RESUMO: CARTA ENCÍCLICA, FIDES ET RATIO

    Objeto tradicionalmente debatido, sobretudo em seu apogeu, com a institucionalização das religiões, a saber, o lugar da fé, da filosofia e da teologia persegue o pensamento humano em sua epocalidade. As reflexões que versam acerca dos domínios de cada área do saber perpassam em uma linha tênue no qual, além da escassez consensual entre os pensadores, desenvolvem-se seja dispondo a racionalidade filosófica refém da autoridade teológica exteriorizada na Sagrada Escritura e nos dogmas religiosos ou antepondo a filosofia à vivência da fé. Seja como for, qualquer das posturas que possa estabelecer a área de exercício da razão e da fé abrange consequências epistemológicas, enquanto tal demarcação permanece no âmbito do pensamento reflexivo, e políticas, quando se convertem de convicções teóricas em atos na vida pública. 

    Desde as primeiras manifestações de caráter racional na região jônica da Grécia do século VI a.C., a fé e a razão encontram-se de maneira diretamente interligadas oscilando entre suas vertentes, opondo-se ou ainda misturando-as em um só saber. Dos fragmentos de Tales que versam acerca da divindade do mundo perpassando pelas influências pitagóricas na organização política e intelectual da Magna Grécia; da mística platônica à sistemática cristã do pensamento heleno em seus dogmas; de Descartes e seu fundamento epistêmico indubitável em Deus à ontoteologia de Heidegger. O debate é interminável. À vista da permanência do dilema no percurso do pensamento ocidental, traçar o itinerário do local da fé e da razão é percorrer a história da filosofia em sua completude. 

    João Paulo II, sucedendo o posto máximo da hierarquia da Igreja Católica Apostólica-Romana durante a transição do milênio e inserindo-se neste tempestuoso debate, procura responder à questão acerca do local da fé e razão no âmbito epistemológico e teológico em sua encíclica Fides et Ratio.

    Seja como for, o século XVII abriu suas fronteiras para a posteridade preparando os moldes estruturais que sustentam a sociedade atual no qual o Papa dialoga em sua exortação apostólica. Como efeito das transformações sócio-históricas que ocorreram no Ocidente, desde o fim do período medieval, atualmente o mundo encontra-se desencantado. Consequentemente, tanto a filosofia quanto a fé e suas categorias teológicas, na era moderna-contemporânea, resplandecem fragilizadas. Eis, portanto, o resultado da tragicidade do real que o homem se depara desde o fim do século XIX: da condição desumana dos assalariados nas indústrias europeias, à morte de Deus anunciada por Nietzsche, o fracasso da utópica razão esclarecida dos Iluministas, a vulgarização do sofrimento nos campos de batalha e de concentração das duas grandes guerras, a ascensão sistemas políticos totalitários, dentre outros demais males que fizeram o homem, em um ato de contestação, protestar diante do silêncio de Deus e do eclipse da razão. Em outras palavras, todo projeto teológico, filosófico e social idealizado tanto por filósofos quanto por teólogos passados falharam. Visto isso, a demarcação e definição do domínio do saber teológico e filosófico converte-se em uma questão de proporção magna no momento vigente resultante da crise da metafísica estabelecida por Kant e Nietzsche em especial nas esferas epistemológicas da discussão. 

    Levando em consideração tanto a importância da discussão na contemporaneidade quanto a sua permanência no pensamento ocidental, João Paulo II começa desenvolvendo sua encíclica através da própria exortação do conhecimento. Diz o Papa, que a humanidade em seu todo busca a Verdade, um saber essencial que possibilite uma compreensão clara e distinta de sua existência, sobretudo de suas questões inteligíveis e fundamentais para a vida humana, que constituem conjuntamente com suas respostas, diga-se de passagem, uma das maiores riquezas que a humanidade retém. A sublimidade da filosofia, da razão, resplandece em sua aptidão para responder a estas indagações, — não é sem motivo que Pitágoras e os helenos cunharam o termo amor à sabedoria para designar tal ciência. Contudo, ainda que os filósofos sejam capazes de alçarem suas asas do entendimento rumo à Verdade, a realidade desta última manifesta-se de múltiplas maneiras, em especial, por meio da sabedoria de Jesus Cristo que coordena o seu Corpo Místico, ligação entre o sagrado e o profano, a Igreja Católica. 

    Esta afirma e reafirma a importância da razão e da filosofia para os indivíduos, colaborando e dando novas direções para o desenvolvimento das ciências desde seus primeiros anos. Com base nos últimos Concílios, na tradição e dogmática católica, João Paulo II reitera a importância de uma religiosidade esclarecida para uma compreensão adequada das Sagradas Escrituras e do Evangelho. A fé, seja como for, não necessita, essencialmente, da razão filosófica, — como atestam diversos personagens bíblicos que não possuíam uma vasta formação intelectual. O Concílio Vaticano II, nesse sentido, é categórico acerca desta definição: a fé nasce e subsiste mediante a obediência do indivíduo a Deus e em sua Revelação, pleníssima na pessoa do Verbum Incarnatum. 

