidade mediante uma força exterior transcendente, Deus o sumo-bem, perfeitíssimo em todos seus atributos, concede a Graça de aproximar de modo “imperfeito” alguns indivíduos para uma comunhão mais íntima com seu Criador. 

    Por certo, como salienta o autor, a noção teocêntrica de superação de si é envolta de sérias dificuldades para seus defensores em decorrência do local que Deus tomou na modernidade, a saber, que o Ser Absoluto é incognoscível e inexprimível ou que é apenas uma criação da mente do homem que transfere seus anseios, necessidades e ideais para algo que foge a realidade concreta. Contudo, os partidários desse sentido autotranscendente estabelecem que esse movimento não é uma demonstração da existência de Deus, mas sim um fator importante para a compreensão que há uma realidade que está além da empiria. De todo modo, seja nessa concepção ou nas demais já citadas, ambas compartilham um ideal e objetivo metafísico, todavia, como já demonstrado, nem a razão deixada por si ou a sociedade perfeita conseguem edificar o homem em sua plenitude, logo não há alternativa, na perspectiva de Mondin, que tal aperfeiçoamento não seja fundamentalmente transcendental e divino. 

    O erro das outras perspectivas autotranscendentes, diz Merleau-Ponty, é a falta de capacidade, em especial dos filósofos e da concepção egocêntrica, de subjugar a verticalidade da transcendência e prezar tão somente em uma visão horizontal, sendo que o esforço de muitos pensadores em mediar sua filosofia entre ambas as linhas foi insuficiente para tal união. De modo paralelo, Vergote apresenta que a horizontalidade da transcendência abre a possibilidade para o homem ascender de modo vertical para que alcançando um plano divino o indivíduo delimite claramente que a matéria é o reino humano, a metafísica é o reino de Deus e a transcendência sendo a ligação entre o Sagrado e o Profano.

    Ademais, o homem quando se condiciona para sua edificação mediante a Graça, o indivíduo, que é fisicamente ligado aos fenômenos, caminha para o desprendimento da realidade material para alcançar a felicidade em Deus, que é o único capaz de preencher a totalidade do anseio pela perfeição e auto-realização. Dessa maneira, o homem se funde de modo horizontal e vertical com o Ideal, metaforicamente, ocorre um casamento sublime entre a condição empírica e metafísica. Por essa relação homem-Deus, os complexos aspectos humanos vão além dos objetos desaguando na fonte originária da substancialidade do real abrindo uma via de libertação para as carências do viver, isto é, o indivíduo preenche-se do Divino, ou em termos cristãos, sacia-se do Pão que uma vez alimentado não têm mais fome e da Água que extingue a sede. 

    Estabelecido que a concepção teocêntrica é a única capaz de edificar o homem para um estado de perfeição pleno, a autotranscendência toma um aspecto teológico relevante, sendo este um vestígio significativo para a existência de Deus e de uma natureza espiritual que escapa a materialidade. Para o autor, esses fatos são importantes para um entendimento antropológico que englobam o ser humano em uma perspectiva contrária ao pensamento que reduz a humanidade tão somente como ser material e biológico; o homem, longe de ser plenamente um fenômeno, é uma correlação entre corpóreo-não corpóreo, material-espiritual, distinguindo-se dos animais pela rica constituição do seu ser e de todas suas atividades que levam necessariamente a autotranscendência, dito de outro modo, a vida humana é autotranscendente por excelência. 

    O ser humano pode ultrapassar toda a realidade concreta, sair da relação espaço-tempo, ver o mundo afastado da matéria, justamente pelo fato que os indivíduos possuem um elemento espiritual que habita em sua alma, sendo esta, o ponto de partida para a ascendência rumo ao Divino e a manifestação mais evidente do caráter imaterial da vida humana — fenômeno tal atestado por inúmeros pensadores de regiões, motivações e gerações distintas, por exemplo, o grego Orígenes, Tomás de Aquino e o indiano Radhakrishnan. 

    Frente aos dados levantados por Mondin no capítulo I da segunda parte de sua obra, fica evidente que o homem é ser que perpassa sua existência no imediato material, que retém uma centelha de espírito em seu corpo, que ultrapassa continuamente a si e a realidade fenomênica, que autotranscende em todos seus atos e atinge sua profundidade mediante a presença metafísica distinta de constituição física habitante em seu ser. Em suma, “o homem é ser [corpóreo] que tem um elemento (a alma) que é absolutamente e por essência espiritual” (MONDIN, 1980), realizando seu fim último de desenvolvimento superando-se indo além das aparências usufruindo uma existência ideal em comunhão com a Graça concedida por Deus. 




RESUMO: INVESTIGAÇÕES SOBRE O ENTENDIMENTO HUMANO E SOBRE OS PRINCÍPIOS DA MORAL (SEÇÕES II E III)– DAVID HUME

    David Hume, em total contrapartida de Descartes e toda corrente racionalista, leva aos extremos o empirismo-cético inspirado nas ideias de Bacon, Berkeley e Locke. Em sua obra Investigações Sobre o Entendimento Humano e Sobre os Princípios da Moral, dentre outras várias outras questões que o filósofo britânico discorre, na segunda e terceira seção, irá expor seu parecer acerca da epistemologia e o modo que o conhecimento opera no homem.

