RESUMO: PITÁGORAS E OS PITAGÓRICOS, CHARLES H. KAHN

• Apresentação: 
    Trabalho com inúmeras dificuldades em decorrência dos poucos registros escritos originais da tradição, Charles H. Kahn propõe uma síntese panorâmica sobre o pitagorismo do seu início às suas influências no período moderno e contemporâneo. Com o início no século VI a.C. a tradição pitagórica estende-se até a Revolução Científica pré-Iluminista no século XVII d.C. envolta sempre de divergências e marcos significativos em diversas áreas do pensamento ocidental. Permeada de lendas e mitos sobre a imagem do Pitágoras, procurar um registro que seja fidedigno da real imagem do filósofo abrange impasses enormes para o historiador da filosofia grega. 
    Pitágoras se tornara uma lenda em vida. Desde os pré-socráticos há quem retrate o pensador como um charlatão, como é o caso de Heráclito, e quem o considere como um verdadeiro filósofo, tal como Empédocles o retratava. A discussão perpassa o tempo, sem uma solução válida para a construção autêntica da imagem de Pitágoras. No âmbito acadêmico atual persistem os mesmos impasses: Burkert considera o mestre um líder, em contrapartida, Leonid Zhmud estima a capacidade intelectual revolucionária do filósofo. Kahn, no âmago destas discussões acadêmicas acerca do pitagorismo, refaz a trajetória da tradição no decorrer da história do pensamento. 

• Capítulo I: A questão pitagórica 
    Pitágoras, além do fascínio que há envolto de suas ideias e do mistério que sua tradição carrega, é também uma das imagens do período pré-socrático mais conhecidas. Aristóteles retrata que as questões pitagóricas é uma das bases fundamentais do pensamento de Platão, de modo similar, filósofos posteriores atribuem ao pensador da Magna Grécia o título de fundador da tradição platônica. Independentemente de como a recepção posterior de Pitágoras aconteceu na filosofia, o seu legado é evidente. Tanto Jâmblico como Whitehead consideram seu pensamento de suma importância para ciência da época: Pitágoras deu ênfase ao pensamento abstrato e na constituição matemática do real. Outros como Heráclito, Burkert e Zeller, definiam o fundador da tradição pitagórica como um líder religioso e fundador de uma seita, — ainda nesse mesmo raciocínio, Erick Frank considerava que as contribuições matemáticas não foram fruto do próprio Pitágoras, mas de matemáticos do sul da península itálica contemporâneos de Platão. 
    Há certo dualismo que justificam a imagem de Pitágoras no percorrer da história: o aspecto religioso-místico e a condição matemática-científica de suas ideias. De um lado, as questões religiosas da transmigração e sua imortalidade, a responsabilidade moral de se purificar e se libertar da escravidão da corporeidade. Doutro lado, o esforço para compreender a realidade sob a ordem geométrica mediante a ligação precisa entre música, fenômenos naturais e matemática. Para além dos ideais pitagóricos, há outra dualidade problemática acerca da tradição: a falta de conhecimento histórico seguro sobre a escola e a própria noção do termo “pitagórico” que repercute no tempo. Seja como for, ambos os dualismos, de ideias pitagóricas e de problemas que envolvem, tanto a condição espiritual como a matemática de Pitágoras constituem o cerne do seu pensamento. 