    O entendimento sobressaia-se alicerçado na fé, ou seja, na obediência a Deus, todavia, não com uma razão que subjuga-se cegamente aos decretos divinos e eclesiais, mas que medita e reflete acerca dos princípios revelados. Fato este exaltado no decorrer das narrativas sapienciais presentes na Bíblia e realizado por São Paulo em Atenas e pelos Padres da Igreja na dialética de helenização-cristianização do Ocidente. A fé e a razão, nos escritos veterotestamentários, entrelaçam-se: a razão alcança sua plenitude através do salto de fé na contemplação do Totalmente Outro. Com temor e tremor perante o mistério da transcendentalidade divina, o princípio da sabedoria desenvolve-se no homem. Não há, portanto, divergência ou oposição entre ambas, ainda que com um lento e vagaroso processo histórico o racionalismo escolástico exacerbado gerasse o estopim que resultaria na separação e repulsa da fé e razão a partir do século XVI. 

    Com efeito, a concepção do Papa de teologia e filosofia abre-se uma oportunidade de diálogo com os impasses adquiridos do século XIX para o período vigente possibilitando uma trajetória viável para ambos os domínios do saber que, diga-se de passagem, encontram-se mitigados. Definir o local de atuação das realizações teológicas e filosóficas no período atual consiste em repensar o papel que possuem e as consequências que emanam das posturas que estabelecem seus domínios. A emancipação intelectual que os Iluministas idealizaram falhou, todavia, a religião no mundo secularizado subsiste. A filosofia, contudo, fechada em seu próprio círculo, não medita os princípios metafísicos e especulativos, próprios do seu entendimento, possibilitando que o cogito esclarecido e a sociedade tecno-científica dirijam-se para um período dominado pelo niilismo tornando as manifestações do entendimento humano instrumentos de opressão e exploração dos indivíduos. 

    O modo de operação positivista de conceber o real pouco a pouco vai destruindo todas as tradições utópicas, éticas e estritamente humanas, dito doutro modo, o homem deixa de sonhar por um mundo melhor. À medida que o pensamento cientificista cresce e se consolida na sociedade, progressivamente diminui e se enfraquece o alcance dos valores morais. Logo, a religião deve assumir uma postura distinta na sociedade atual, é preciso que os preceitos divinos deixem de ser objetos especulativos indiscutíveis e se tornem abertos ao diálogo e, mediante isto, desenvolver práxis vividas das boas obras, consequência da fé. Uma teologia racional torna possível o engajamento e enfrentamento dos males atuais com a esperança para com um futuro mais sublime. A religiosidade deve ser uma prática racional vinculada com as obras de justiça e caridade visando o bem-estar entre os homens. Para a fé e teologia, não é conveniente, portanto, fechar-se em relação ao mundo. Além de que, a teologia dedicando-se fechada e distante do mundo torna-se uma ciência com uma postura negligente aos anseios de justiça expostos no Sermão da Montanha. Ter como objeto de investigação a Revelação e utilizar de critérios argumentos lógicos-racionais para construir seu repertório dogmático e racionalista propicia o aspecto pragmático da vivência religiosa e a salubridade da evangelização na contemporaneidade. 

    Visto isso, a teologia deve, segundo a encíclica, utilizar-se da filosofia para a evangelização. A razão, noção comum entre ambos os saberes, é o terreno onde há possibilidade de diálogo e enriquecimento cultural recíproco, para problemas contemporâneos comuns e relevantes para ambos. Ademais, toda a tradição cristã é fruto da relação e diálogo com os movimentos filosóficos e científicos vigentes em sua época, hoje, igualmente, torna-se de suma importância hoje construir pontes que unem os saberes com real e sincera simpatia na escuta do outro.



  • REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

JOÃO PAULO II, Papa. Carta encíclica Fides et Ratio: sobre as relações entre fé e razão. São Paulo: Paulinas, 2010.

SÍNTESE E PROBLEMATIZAÇÃO DO VALOR DA FILOSOFIA DE BERTRAND RUSSELL

    A reflexão do valor da filosofia perpassa o tempo e suas alternâncias. No mundo secularizado a questão toma proporções magnas e distintas mediante os desdobramentos próprios da passagem do período moderno ao contemporâneo. As reflexões acerca da problemática do papel do saber filosófico, do desenvolvimento das ciências exatas e naturais e do pensamento submetido a práxis capitalista ultrapassam os domínios herméticos dos intelectuais, resplandecendo em outras diversas manifestações culturais e no senso comum através da pergunta: Qual a utilidade e função da filosofia? Após os movimentos históricos do início do século XIX à contemporaneidade, a demarcação e limitação dos reinos dos diversos ramos do conhecimento tornou-se objeto de reflexão diante da ascensão de correntes filosóficas sistematizantes. As questões filosóficas direcionaram-se para a reflexão e enfrentamento ético, político e religioso na contemporaneidade. O ato de refletir sobre o “escândalo” da racionalidade contemplativa frente à prática, que rege a humanidade atualmente, é o pensar acerca das raízes e fundamentos da filosofia. 