    Hume considera que todo o conhecimento parte da sensibilidade. O “eu” é fruto da totalidade dos fatos e operações cognitivas que elaboram o sujeito e seu respectivo conteúdo mental; não há, portanto, qualquer tipo de saber inato. Os fatos e as operações mentais sobre o mundo são percepções que o indivíduo sente ou pensa mediante as impressões que ocasionam as ideias, todavia, “essas faculdades podem imitar ou copiar as percepções dos sentidos, mas jamais podem atingir toda a força e vivacidade da experiência original” (HUME, 2004).

    Sendo a mente um conjunto de percepções reproduzidas imperfeitamente por suas faculdades limitadas, o pensamento é reflexo copiador fiel dos fenômenos que reproduz uma imagem fraca da realidade empírica, Hume significando estas últimas, denomina-as como ideias provindas das impressões que, ao contrário, são vivazes e fortes. As impressões na terminologia huminiana correspondem a sensibilidade “crua”, isto é, as percepções que o homem experimenta no instante que as contempla, por exemplo: Deslumbrando o pôr-do-sol em uma praia de Maceió, as impressões que o sujeito vivencia neste instante são mais intensas e vigorosas em decorrência de seus sentidos; o indivíduo vê o sol se pondo, ouve o quebrar das ondas na areia, sente o vento fresco, o cheiro intenso do mar junto à costa e as gotículas de água que vem ao encontro de seu corpo, ele sente paz nesse momento em que exerce sua vontade de desfrutar suas férias no litoral. 

    Todas as impressões que o homem experimentou no exemplo acima, se transformam em ideias ou pensamentos quando resta apenas a lembrança da contemplação do entardecer em Alagoas, “[...] que são derivados da sensação externa ou interna, e à mente e à vontade compete misturar e compor esses materiais. Todas nossas ideias [...] são cópias de nossas impressões ou percepções mais vívidas.” (HUME, 2004). 

    Desse modo, compreendido como é estruturado o aparelho cognitivo do homem, Hume estabelece que absolutamente toda ideia que é elaborada por impressões que podem ser reduzidas a pensamentos simples que foram antes vivenciadas e sentidas em ato. Conforme mencionado no início da análise textual, toda ideia é uma cópia fraca mesmo quando de fato é experimentada, consequentemente, os pensamentos puramente abstratos são ainda mais deficientes e afastados da realidade, pois:


“O intelecto as apreende apenas precariamente, elas tendem a se confundir com outras ideias assemelhadas, e mesmo quando algum termo está desprovido de um significado preciso, somos levados a imaginar, quando o empregamos com frequência, que a ele corresponde uma ideia determinada.” (HUME, 2004, tópico IX, p. 39) 


    Em vista de tais fatos, fica evidente que há uma conexão entre os diversos pensamentos que originados, se combinam em respectivo método e continuidade. Hume exemplifica essa conexão por meio dos sonhos, em conformidade com o filósofo, a imaginação não gera nenhum conteúdo que não fosse previamente apreendido em vigília, mas dá frutos sim, ligando e fazendo conexões com diferentes impressões e ideias; ora, é impossível sonhar com uma cor que não exista no círculo cromático do mesmo modo que é utópico crer que há possibilidade de imaginar uma coloração que fuja dos matizes basilares. De acordo com o pensador empirista, eis que isso é “uma prova cabal de que as ideias simples, compreendidas nas ideias complexas, foram reunidas por algum princípio universal que exerceu igual influência em toda a humanidade” (HUME, 2004). 

    Essa conexão de ideias nasce de três princípios, semelhança, causa ou efeito, contiguidade no tempo ou espaço, exemplifica o autor, “[...] se pensarmos em um ferimento, dificilmente conseguiremos evitar uma reflexão sobre a dor que o acompanha.” (HUME, 2004). Neste exemplo em específico é possível aplicar os princípios supracitados com base nas próprias indicações posteriores de Hume. No que diz respeito à semelhança, indivíduo já foi ferido de algum modo (reflexão acerca do sofrimento); acerca da contiguidade no tempo ou espaço, é atribuído algum lugar e tempo para o ferimento (perna ou braço, se foi machucado agora ou há alguns dias etc.); por fim, sobre causa e efeito, alguma circunstância contundente proporcionou a lesão (um escorregão que esfolou o joelho.) Até mesmo as paixões e aptidões são vinculadas por meio da reflexão sobre um ferimento, por exemplo a repulsa e o ânimo para preservar a vida. Em suma, as informações idealizadas, sejam racionais ou passionais, são resultado da conexão pautada nestes princípios citados que fazem um processo da operação mental que transformam impressões em ideias simples para torná-las complexas. 