 • Capítulo II: Pitágoras e o modo de vida pitagórico
    Permeada de concepções lendárias e tardias de sua imagem, Pitágoras é retratado de modos completamente distintos a depender da época e do autor. Muitos, desde o período clássico consideram o filósofo como Apolo encarnado em decorrência de seu enorme saber. Diz Porfírio que Pitágoras adquiriu seu conhecimento após longas viagens em sua juventude no mundo de sua época: Aprendeu matemática e geometria com Anaximandro, estudou com os sábios egípcios, hebreus, árabes, caldeus, e com o próprio Zoroastro acerca de práticas religiosas e sobrenaturais. Já na Antiguidade Tardia, a humanidade de Pitágoras é obscurecida pelo aspecto místico que adquiriu se tornando um paradigma para de sabedoria. 
    Para além dos mitos, historicamente sabemos que Pitágoras nasceu no século VI a.C., filho de um indivíduo influente na ilha de Samos, diante de um amplo desenvolvimento intelectual e cultural da Grécia Antiga: ao leste do território grego, em Mileto, prosperava a ciência e a filosofia da natureza. Não há fontes históricas seguras quanto a vida de Pitágoras anterior a fundação de sua escola em Crotona, o que podemos deduzir é quanto a sua personalidade e a influência de sua seita moldaram a cenário político desta região da Magna Grécia. Com efeito, apesar dos poucos registros históricos, a escola pitagórica teve uma organização político-social extremamente forte e eficaz contra a ação do tempo. 
    Os participantes da escola estavam ligados a ritos comuns a todos, eles eram designados por se juntarem para escutar os ensinamentos do mestre como homakooi. As práticas dos membros também é objeto de discussão, eles possuíam um voto de silêncio tanto dos ensinamentos e das práticas, a pouca quantidade sobre o tópico é tratada por autores posteriores à escola original. Aristóteles, depois séculos dois, afirmava que os pitagóricos não restringiam o consumo de carne, já Empédocles e o outros pitagóricos pósteros defendiam que a crença na transmigração das almas implica necessariamente uma restrição alimentar. Burkert, segue uma linha semelhante à do Estagirita, o alemão indica que as questões alimentares originais foram pensadas para impedir possíveis conflitos com a religião já institucionalizada em Crotona. Seja como for, os ensinamentos e rituais pitagóricos que provavelmente serviam como meios de identificação dos membros, persistiram até a época de Platão como referência de várias atitudes belas e sublimes. 
    Mesmo possuindo diversos resquícios históricos seguros quanto a comunidade de Pitágoras, há pouco material científico ou filosófico que seja seguramente de autoria do líder. O tópico principal atribuído a Pitágoras é seu grande interesse na metempsicose. Empédocles considerava que a sabedoria que possuía era fruto da recordação das reencarnações anteriores, enquanto Heródoto e Íon de Quíos ironizavam esse aspecto religioso de Pitágoras. Entre o século V e IV, a fama do filósofo já havia se expandido por todo território grego divergindo de opções sobre sua imagem: sábio, líder religioso e charlatão. Figura tal que há de ser completamente transformada pela influência da escola platônica. Jâmblico posteriormente afirmará que após a morte do líder, os membros se dividiram em duas vertentes que se afirmavam como membros verdadeiros da comunidade pitagórica: os mathematikoi e os akousmata, sendo os primeiros interessados no desenvolvimento das ciências matemáticas e os segundos com enfoque na religiosidade apreendida do mestre. Interpretação tal que permite conceber a escola pitagórica constituída pela mescla de ambos os gêneros de conhecimento, a saber, o religioso e o científico. 
    Pitágoras está inserido dentro da primeira linhagem filosófica grega que se preocupava com questões cosmológicas e da natureza em si. Ainda assim, seu nome é mais relacionado com a metempsicose, fato compreensível, visto que esta nova forma de conceber a alma demonstra uma ruptura com a noção homérica, — o homem, a partir do momento que está sujeito ao eterno retorno, se eleva a condição divina com sua psýche imortal. Apesar de todo o crédito imputado a Pitágoras no âmbito da transmigração, não é verossímil que ele tenha elaborado esta teoria sozinho, mas que sim, reinventou e a popularizou no mundo grego. 
     Não há registros que permitam fazer uma genealogia da metempsicose até Pitágoras, a posteriormente será concebido que ele viajou ao oriente em busca de conhecimentos tendo contato com religiões budistas e hindus. Associado desde a Antiguidade ao culto órfico, Kahn demonstra que há incompatibilidade entre ambos os ensinamentos: Orfeu é vinculado ao deus Dioniso, seus membros deixavam por escrito seus ensinamentos, prestavam reverência a diversos deuses, e sua concepção cosmológica repleta de mitos; os pitagóricos, contrariamente, são afeitos ao estilo de vida apolíneo austero, transmitiam seus ensinamentos oralmente e concebiam a natureza em ordem geométrica. Ainda que fundamentalmente distintas, houve um sincretismo entre ambas, a lira de Orfeu será expressão para a música cósmica dos pitagóricos e serão concebidos, o orfismo e o pitagorismo, quase como sinônimos pelas tradições seguintes. 