    Russel coloca que o fundamento da filosofia é o pensar contemplativo que ascende à autonomia e à liberdade. A contemplação “neutra” do todo proporciona uma superação da alteridade, levando, consequentemente, a uma postura ético-política guiada por uma epistemologia abrangente e aberta à multiplicidade, — o Eu descobre o Não-Eu em um todo contemplativo. A filosofia não é dogmática, não possui verdades indubitáveis e leis no qual estrutura-se. Paradoxalmente, seu próprio valor encontra-se nesta incerteza e “imperfeição” ao não responder resolutamente seus problemas aporéticos. Nas aporias que o pensamento filosófico esforça-se para responder, a linguagem para compreender e interpretar o mundo se expande. O mundo, o Eu, ampliam-se com as suas questões sem respostas. 

    A perspectiva russeliana, ao contrário de seus contemporâneos analíticos, estabelece o seu domínio de pensamento contemplativo. Russel, aparentemente, retoma a noção do modo de pensar grego com as esperanças iluministas e idealistas (de Fichte e Schelling, especificamente). Com efeito, sua posição sobre o valor da filosofia é válida, mas não suficiente, diante da pressão que a sociedade tecnocrática estabelece para sua organização, porém encontra seu limite pelo mesmo motivo que é válida. Russel não apresenta em sua exortação à filosofia os impactos que a organização social exerce, influenciando e determinando o pensamento humano, ou seja, confere “[...] à educação um poder que ela não tem. Ela é apenas a imagem e o reflexo da sociedade. Ela a imita e a reproduz em tamanho reduzido; ela não a cria”. O pensar está sujeito à epocalidade do pensamento sob determinadas condições socioeconômicas, políticas e culturais. A contemplação, ainda que necessária na experiência fática de vida presente, é deslocada e impotente, pois “[...] não é com indivíduos isolados que se refaz a constituição moral dos povos”.




  • REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Russell, Bertrand. The Problems of Philosophy. Home University Library (1912). Oxford University Press, 1959. Reimpresso em 1971-2. Capítulo 15. Tradução de Jaimir Conte.
Durkheim, Émile. O suícidio: estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2019.


RESUMO: KANT’S CONCEPTION OF ANALYTIC JUDGMENT, IAN PROOPS

Kant, na primeira edição da Crítica da Razão Pura, apresenta quatro noções de juízos analíticos. Considerando a confusão dos comentadores, a importância do conceito no léxico de Kant e na história da filosofia, Ian Proops visa esclarecer em seu ensaio Kant’s Conception Of Analytic Judgment (2005), definindo e explicando metodologicamente, os empregos de juízos analíticos que o autor utiliza no decorrer da Crítica. Harmonizando-se com a disposição do conceito na primeira Crítica, Proops segue a caracterização posta por Kant, isto é, juízos analíticos como: Critério de Contenção (I); Princípio de Identidade (II); Clarificação-Explicação (III); Apreensão via Princípio de Não-Contradição (IV). Seguindo respectivamente a ordem estabelecida no trabalho analisado, o presente resumo tem como objetivo sistematizar as concepções de juízos analíticos na primeira Crítica mediante a exegese de Proops. 

    Na distinção que Kant apresenta na primeira Crítica, a base de todo juízo é divida em dois modos. De maneira sintética, quando algum predicado B está totalmente alheio e estranho ao sujeito A. Ou de modo analítico, no caso do predicado B ter algo que o sujeito A possui, pertencendo, consequentemente, ao sujeito. O juízo analítico, nessa primeira manifestação da Crítica, encontra-se sob a compreensão do Critério de Contenção, que é majoritariamente afirmativo, obtendo sua afirmação através da pertença “subliminar” do predicado no sujeito. Ora, como Kant afirma categoricamente que o Critério de Contenção aplica-se tão somente em juízos afirmativos, sua aplicação abrange, por consequência, a sua negação. Desta forma, segundo Proops, o juízo analítico, além de conter, ele exclui. O juízo analítico, portanto, apresenta-se pelo Critério de Contenção-Exclusão. 

    Com efeito, a primeira definição kantiana de juízos analíticos foi objeto de debates e contestações em dois principais tópicos. Na primeira objeção que Proops expõe, o Critério de Contenção-Exclusão aplica-se, contrariamente à perspectiva leibniziana, apenas em juízos nos quais possuem a estrutura de sujeito-predicado afirmativa impossibilitando a condições hipotéticas e disjuntivas. Segundamente, Kant não explica claramente como o predicado está contido no sujeito, para os opositores do criticismo, o Critério é uma metáfora inexplicável e subjetivista. Frege, Wittgenstein e outros, também rejeitam a análise epistemológica de Kant visto que a predicação está contida no próprio objeto singular e não no conceito. Seja como for, segundo Proops, o primeiro Critério não é metafórico ou subjetivista, pelo contrário, tal definição de juízo analítico encontra-se claro e distinto através do segundo Critério compreendido pelo Princípio de Identidade exposto na Crítica e, sobretudo, nos Prolegômenos. 