    Em síntese, fica evidente na análise da obra do pensador britânico que não há de forma alguma pensamento ou saber metafísico. Hume considera de forma contumaz o valor do conhecimento empírico, não há nada que esteja nada do indivíduo que antes não tenha passado pelo crivo da sensibilidade que, combinadas ou associadas de algum modo que torne as experiências parte da subjetividade de cada homem. Através de seu empirismo radical, o pensador espera com isso remover uma grande parcela da obscuridade que tanto se espalhou na história da filosofia.




Sobre o Racionalismo Platônico e Agostiniano

    Platão e Agostinho de Hipona são dois expoentes da corrente racionalista ⏤ com certas ressalvas, dado que o termo é fruto do pensamento moderno. Ambos os filósofos, mesmo com suas peculiaridades e diferenças, compartilham do ideal da imensa capacidade cognoscitiva da racionalidade em relação ao mundo fenomênico; estes compreendiam que existe um conhecimento uno, superior, imutável, que seria alcançado tão somente por meio de uma transformação na relação do sujeito com a realidade que o envolve, seja através da ascensão dialética visando a contemplação do sumo bem , ou por via da introspecção permitindo o encontro com Deus, este que é fonte suprema de sabedoria. Independentemente dos meios que fazem o indivíduo compreender a verdade, os dois pensadores seguem a mesma linha de raciocínio em seus pensamentos acerca da epistemologia, ou seja, por serem racionalistas criam que a razão é capaz de conhecer um saber universal e necessariamente lógico.  

    Para o filósofo ateniense, tido como racionalista-objetivo, não há saber sem o uso da dialética. A ascensão dialética é a base de seu dualismo e de seu entendimento sobre o que é a verdade e o conhecimento seguro. O pensador, influenciado pelos pensadores eleatas, identificara uma clara distinção entre o permanente e o transitório, afirmando a superioridade do primeiro em relação ao segundo. De acordo com seu dualismo, Platão concebida o mundo fenomênico como uma cópia imperfeita do mundo suprassensível, e uma vez que os objetos materiais estão sujeitos ao devir, por si só não possui nenhum valor que compense ser concebido. No entanto é válido ressaltar, que a realidade sensível, ao contrário de ser meramente desprezada na perspectiva platônica, possuía um grau de valor a partir do momento que esta leva o indivíduo a transformar a materialidade em conceitos e noções. 

    O filósofo grego nos seus diálogos, em especial na República, no Fédon e no O Sofista, vai discorrer com seus interlocutores como de fato pode se obter o conhecimento e reforçar o parecer exposto de maneiras diversas nas obras citadas. Para compreender o que Platão concebe como conhecimento, é imprescindível ter o entendimento de como ocorre a ascensão dialética e a divisão que o mesmo faz sobre a realidade empírica e inteligível. O fundador da primeira Academia grega acreditava ser essencial constatar a superioridade às Ideias sobre os objetos sensíveis justamente pelo fato que a sensibilidade está em constante mudança, enquanto as Ideias, habitantes do mundo suprassensível, permaneceriam imutáveis e, portanto, esta deveria ser o objeto de uma investigação segura, sem estar correndo o risco que deixar cair-se no engano ocasionado pelas sensações.  

    Para exemplificar sua argumentação, Platão, através da narrativa do mito da caverna demonstra os passos para a ruptura em relação as ilusões das coisas do mundo sensível, e com o objetivo de contemplar as Ideias, só seria possível através da reflexão, do raciocínio, do pensamento, para tanto, é metodicamente necessário entender como é a realidade para começar a trilhar o caminho da razão rumo a saída da caverna.  Na alegoria retratada na República, é apresentada a realidade de forma dividida em segmentos que constituem a posição do sujeito para com o mundo (o objeto) e a relação que ambos possuem um com o outro no que concerne a fonte e essência do conhecimento.  

    No diálogo, é retratado um homem acorrentado com seus camaradas vendo sombras de silhuetas no fundo de uma caverna, que, porventura, consegue se desacorrentar e caminha em direção a saída do local de seu cárcere, na trajetória que seguia, o indivíduo que escapou observou a infraestrutura da caverna que ocasionava as sombras através de marionetes que ele sempre havia visto na parede que até então era a sua realidade, já saindo da caverna ele contempla a verdadeira realidade, seus olhos ardem e sua vista demora a se acostumar com a luz do sol, todavia, quando ele se acostuma a iluminação, acaba por vivenciar a verdade que sempre esteve ali disposta, mas nunca percebidas em decorrência de seu jugo.  