    Na segunda concepção de juízo analítico na Crítica por Princípio de Identidade, Kant elabora uma sutil alteração ou refinamento da primeira concepção apresentada. Seguindo a tradição lógica-filosófica, o juízo analítico seria aquele no qual o sujeito é correspondente ao predicado, ou seja, sempre é afirmativo. Exemplificando o princípio através da fórmula lógica de Leibniz, encontramos a validade do juízo analítico quando X é o mesmo que Y se, e somente se, todo predicado de X for igualmente verdadeiro em relação ao sujeito Y. Fazendo o uso desta segunda concepção presente na Crítica, Proops afirma, na direção contrária dos adeptos da segunda objeção do Critério de Contenção-Exclusão, que o Princípio de Identidade desenvolvido no terceiro capítulo da obra magna kantiana aponta a validade da primeira definição de juízo analítico. 

    Na seção seguinte da apresentação do Princípio de Identidade como juízo analítico, Kant faz uma distinção significativa entre a perspectiva analítica e sintética. A terceira concepção exposta na Crítica, marca a divisão entre o juízo explicativo e o ampliativo. Ora, vimos anteriormente que os juízos analíticos são afirmativos tanto por meio da primeira quanto da segunda definição, logo pela via analítica, todo conhecimento desenvolvido por meio deste método explicam os conceitos universais sem lhes acrescentar nenhuma ou pouca informação, e o predicado, necessariamente, é decomposto em conceitos parciais a priori . Visto isso, o juízo sintético seria aquele predicado que é pensado sem estar contido pelo Princípio de Identidade, ampliando, portanto, o conhecimento dado ao sujeito mediante a investigação da experiência empírica de algum fenômeno singular. 

    De todas as quatro definições que Kant coloca de juízos analíticos, a quarta é o princípio supremo de todo juízo analítico. O princípio da Não-Contradição é o paradigma para toda noção geral de verdade a priori, — seja à afirmação pela Identidade ou à negação pela Contradição, o predicado expressa de antemão algo já presente no sujeito. O filósofo apoia-se em Leibniz, ainda que com diferenças, ao eleger o Princípio de Identidade-ou-Contradição como as duas bases necessárias para todo entendimento humano. Esse é o critério presente em todas as demais concepções de juízos analíticos por sintetizar o caráter verdadeiro e universal de toda análise verdadeira. 

    Com efeito, Proops não exagera ao elencar tal Princípio como o mais fundamental de toda compreensão de analiticidade na primeira edição da Crítica e ao salientar a importância das definições kantianas de juízos analíticos. Além de ser um dos eixos epistemológicos que levariam a perda da credibilidade do saber metafísico, o delineamento conceitual kantiano permanece importante e necessário na contemporaneidade, destaca-se, sobretudo, sua função elementar nas colaborações fregerianas para o pensamento filosófico analítico, e, consequentemente, para os avanços nas investigações das estruturas lógicas da linguagem e do entendimento.




  • BIBLIOGRAFIA:
PROOPS, Ian. Kant's Conception of Analytic Judgment. International Phenomenological Society. Vol. 70, No. 3 (May, 2005), pp. 588-612. Acesso em: http://www.jstor.org/stable/40040818

O CONCEITO DE ALMA E CONSCIÊNCIA EM SAMUEL CLARKE

Samuel Clarke, discípulo de Isaac Newton, filósofo, teólogo e bispo anglicano, foi um dos pensadores britânicos mais notáveis do século XVIII. Clarke, discorreu acerca de diversos tópicos no decorrer de sua vida, destacando-se, sobretudo, no campo metafísico. Sua principal obra, dedicada a refutar os principais tópicos ontológicos do sistema espinosano e hobbesiano, esbarra em diferentes assuntos que, oriundos do dualismo cartesiano, perdurariam no pensamento moderno. Dentre os tópicos que Clarke desenvolve em sua obra magna e em suas correspondências com Anthony Collins, está seu entendimento sobre a questão levantada por Descartes, debatida veemente por inúmeros pensadores no início da modernidade como Locke e Leibniz, no que diz respeito à constituição do dualismo entre mente-corpo.


    Os argumentos que Clarke utiliza para desenvolver seus argumentos acerca da alma e consciência humana, demonstram a importância do tema neste período da filosofia anglo-americana. As doutrinas materialistas e naturalistas de Espinosa e Hobbes difundiram-se por toda Europa Ocidental, ainda que modificadas por seus seguidores.


    Dentre os aspectos do pensamento materialista que circulavam no Reino Unido no século XVIII, estava o emergentismo que considerava a alma e a consciência uma propriedade que provém de uma organização de componentes de matéria. Clarke rejeita tal posicionamento, afirmando a intangibilidade da alma por uma versão do princípio chamado posteriormente por Kant na Crítica da Razão Pura de “Aquiles de todos os raciocínios dialéticos da psicologia pura” (A 351-352), onde a indivisibilidade do sujeito contradiz a divisibilidade da matéria. A consciência, para existir, exige que pertença a um sujeito individual, indivisível e uniforme.


    A negação de Clarke contra a emergência da consciência pela matéria acontece pelaimplicação lógica de que o composto qualitativo da totalidade da alma é, simultaneamente,parte e totalidade da alma, impossível, portanto, ser resultante da matéria, levando em consideração que esta última é constituída de entes particulares mensuráveis e quantificáveis. É necessário que a alma seja imaterial e a consciência signifique ato reflexo. Caso contrário, seria preciso dizer, em primeiro lugar, que a matéria seja dotada de percepção e inteligência e, segundamente, os seus aspectos qualitativos e subjetivos dos objetos fossem intrínseco a eles.


    No primeiro caso, Clarke argumenta que a percepção e a inteligência são atributos do ato de reflexão pelo qual o indivíduo compreende que os seus pensamentos, suas percepções e ações são próprias e particulares. O filósofo deliberadamente não explica como realizam-se os procedimentos que ocorrem na consciência da pessoa humana, contudo afirma que de fato não é necessário tal explicação, em função de seu argumento conseguir demonstrar universalmente que é impossível que a matéria possua pensamento ou consciência.


    Na segunda hipótese, no qual Clarke constrói seu argumento, os aspectos qualitativos dos conteúdos provenientes dos fenômenos são intrinsecamente pertencentes ao sujeito. Com efeito, Johannes Kepler, cerca de um século antes, demonstrara categoricamente, por meio de seus estudos na óptica e dióptrica, que são os objetos que emitem a luz ao olho humano, e não o inverso (tal como concebido dos gregos até o século X d.C.). Newton progride com a óptica kepleriana: não apenas os objetos refletem a luz, mas também as cores, ou seja, em si, os objetos não possuem a qualidade da cor. No âmbito da sensibilidade e da imanência, cabe apenas a forma do objeto e seu movimento. Cores, sons, sabores, aromas, toques, etc. são modificações ou pensamentos da mente que são favorecidos pela potência circunstancial que o fenômeno têm para gerar alguma impressão no sujeito.


    Clarke, ademais, afirma que a alma é parcialmente extensa. Na esteira de suas compreensões metafísicas, apenas Deus não está sujeito ao espaço-tempo, consequentemente, a alma não está fora do mundo, a despeito de sua incorporeidade. A determinação do local da alma é obtida, principalmente, por inferências lógicas, ainda que Clarke considere uma parte do cérebro no qual “encontra-se”, o sensorium. Dois argumentos autônomos sustentam a condição vertical da alma: Onde há possibilidade de ação, há substância. Ora, verifica-se claramente uma relação alma-corpo; segue-se disso que a alma é parcialmente coextensivaao cérebro. Clarke não explica além de raciocínios lógicos como sucede-se tal relação alma-corpo. Esta parte da definição do seu conceito de alma é dubitável por não ater-se às críticas de Henry More e Leibniz quanto aos impasses presentes na concepção holmenmerista.


    Seja como for, a concepção de alma e consciência nos trabalhos e correspondências de Clarke contribuem indiretamente para a filosofia da mente em decorrência das intenções do autor nessas áreas de investigação do entendimento. Clarke estava interessado em solucionar, com um eixo de pensamento igualmente forte e válido, as implicações ontoteológicas e éticas dos sistemas naturalistas e materialistas que abalavam as estruturas do pensamento religioso cristão e, por acaso, acaba também debatendo e afastado-se de outras correntes filosóficas vigentes, como a de Leibniz, Descartes e Locke. Como vimos anteriormente, ainda que com a ausência de algumas explicações significativas no que diz respeito ao tema, a alma e a consciência em Clarke são incorpóreas, sujeitas às condições espaciais, e aptas às compreensões qualitativas dos fenômenos através do ato reflexo sobre as impressões que este último suscita no sujeito transcendental simples.


    
                                                                    



● REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CLARKE, Samuel. A Demonstration of the Being and Attributes of God And Other
Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
______. The Correspondence of Samuel Clarke and Anthony Collins. Buffalo, NY:
Broadview Press, 2011.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 5. Ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2001.
ROZEMOND, Martin. “The Achilles Argument and the Nature of Matter in the
Clarke-Collins Correspondence”. The Achilles of Rationalist Psychology. London:
Springer, 2008, p. 159–175.
______. “Can Matter Think? The Mind-Body Problem in the Clarke-Collins
Correspondence”. Topics in Early Modern Philosophy of Mind. London: Springer,
2009, p. 171–192.

As múltiplas faces do modo-de-ser-cuidado segundo Luigina Mortari

Resumo:

Das concepções mitológicas à mentalidade tecno-científica contemporânea, a essência do homem sempre constituiu um tópico importante no itinerário do pensamento humano. Relevante para todos as manifestações existenciais do homem, a compreensão de sua essência resulta em implicações sociopolíticas de proporções magnas visto que, como Luigina Mortari aponta na Filosofia do Cuidado (2018) com base em Aristóteles, Winnicott e na tradição fenomenológica, não há ser humano sozinho, pelo contrário, todos são entes relacionais. “Ser-aí-com-outros", a dependência relacional com o mundo em sua totalidade está dada desde o nascimento do indivíduo, isto é, a partir do momento em que começa a con-viver: Carente de Ser, o cuidado como necessidade ontológica e vital do ser-aí resplandece em suas múltiplas faces na Faktische Lebenserfahrung: na chama que arde no olhar dos apaixonados, na amabilidade do pai para com seu filho, na dedicação do professor em orientar seus alunos etc; o princípio da amabilidade norteadora do ser-aí, o cuidado, manifesta-se na essência da singularidade plural dos indivíduos. Enganam-se, por conseguinte, os teóricos políticos e pensadores do Ocidente que constroem muros exaltando a autossuficiência do homem enfraquecendo as pontes que os unem. Alicerçada por V. Goldschmidt em Tempo Histórico e Tempo Lógico na Interpretação de Sistemas Filosóficos (1963), e D. Folscheid & J-J. Wunenburguer em Metodologia Filosófica (2000), o artigo analisará as obras referenciadas com o intuito de compreender o cuidado em sua natureza elementar, os modos no qual se apresenta na cotidianidade e, por fim, elucidar os fundamentos da filosofia do cuidado em Luigina Mortari.