    Por trás da linguagem metafórica do mito, Platão, estabelece como é o processo dialético, tendo como o objetivo a busca da verdade universal. Em seu primeiro segmento as sombras representam respectivamente a aparência sensível dos objetos; posteriormente, as marionetes assumem o papel da representação própria dos objetos empíricos; em sequência, o muro onde estão sustentadas as marionetes simbolizam o limiar que separa os dois tipos de conhecimento — sensível e suprassensível; por fim, o exterior da caverna são as Ideias, realidade indubitável, essência de todos os fenômenos, uno, universal, e o sol representando a Ideia mais elevada e nobre, o sumo-bem que engendra em si a perfeição, a beleza e a justiça. Além do mais, em outro diálogo dentre vários, no Fédon especificamente, Platão trabalha a teoria da reminiscência, que, de modo a complementar a alegoria já analisada, é expresso que as Ideias já estão inatas no sujeito em decorrência da transmigração das almas no transpassar de toda eternidade, de tal maneira que o espírito já contemplou tudo o que existe, dentre as apreciações de existências, a contemplação do mundo suprassensível, o uno. Em outra obra, o filósofo discorre acerca da constituição do mundo inteligível: 


"De fato, o que ocupa esse lugar é a substância (a realidade, o ser, ou seja, as ideias) que existe realmente, privada de cor, sem figura e intangível que só pode ser contemplada pelo timoneiro da alma, pelo intelecto, constituindo o objeto próprio da verdadeira ciência. [...] E após ter contemplado, da mesma forma, as outras entidades reais e ter-se saciado com isso, mergulha novamente no interior do céu e volta para casa [...]." (PLATÃO, Fedro) 


    Em suma, Platão demonstra a passagem do conhecimento meramente opinativo (dóxa) para o conhecimento indubitável (epistéme) só seria alcançado mediante a dialética que engloba tanto o saber matemático quanto o filosófico. A razão assume em sua epistemologia um caráter essencial para o conhecimento que sempre esteve presente no mundo para o sujeito, “obscurecida” frente as sombras da sensibilidade, por conseguinte, o filósofo clássico é considerado como um racionalista-objetivista resultante ao esforço dialético que o sujeito faz através da racionalidade para a alcançar (ou em termos platônicos, relembrar) a verdade, as Ideias. Nas palavras de Johannes Hessen:  


"O sujeito, de certo modo, incorpora as determinações do objeto. [...] Os objetos são algo dado, apresentando uma estrutura totalmente definida que será, por assim dizer, reconstruída pela consciência cognoscente." (HESSEN, 1999, p. 70) 


    A possibilidade de conhecer mediante a razão instaurada por Platão foi o estopim para a consolidação da vertente epistemológica racionalista que iria ecoar séculos posteriores em uma Europa cada vez mais cristã. Santo Agostinho, foi o expoente do racionalismo no período medievo, renovando sob a perspectiva teológica as doutrinas da Academia neoplatônica, todavia, apesar de ser altamente influenciado pelos ideais originados na Antiguidade, o filósofo cristão diferencia-se em relação a posição do sujeito e objeto sobre o debate no tocante a essência do conhecimento. 

    Sinteticamente, Agostinho em sua teoria da iluminação deixa evidente que o sujeito para conhecer é preciso a priori possuir uma relação com Deus, pois, de acordo com o bispo, o Criador deixou nos homens sua assinatura, que seriam verdades universais, imutáveis tal como Platão, porém, contrário a perspectiva platônica quanto a recordação das ideias e do mundo suprassensível, o pensador medievo irá alterar a “localização” do cognoscível. Deus, a verdade, a essência do conhecimento, não está fora, mas dentro do sujeito, como o filósofo expõe no relato de sua conversão ao cristianismo. Essa relação com o divino só seria possível, se o indivíduo vivendo o cristianismo voltasse para si e “abrisse os ouvidos do coração” para a Iluminação do intelecto, o que, na perspectiva agostiniana, seria uma graça do Senhor para que o homem conhecesse através da racionalidade a verdade inteligível habitante em seu interior.  

    Ao manter o papel central da razão e ao colocar que o conhecimento verdadeiro está dentro do sujeito supremo, Agostinho atribui uma perspectiva distinta de Platão em seu racionalismo; estando a verdade no interior da consciência do indivíduo, este assume o papel fundamental para a compreensão das ideias amparadas na beata sapiência de Deus, sendo, portanto, um racionalismo subjetivista, uma vez que o sujeito dispõe de mais relevância para o conhecimento que o objeto em si. 

    Sumariamente, Platão e Santo Agostinho são dois pilares da teoria do conhecimento no geral, mais especificamente, dentre as diferenças já postas em cada autor, o racionalismo. Para exemplificar a diferença entre o racionalismo platônico e agostiniano sob uma ótica antropológica, é apropriado dizer que além da contribuição teórica dos pensadores, ambos, ao propor seus ideais acerca do conhecimento, estabeleciam ao receptor de seus pensamentos um modo de ser no mundo, tanto é que seus respectivos entendimentos sobre o homem possuem uma relação ímpar com o conhecimento; Platão, com a dialética ascendente rumo ao mundo suprassensível assume uma concepção epistemológica racionalista objetivista interligada com o espírito de época na qual o pensador estava inserido, dentre as quais: como uma forma de viver virtuosamente com a pólis marcada pela deturpação de valores (tal como podemos deduzir do julgamento que levou Sócrates a morte), não ceder aos discursos dos sofistas ou até mesmo se tornar um mero retórico que visa tão somente a própria glória, etc. Santo Agostinho de modo semelhante ao pensador grego, concebe seu racionalismo subjetivo no período de consolidação do catolicismo na Europa, de modo que seus pensamentos sobre a epistemologia, também é um modo de ser no mundo entendido com o viés teológico, neste caso, ao ter o intelecto iluminado por Deus, o homem desfrutará de uma plena relação existencial com o divino encontrado nas profundezas da interioridade, vivenciando desse modo a vida cristã. 

    Em poucas palavras, pode-se dizer que uma das principais concepções divergentes sobre a teoria do conhecimento entre Platão e Agostinho, é que o primeiro enquanto busca a verdade fora, o segundo procura-a dentro de si. 





RESUMO: Tratado Da Correção Do Intelecto

    Espinosa no início do Tratado da Correção do Intelecto estabelece, por experiência própria, que o saber que ocorre no dia a dia é fútil e falso, não contendo nenhum bem ou mal exceto quando o indivíduo se deixa afetar pelos saberes usuais da cotidianidade. Insatisfeito tanto ao conhecimento vulgar e incerto quanto à possibilidade um conhecimento de fato seguro, o pensador decide procurar algum saber que proporcione um ânimo tal que mantivesse o conatus elevado e contínuo. 

    A primeira constatação que o filósofo faz em sua busca pelo saber seguro é a tríplice circunstância que permeia a vida da maioria dos homens, a saber, as riquezas, as honras e a concupiscência. Estas últimas distraem a mente do indivíduo de tal maneira que ofusca a percepção e a busca do sumo bem, carecendo da felicidade contínua que, buscada nesses bens é fadada ao fracasso; longe de serem males que são irremediáveis há, portanto, uma redenção: É estritamente necessária uma mudança de vida contumaz afim de alcançar um bem supremo, certo e estável. 

    Após delimitar os males que permeiam a existência da maior parte dos homens, Espinosa vai discorrer sobre seu entendimento acerca do bem verdadeiro. Para o filósofo, há algo que é perfeito, em uma ordem imutável, que escapa ao conhecimento da natureza humana em decorrência de sua falta de firmeza, todavia, incitado pela perfeição que consta na infinita Natureza, o indivíduo caminho rumo ao sumo bem, que tem seu fim em compartilhar com os demais homens o deleite dessa natureza. O conhecimento seguro, portanto, consiste “da união que a mente tem com toda a Natureza” (ESPINOSA, 1983). O prazer contínuo que mantém o conatus em paixões alegres, “fazer com que muitos outros entendam o mesmo que eu, a fim de que o intelecto deles e seu apetite convenham totalmente com o meu intelecto e o meu apetite.” (ESPINOSA, 1983).  

    Não obstante, em primeiro lugar é preciso examinar a si no modo de curar o intelecto e regenerá-lo de modo que não haja falhas na busca pela suma perfeição humana que há de ser adquirida com toda amplitude do ser — motivo tal que, para Espinosa, a ciência que não leva ao aperfeiçoamento do sujeito é vã e fútil. Ademais, é indispensável conhecer a finco Natureza para um reflexo semelhante no indivíduo, assim como se dedicar ao estudo do saber moral, ao processo educativo dos meninos, à medicina e, pôr fim à ciência do movimento. Apesar dos processos mencionados, Espinosa reconhece que a vida não se reduz tão somente a correção do intelecto, de sorte que é inevitável conduzir a existência com boas regras de conduta com o intuito de não fugir do propósito estabelecido na obra em estudo. O filósofo holandês vai elencar ao menos três para o auxílio do leitor, a saber: 


"I. Falar ao alcance do vulgo e fazer tudo o que não traz nenhum impedimento para atingirmos o nosso escopo. Com efeito, disso podemos tirar não pequeno proveito, contanto que nos adaptemos, na medida do possível, à sua capacidade; acresce que desse modo oferecerão16 ouvidos prontos para a verdade.  
II. Dos prazeres somente gozar quanto basta para a consecução da saúde.  

III. Por último, procurar o dinheiro ou outra coisa qualquer só enquanto chega para o sustento da vida e da saúde, imitando os costumes da sociedade que não se opõem a nosso fim." (ESPINOSA, 1983) 


    Posteriormente, Espinosa irá elencar os meios de percepção dos indivíduos a fim de escolher o mais eficiente para conhecer a si próprio, a natureza e para aperfeiçoá-lo visando o melhor para a emenda do intelecto. A percepção superior é a que compreende os fenômenos por sua essência ou pela causa próxima de seu efeito, em outras palavras, a ideia verdadeira é por si inteligível, podendo ser objeto da essência formal angariada de uma essência objetiva distinta, de modo que, podendo ser objeto indefinitivamente, Espinosa, contrariamente à Descartes, estabelece um limite para a razão. Esta última percepção só é possível por meio de uma escalada epistemológica, por meio da correção proposta pelo sistema espinosista, entre outras percepções, elas são respectivamente:  