● Palavras-chave: Mortari; Cuidado; Filosofia; Ética; Ontologia.

Introdução:

    A reflexão acerca da essência do homem ultrapassa a temporalidade do discurso antropológico-filosófico. Das concepções pré-filosóficas às compreensões behavioristas contemporâneas, a constituição integral do ser humano foi objeto de investigação em diferentes perspectivas que compartilham da mesma noção comum, quiçá uma lei eterna e universal da natureza: o homem é um ente intrinsecamente social. Luigina Mortari insere-se nessa busca pela compreensão dos fundamentos das relações humanas. Mortari, diferentemente de outros pensadores que dedicaram-se a mesma investigação antropológica, não procura elucidar as condições que versam acerca da totalidade do homem, mas uma específica e fundamental: o caráter relacional dos homens e sua dependência ontológica e física de ser-aí-com-outros, o cuidado.
    Aspecto elementar da condição humana, o cuidado do ser-aí-com-outros constitui o centro de toda sociabilidade e de possível engajamento ético-político diante das etapas atuais do processo civilizatório ocidental. Heidegger em Ser e Tempo (2005) ilustra a dependência ontológica do ser-aí através da alegoria sobre a origem do homem: resumidamente, após o Cuidado pedir ao Céu que preenchesse de vida sua porção de terra, a Terra e o Céu reivindicam conflituosamente o homem, o Tempo visando dar fim aos conflitos entre as personagens determina que, enquanto houvesse vida, o homem estaria dependente do Cuidado, sua alma encaminharia-se posteriormente para o Céu e o seu corpo, de volta à Terra. Luigina Mortari, em suas reflexões fenomenológicas da condição social humana, atém-se no personagem e na propriedade do Cuidado. Cuidado este que escapa a sistematização e ao crivo da racionalidade do sujeito cartesiano, mas encontra-se pleno na espontaneidade da razão do coração no encontro com o Outro, ou seja, na loucura existencial da ruptura ontológica para com o mundo na fusão extática do ser-aí na intimidade da con-vivência com o Outro (MORTARI, 2018).

1.1. As manifestações do modo-de-ser cuidado:

    Existir é a expansão do Ser no âmago necessário do con-viver. O ser humano compartilha sua existência desde sua concepção no ventre da mãe. Os entes são, necessária e naturalmente, relacionais. Contudo, Mortari aponta que ao mesmo tempo que o ser-aí depende e sustenta-se mediante a convivência, sua vulnerabilidade sobressai de ambos os modos: tanto na solidão quanto na união, o ser-aí está vulnerável. Na solidão, o homem é insuficiente e incapaz de desenvolver-se plenamente enquanto ser humano; na união, dependentes um dos outros, o ser humano encontra-se sujeito aos atos relacionais de outrem e responsável por suas ações como efeito da teia relacional no qual está inserido. O encontro com a totalidade Infinita de Lévinas, “[...] nos alimenta de ser, mas, ao mesmo tempo, nos limita. Somos necessitados do outro, e por isso, procuramos a relação com o outro” (MORTARI, 2018, p. 52).
    Seja como for, é mediante esta fragilidade do ser-aí que o Cuidado e sua condição ontológica se manifesta, nesta ruptura da horizontalidade nas relações humanas. Com efeito, Heidegger não elencou sem razão o Cuidado como um dos constituintes da origem humana: “[...] Em seu ser-no-mundo cotidiano e que lhe pertence a cada vez, importa-lhe o seu ser. Assim como no falar sobre o mundo reside um auto-expressar-se do ser-aí sobre si mesmo, do mesmo modo todo manusear que cuida de é um cuidar do ser do ser-aí” (HEIDEGGER,1997, p. 21). No decorrer da história humana, o Cuidado apresenta-se de sutilmente em inúmeros modos nas macros e micros-estruturas da sociedade: nas instituições sociais, na moral, na ciência, nos templos, no mundo comercial, na chama que arde no olhar dos apaixonados, na amabilidade do pai para com seu filho, na dedicação do professor em orientar seus alunos. Onde há seres humanos, o Cuidado está presente. A importância deste componente humano, não se limita apenas aos benefícios do bem-estar social (como designavam alguns filósofos políticos modernos), mas à fecundidade e plenitude do Ser. A riqueza e a plenitude do ser-aí que se faz no contato com o Outro, na experiência fática de vida — o que é, diga-se de passagem, afirmado desde a concepção eudaimônica de Aristóteles na Ética a Nicômaco. Contato este que realiza-se pela razão do coração: entes vulneráveis que clamam uns aos outros pela percepção da delicadeza do ser-aí; consumação do Ser e bem-aventurança recíproca, a compreensão da responsabilidade de Cuidar de
Outrem e do Mundo que efetua-se na harmonia das relações, e, deste modo: “Sentimos a alegria intensa e leve do ser-aí” (MORTARI, 2008, p. 53).
    Ainda que os aspectos relacionais do ser-aí propiciem um aumento na potência de ação dos indivíduos. Da Revolução Mercantil à Contemporaneidade, os vínculos relacionais do Cuidado enfraqueceram-se. A “descoberta” da individualidade no pensamento Ocidental desencadeou os paradigmas da autossuficiência humana que, ao contrário do que pensou Nietzsche com a ascensão do além-homem, tão somente exterioriza a pequenez do indivíduo. De todas as consequências da exaltação da autossuficiência humana, destacam-se duas
posturas predominantes perante a existência: em primeiro lugar, a tendência do niilismo e suas expressões nos mais diferentes âmbitos da con-vivência; em segundo, não menos importante, o hedonismo do viver e a práxis como causa eficiente e final de todas as ações humanas. Do niilismo, despontam a melancolia e a languidez que, por sua vez, “[...] só inspiram ao indivíduo indiferença e distanciamento” (DURKHEIM, 2019, p. 357). Do hedonismo, atrofiado e sustentado pelos desenvolvimentos industriais, surgem os desejos e os apetites impossíveis de serem satisfeitos que desaguam na desilusão e na melancolia. Com efeito, ambas são dialeticamente interligadas: o hedonismo, provindo da fetichização dos desejos e da mercadoria, necessariamente insaciável, gera o niilismo, visto que, reciprocamente, “[...] todas aquelas sensações novas, indefinidamente acumuladas, não conseguiram constituir um sólido capital de felicidade do qual pudéssemos viver nos dias de provações” (DURKHEIM, 2019, p. 326).