    A primeira delas e mais inferior, é da opinião, da tradição e dos costumes adquiridos ao longo da existência sem nenhuma base sólida que lhe dê autoridade de um saber seguro; a segunda é denominada como experiência vaga, consistindo em saberes dedutivos por mediante a observação do mundo, por exemplo, a ciência da própria finitude é adquirida pela contestação que outros homens faleceram, e assim se estendendo a quase todos os conhecimentos observáveis adquiridos ao decorrer da vida; a terceira é obtida pela capacidade abstrativa do homem, responsável por gerar conclusões obscuras sem uma noção clara do fato abstraído pela razão que organiza as percepções que envolvem a realidade, tal como o discernimento que o indivíduo possui uma união entre corpo e alma; o último gênero epistemológico, como dito anteriormente, é superior aos demais, razão pela qual é fundamental sua correção afim de que faça um juízo claro acerca de seu conhecimento, isto é, a essência de todas as coisas imanentes a realidade que é a própria Natureza delas. 

    Em suma, Espinosa diferentemente de outros racionalistas contemporâneos de sua época, preza pelo valor imanente e ético do conhecimento. A verdade está no mundo, não fora dele, cabe o intelecto, portanto, ser corrigido através de uma postura ética-moral para alcançar a quid que permeia a realidade visando o esclarecimento não apenas de si, mas também de outros indivíduos para que possam gozar juntos do sumo bem. O fim último da razão e da correção do intelecto é o saber compartilhado “de uma coisa eterna e infinita alimenta a alma de pura alegria, sem qualquer tristeza, o que se deve desejar bastante e procurar com todas as forças.” (ESPINOSA, 1983)




Os Limites da Filosofia Primeira como Ciência e os Enganos da Metafísica

     Em grande parte, no decorrer do itinerário do pensamento filosófico ocidental a metafísica fora considerada ciência — em termos aristotélicos, a supra ciência, superior e antecedente a todos os demais saberes. Não obstante, no seio do período Iluminista, Immanuel Kant põe em xeque a autoridade e tradição da filosofia primeira, sendo um passo significativo rumo ao “fim” definitivo da metafísica estabelecido pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche. A fim de esclarecer os impasses existentes acerca do debate que perpassa o século XVIII até a contemporaneidade sobre a filosofia primeira suas ilusões e limites, nos ateremos sobre o assunto especificamente em três pensadores: Francis Bacon, Immanuel Kant e Karl Popper. 

    O Novum Organum (2014) de Francis Bacon é uma crítica a obra Órganon de Aristóteles, em que o autor do início da era moderna buscou reivindicar a concepção de Aristóteles no campo da ciência. Na concepção de Bacon os limites da metafisica se dá na incapacidade das investigações incertas e os fracos argumentos que se assentam. Sua crítica ao método aristotélico decorre do método de conhecer a natureza que Aristóteles estabelece em sua obra. Por certo, é visível que um dos obstáculos para a metafisica, segundo Bacon, é a incapacidade de garantir o processo da ciência, de demonstrar benefícios válidos e significativos ao conhecimento científico. O método indutivo aristotélico na perspectiva de Bacon é considerado um procedimento por muitas vezes marcado por falhas que impedia compreender as coisas do mundo fenomênico em razão de seus fracos argumentos que se constituíam por meio de uma visão ontológica dualista de mundo sensível e suprassensível, que através da concepção da racionalidade pura dificultava o enfrentamento do problema sobre o que é de fato cognoscível, ou seja, a capacidade de conhecer a realidade, pois, de acordo com o filósofo: “O homem, ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais” (BACON, 2014). 


"Que haja, finalmente, dois métodos, um destinado ao cultivo das ciências e outro destinado à descoberta científica. Aos que preferem o primeiro caminho, seja por impaciência, por injunções da vida civil, seja pela insegurança de suas mentes em compreender e abarcar a outra via (este será, de longe, o caso da maior parte dos homens), a eles auguramos sejam bem-sucedidos no que escolheram e consigam alcançar aquilo que buscam. Mas aqueles dentre os mortais, mais animados e interessados, não no uso presente das descobertas já feitas, mas em ir mais além; que estejam preocupados, não com a vitória sobre os adversários por meio de argumentos, mas na vitória sobre a natureza, pela ação; não em emitir opiniões elegantes e prováveis, mas em conhecer a verdade de forma clara e manifesta; esses, como verdadeiros filhos da ciência, que se juntem a nós, para, deixando para trás os vestíbulos das ciências, por tantos palmilhados sem resultado, penetrarmos em seus recônditos domínios." (BACON, Prefácio, 2014)


    Bacon não renúncia o uso do intelecto, ao contrário, é a racionalidade em conjunto com a experimentação que auxilia o indivíduo para o conhecimento, justamente pelo fato de “nem a mão nua nem o intelecto, deixados a si mesmos, logram muito” (BACON, 2014). Surge aí, uma nova maneira no processo de conhecimento, de acordo com o pensador inglês, o homem tem a capacidade de conhecer os fenômenos, mas que só seria possível através de uma investigação e observação da realidade concreta, para que procedendo deste modo, possa favorecer as descobertas no âmbito das ciências naturais. 