1.1.2 A Técnica e o Pensamento Meditativo como modo-de-ser-cuidado:

    Copérnico e Kepler forneceram as bases do que viria a ser a filosofia, a ciência e a técnica moderna. Com Galileu Galilei, todavia, começa-se uma mudança substancial nas explicações filosóficas e matemáticas das estruturas e nos modos de compreensão dos fenômenos da natureza. No ensaio Il Saggiatore publicado em 1623, o astrônomo e físico italiano afirma categoricamente que os fatos verdadeiros que se sucedem na natureza são matemáticos e geométricos, dimensionáveis e calculáveis, — Galilei fornece o que Heidegger designa na Conferência Sobre A Questão da Técnica de 1933 como a essência, ou armação, da τέχνή moderna: “A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que, [...] está escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas[...]; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto” (GALILEU, 1983, p. 32, grifo meu). Perde-se, com efeito, o valor dos aspectos qualitativos no modus operandi de filosofar acerca dos fenômenos naturais e a possibilidade de obtenção de um conhecimento seguro mediante o uso do próprio exercício da razão natural estabelece o princípio de cognoscibilidade próprio do saber científico.
    A despeito das contribuições galileanas e baconianas no progresso do pensamento filosófico-científico moderno serem colossais é com René Descartes, sucessor dos trabalhos de Galilei, que há uma clarificação e distinção nos princípios que serão posteriormente os paradigmas no pensamento ocidental. Com efeito, diz Alexandre Koyré acerca da importância do fundador da filosofia moderna:“[...] Não foi, em todo caso, Galileu, nem Bruno, e sim Descartes quem clara e distintamente formulou os princípios da nova ciência [...]” (KOYRÉ, 2006, p. 89).
    Pela elaboração de um método rigoroso capaz de sistematizar as diversas manifestações do saber científico em uma unidade metodológica que se sobressaísse na simetria presente entre as diferentes áreas de atuação do entendimento, Descartes satisfaz, firmando um novo paradigma na história do pensamento humano, à necessidade do seu período de uma estrutura epistemológica válida e universal que possibilitasse uma estabilidade maior no desenvolvimento das ciências (VERNEAUX, 1977). Consequência da valorização renascentista do homem, do êxtase causado pelos critérios matemáticos-geométricos e seus avanços nas ciências positivas, da expansão econômica e política das grandes potências, da ordenação e racionalização do real por Descartes, o otimismo do progresso constrói a nova civilização predominante na Europa.
    Contudo, diz Heidegger, o cogito cartesiano objetifica o ente. O Ser, e consequentemente o ser-aí, é esvaziado pela técnica moderna. O ser-aí, da consolidação da Revolução Científica no Ocidente à pós-modernidade, está em uma crescente deserção e fuga de pensamento e reflexão. Com a matematização do mundo e do Ser, o pensamento calculativo desenvolve-se: a causa eficiente antecipa a final; o cálculo predomina ainda que não se utilize de noções estritamente matemáticas; é um pensamento que analisa metodicamente “[...] possibilidades continuamente novas, sempre com maiores perspectivas e simultaneamente mais econômicas. O pensamento que calcula corre de oportunidade em oportunidade. O pensamento que calcula nunca para, nunca chega a meditar” (HEIDEGGER,1959, p. 13). Ora, a meditação ou reflexão é também um tipo de pensamento. Esta última, diferentemente do pensamento que calcula, pensa e reflete sobre o sentido ou causa final que está presente no mundo. É este modo de pensar que a técnica e a sociedade tecnocrática obscurecem e fazem o homem atual careça de pensamento.
    Heidegger, em seu discurso tardio sobre a Serenidade, estabelece a importância e o modo no qual o pensamento pode ser uma via de acesso para o Cuidado. O ato reflexivo não precisa elevar-se patamares transcendentais ou místicos, mas ater-se à Faktische Lebenserfahrung, ou seja, é suficiente “[...] demorarmo-nos (verweilen) junto do que está perto e meditarmos sobre o que está mais próximo: aquilo que diz respeito a cada um de nós, aqui e agora; aqui, neste pedaço de terra natal; agora, na presente hora universal” (HEIDEGGER, 1959, p. 14).
    A difusão da técnica moderna desencantou o mundo, gerando, como vimos anteriormente, a dialética niilista-hedonista e seus desdobramentos que desencadeiam o mal-estar na contemporaneidade. Entretanto, apesar da condição insalubre da sociedade tecnocrática, o Cuidado apresenta-se, além de seus múltiplos modos, no pensamento reflexivo e na serenidade perante à técnica e às circunstâncias instáveis da transformação vigente no mundo. O Cuidado, neste sentido, assumiria aspectos sociopolíticos e educacionais. A meditação sobre a relação com a técnica, exerceria uma postura crítica e distante em relação aos avanços tecno-científicos, procuraria estabelecer um novo enraizamento das relações humanas através da proximidade com o mundo. A técnica, está em todos os âmbitos da existência, intimamente próxima dos indivíduos na contemporaneidade, portanto, como diz Heidegger, seria tolice condenar ou fugir dela, mas é preciso não se deixar retificar por ela
através do pensamento meditativo, e mediante isto, possuir a liberdade e a dignidade humana perante à τέχνή. O Cuidado está centrado no pensamento meditativo que a manifestação do ser no outro. O ato de cuidar envolve a educação e reflexão coletiva sobre o uso saudável da técnica, e desse modo podermos “[...] dizer «sim» à utilização inevitável dos objectos técnicos e podemos ao mesmo tempo dizer «não», impedindo que nos absorvam e, desse modo, verguem, confundam e, por fim, esgotem a nossa natureza (Wesen)” (HEIDEGGER, 1959, p. 23-24).