    Apesar da influência de Aristóteles, Bacon irá utilizar um método indutivo como o método de conhecimento da natureza, mas que vem através das manifestações na experimentação, partindo de concepções particulares para tentar alcançar uma regra geral. A relação do entendimento baconiano para a metafisica clássica é que esta é a forma mais fantasiosa de compreender os desempenhos das ciências. Já que a metafisica aristotélica se ocupava com as causas da realidade em um todo, Bacon, em contrapartida, faz uma reflexão sobre a própria filosofia primeira, na qual afirma que ela não tem uma utilidade prática, todavia, para fundamentar sua reflexão traz argumentos decisivos para resultados fundamentados na experiência ou objetividade. Portanto, a experiência seria a validação dos resultados de uma investigação científica, ou seja, como critério da verdade. Com efeito, Bacon não se detém aos elementos ou bases metafisicas, pelo fato de considerar ser algo não prático para a utilização da racionalidade, por conseguinte, resolve buscar fundamentos lógicos e mais objetivos para a ciência, pois a própria ciência pode ter alguns limites, dos quais é necessário escapar, pois se contaminados pela ânsia da verdade indubitável, o processo do conhecimento terá um resultado diferente da conclusão verdadeiramente objetiva. Sua crítica à metafisica em análise, possibilita a valorização dos conceitos elaborados e dos limites do conhecimento racional, no ponto de partida da reflexão filosófica, científica e experimental. 

    Kant, inquieto quanto ao otimismo da razão e seu dogmatismo instauradas pelos metafísicos, vai reforçar seu parecer exposto em sua obra predecessora no seu livro Prolegômenos a Toda Metafísica Futura (1988). A intenção da obra, de acordo com o expoente da Ilustração, é uma recomendação e alerta aos futuros docentes para que não incorram o risco de utilizar sua racionalidade em especulações ideais e fúteis reflexões, para tanto, o pensador vai justificar os fundamentos que tiram a metafísica de seu brilhantismo intelectual. De antemão, Kant já nos primeiros parágrafos de seu escrito evidencia a inconsistência e os devaneios das especulações que se fundamentam além da física, dando ênfase ao fato que, ironicamente, a ciência que diz possuir a verdade nunca obteve uma proposição consensual entre os pensadores, e ao contrário de progredir como outras áreas do conhecimento, corre atrás do vento com sua sabedoria e vanglória. 

    Posteriormente, Kant faz menção ao filósofo britânico David Hume para explicitar um dos enganos que as investigações metafísicas induzem. O pensador escocês utilizando-se de um conceito metafísico de causa e efeito, diferentemente dos intelectuais metafísicos, demonstrou de modo axiomático que é inconcebível que a razão possua algum tipo de conhecimento anterior a experiência. Hume considerava que todo o conhecimento é uma relação assimilativa resultado da percepção sensível, por conseguinte, a razão, incapaz de compreender sobre a conexão que há neste vínculo, se perde nas ilusões imaginativas e determina como conhecimento absoluto o que é apenas uma necessidade subjetiva, consequentemente:


"Daí tirava a conclusão: a razão não tinha a capacidade de pensar tais conexões, mesmo só em geral, porque então os seus conceitos seriam simples ficções e todos os seus conhecimentos pretensamente a priori não eram senão experiências comuns falsamente estampilhadas, o que equivale a dizer que não há, nem pode haver metafísica." (KANT, 1988, p.14-15)


    Após ter contato com o pensamento humiano, Kant desperta das divagações dogmáticas da metafísica e toma um caminho distinto em suas investigações filosóficas. Deixando de lado os conceitos puramente especulativos, o filósofo prussiano começa a estabelecer sua crítica quanto aos devaneios de muitos pensadores que, limitados somente a loquacidade, demonstram-se incapazes de manifestar suas ideias empiricamente sem recorrer a seus “oráculos” e ao senso comum, Kant seguindo uma direção oposta, estabelece sua crítica como meio para obtenção de um conhecimento científico sem escorar-se enganosamente em vãs expectativas, “pois, a Crítica deve, enquanto ciência, formar um todo sistemático e acabado nas suas menores partes, antes de se pensar em fazer aparecer uma metafísica ou mesmo de acerca dela se ter uma longínqua esperança.” (KANT, 1988) 

    Como fica evidente, Kant rejeita as reflexões puramente contemplativas, prezando para um conhecimento válido a investigação empírica dos fenômenos, ou seja, a ciência para o filósofo iluminista se dá através do conteúdo adquirido pela experiência sensível e sua devida justificação, portanto, pela epistemologia. De acordo com o pensador, a experiência é fonte do conhecimento que traz consigo um consenso entre os indivíduos por prevalecer o juízo sintético, enquanto a base do saber metafísico, como seus conceitos são a priori, são inconcebíveis empiricamente, o que não serve de base para a experiência externa, tal como a interna. Além do mais, Kant manifesta que se a filosofia primeira fosse de fato científica: 