    Considerações finais:

    Como vimos anteriormente, o Cuidado é um dos componentes ontológicos fundamentais do ser-aí, que mitiga-se, mas, sem se esgotar, pela objetivação do ente e do Ser via à racionalização do mundo. Em virtude do caráter relacional do ser-aí, o Cuidado que manifesta-se cotidianamente na experiência fática de vida transcende seus impasses na era contemporânea. Todavia, para esta transcendência do ato de cuidar na relação com a infinitude e totalidade do Outro, é preciso tempo, serenidade e reflexão, que Heidegger desenvolve como sendo os protetores da essência humana na sociedade tecnocrática, e que pode ser também uma atitude de Cuidado e resistência à reificação maquínica que a sociedade pós-industrial impõe salvaguardando a dignidade e a liberdade do ser-aí.     O pensamento reflexivo é expressão plena do Cuidado. A reflexão torna possível a percepção da vulnerabilidade e solidão do ser-aí. É este modo-de-pensar-cuidado que faz o ser-aí guiar-se pela razão do coração, ou seja, através do amor. É o Cuidado exteriorizado no pensamento que medita sobre o uso da técnica para ceder a uma liberdade responsável e solidária na teia relacional que o ser-aí-com-outros desfruta. Compreendendo, portanto, o modo-de-ser-cuidado pela reflexão, diz Heidegger, “[...] o cuidar é referido ao agora num processo sem fim; ele diz: agora, do agora até depois, para um próximo agora”
(HEIDEGGER, 1997, p. 31).

                                                                        

                            

    ● REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DURKHEIM, Émile. O suícidio: estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2019)
FOLSCHIEID, D & WUNENBURGUER, J-J. Metodologia Filosófica. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
GALILEI, Galileu. “O Ensaiador”. In: Os Pensadores: Bruno, Galileu e Campanella. 3.
Ed. São Paulo: Editora Abril, 1983.
HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica (M. A. Werle, Trad.). Scientiae Studia, 5(3),
375- 398. 2007. Recuperado em 05 de março de 2018, de http://www.revistas.usp.br/ss/article/view/11117/12885 .
______. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1959.
______. O Conceito de Tempo. São Paulo: Edusp, 1997.
______. Ser e Tempo: Parte I. Petropólis: Editora Vozes, 2005.
KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2006.
MORTARI, Luigina. Filosofia do cuidado: filosofia do cuidado. São Paulo: Paulus, 2018.
VERNEAUX, Roger. Hístoria de La Filosofia Moderna. Barcelona: Editora Herder, 1977

RESUMO DE PSICOLOGIA SOCIAL: CONFORMIDADE E OBEDIÊNCIA

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