"[...] poder-se-ia dizer: aqui está a metafísica, deveis apenas aprendê-la e ela convencer-vos-á irresistível e invariavelmente da sua verdade: esta questão seria então ociosa e apenas restaria a seguinte, a que diria respeito mais a uma prova da nossa perspicácia do que à demonstração da existência da própria coisa, a saber, como ela é possível e como a razão aí procura chegar. Mas, neste caso, a razão humana não foi bem-sucedida." (KANT, 1988, p.31) 


    Desde o iluminismo, os anos consecutivos foram inaptos para dar uma conclusão consistente sobre o papel da ciência, a metafísica seus enganos e limites. Karl Popper, tido como o principal representante da filosofia da ciência no século XX, em seu livro A Lógica da Pesquisa Científica (2008) irá estabelecer os métodos pelas quais um conhecimento pode ser considerado precisamente válido. Popper não foca em específico nas questões da metafísica e sua falseabilidade tal como Kant se propôs a fazer em seus Prolegômenos, no entanto, é perceptível nas entrelinhas de sua obra os motivos determinantes que a área do saber que ultrapassa o domínio físico não é digna de se afirmar como ciência. 

    De acordo com seu pensamento, o indivíduo que se dispõe a fazer ciência, seja teórica ou empírica, dever-se-ia elaborar uma proposição ou uma síntese de proposições e analisar minuciosamente enunciado por enunciado, elaborar hipóteses ou teoremas e colocá-los sobre o crivo técnico da experimentação com os meios que a tecnologia permite. Portanto, a lógica do conhecimento é, para o filósofo epígono dos ideais do Círculo de Viena, “proporcionar uma análise lógica desse procedimento, ou seja, analisar o método das ciências empíricas” (POPPER, 2008). Logo, uma vez que a ciência exige que seus enunciados sejam válidos experimentalmente, a metafísica que se pauta visando a obtenção de um conhecimento certo verdadeiramente indubitável, — fazendo um paralelo com Kant, não progride e seu saber gira envolta de seu círculo vicioso da injustificabilidade — não transpõe o critério de demarcação elaborado pelo pensador austríaco, que se propõe um procedimento para que a ciência chegue a um consenso ou convenção. 


"Contudo, só reconhecerei um sistema como empírico ou científico se ele for passível de comprovação pela experiência. Essas considerações sugerem que deve ser tomado como critério de demarcação, não a verificabilidade, mas a falsidade de um sistema. Em outras palavras, não exigirei que um sistema científico seja suscetível de ser dado como válido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei, porém, que sua forma lógica seja tal que se torne possível validá-lo através de recurso a provas empíricas, em sentido negativo: deve ser possível refutar, pela experiência, um sistema científico empírico." (POPPER, 2008, p. 42) 


    Contudo, mesmo Popper tecendo críticas ao modelo positivista de ciência, o filósofo concorda com neo-positivistas quando estes afirmam que o saber científico não é puramente conceitual, mas sim, um conjunto de enunciados que possam ser válidos através da experiência e de seu critério de demarcação. Desse modo, os conceitos dogmáticos metafísicos tornam-se expressões fictícias e restritas à pura tagarelice “sem sentido” ou “absurdas” por não corresponderem aos preceitos da lógica do conhecimento, visto que o objetivo desta é o saber processual específico da empiria, dito de outra maneira, o caminho que o conhecimento percorre através da experiência atendendo os critérios lógicos da linha de demarcação científica. 

    Como mencionado anteriormente, o debate levantado desde Kant não fora ainda solucionado. A metafísica mesmo diante de inúmeras críticas desde então, utilizando termos heiddegerianos, é a montanha que ainda não foi atravessada; no entanto, esta área do conhecimento foi separada do conhecimento científico graças sua insustentabilidade demonstrada no decorrer do trabalho em questão. A metafísica, não é mais tida como a filosofia primeira, mas é apenas a uma tentativa impositiva de um saber dogmático ilusório que supõe uma verdade que jamais foi e será alcançada. Em suma, mesmo que as especulações além da física não foram ainda superadas, esta constitui hoje um exercício proativo da linguagem e da racionalidade que é limitado apenas por afirmações eloquentes sem fundamento válido e vãs sabedorias. 





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BACON, Francis. Novum Organum. Editora Grupo Acropólis, 2014. 

KANT, Immanuel. Prolegômenos a Toda Metafísica Futura. Lisboa: Editora Edições 70, 1988.

POPPER, Karl R. A Lógica da Pesquisa Científica. 16. Ed. São Paulo: Editora Pensamento Cultrix, 2008

RESUMO DE PSICOLOGIA SOCIAL: CONFORMIDADE E OBEDIÊNCIA

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