• Capítulo III: A filosofia pitagórica antes de Platão 
    O pitagorismo anterior a Platão é rodeada de lendas sobre os movimentos iniciais da escola. Além de Pitágoras, houve outro pitagórico expoente chamado Hipaso de Metaponto do qual conhecemos tão somente por doxográfos (geralmente parciais quanto ao tratamento hostil ou amigável com a seita). Derivado dos escritos de Filolau em meados do século V a.C., o véu místico que cobria as doutrinas de Pitágoras começava a desaparecer dando início, de fato, a história da filosofia pitagórica. O conteúdo da obra de Filolau dedica-se sobretudo no âmbito cosmológico da filosofia refletindo o ambiente intelectual que permeava o território grego em sua primeira Ilustração: tal como Tales e Anaximandro, Pitágoras e seus discípulos perscrutavam os archaí do cosmo. Filolau em seus fragmentos aperfeiçoara alguns conceitos de pensadores contemporâneos e anteriores aos seus escritos. 
    Para o pitagórico, a natureza é unida por um princípio de harmonia que coaduna elementos ilimitados e limitados formando uma só ordem e todo. A harmonia é um princípio fundamental na cosmovisão de Filolau, por meio desta, com a mesma função que Heráclito atribui, os contrários se unificam e a multiplicidade se conflui com a unidade em noções matemáticas e musicais. Constituída por essas concepções, a harmonia e o próprio sistema astronômico filolaico é uma operação de adição dos números inteiros de três acordes musicais que sucede na soma de dez. Ora, como o dez é o número perfeito por excelência, o fogo um recurso importantíssimo, e o centro da circunferência local das maiores honras, o universo, por conseguinte, corresponde ao microcosmo: há um fogo central e dez astros, dentre os quais o planeta Terra, dão voltas em seu entorno. 
    As discussões mais recentes sobre o sistema astronômico dos pitagóricos não possuem um consenso entre os historiadores da filosofia. Burkert considera como uma “mitologia científica”, Huffman, ao contrário, admira a exatidão da astronomia contemplativa construída a priori por Filolau. Seja como for, tal concepção de organização da natureza, quase um milênio depois, permitirá Copérnico denominar Filolau como seu precursor e seu sistema heliocêntrico de astronomia filolaica ou pitagórica. Não obstante, apesar da semelhança evidente com o modelo astronômico comprovado empiricamente pela astronomia posterior, a concepção de Filolau apresenta mais um pensamento simbólico ou uma analogia da musicalidade matemática do universo do que um saber científico scricto sensu. Aristóteles e Sexto Empírico dizem que os pitagóricos concebiam toda realidade sob a ordem numérica: o cosmo se faz percebido pelo homem pela matemática. Nessa perspectiva matemática do mundo, os números são duais, são tanto particulares quanto gerais que habitam no Um. 
    Além do desenvolvimento na cosmologia grega, a geometria e a matemática avançaram a largos passos pelos discípulos de Pitágoras. As formas geométricas representam os algarismos, o número dez considerado perfeito, é representado pelo triângulo formado pela soma dos números inteiros. O triângulo, tetractus, é o símbolo pleno da perfectibilidade da harmonia numérica e musical da Natureza. Estes e outros elementos expressos na obra de Filolau permitem deduzir que são anteriores a sua escrita remontando aos ensinamentos que circulavam na escola pitagórica inicial, sendo esse escrito uma fonte confiável da filosofia pitagórica em seu estágio ainda mais “puro”.

• Capítulo IV: A filosofia pitagórica no tempo de Platão 
    No século IV a.C. já havia uma larga comunidade pitagórica espalhada em toda Grécia influenciando o cenário intelectual matemático e filosófico. Além da localidade tradicional da escola pitagórica, no sul da Itália, que se dedicavam a ciência e a filosofia, no oriente grego, na Ásia Menor, o aspecto religioso do pitagorismo ganhava força, semelhantemente, em Atenas os pitagóricos são retratados nas comédias como ascetas mendicantes. 
    Arquitas de Tarento foi dos expoentes pitagóricos nesse período. Retratado como um homem de virtude e sabedoria exemplares, Arquitas exerceu cargos importantes na política grega contribuindo em diversas áreas do conhecimento: música, filosofia da natureza, matemática, astronomia, física etc. O filósofo foi um grande matemático desenvolvendo significativamente a harmonia musical do universo de Pitágoras chegando a influenciar matemáticos posteriores como Euclides. Tem-se poucos registros de Arquitas e seu ciclo social, grande parte do conteúdo a respeito de sua pessoa perpassou o tempo pelos comentadores. Apesar da pouca informação sobre o filósofo sabemos que, além de ser um indivíduo prestigiado na elite grega, era amigo de Platão. 
    Platão foi fortemente influenciado pelos ensinamentos de Pitágoras e um ponto fundamental na história da filosofia pitagórica. Em diversos diálogos é perceptível a transformação das ideias pitagóricas, Platão possui dois tópicos fundamentais de interesse em comum com os pitagóricos: a imortalidade da alma e a matemática como instrumento para compreensão do cosmo. No Górgias já é possível identificar traços da tradição pitagórica, Sócrates faz uma especulação sobre a vida após a morte e diz que o corpo é uma sepultura. No Mênon, o mestre de Platão faz referência direta para com a imortalidade da alma humana e da transmigração das almas, mais esmiuçada no Fédon, Fedro e República, Platão traz os conceitos religiosos de Pitágoras para o âmbito gnosiológico e político. Apesar de todo o arcabouço pitagórico nos diálogos de Platão, a criação de um “novo pitagorismo” acontecera sobretudo no Mênon e no Fédon. 
    No diálogo tardio de Platão, o protagonista do Timeu é um chefe de estado de Locri, no sul da Itália. Neste trabalho, Platão já havia desenvolvido sua epistemologia com ênfase no conhecimento matemático para compreender a realidade. O modelo cosmológico exposto no diálogo é marcado principalmente pela geometria e matemática simbólica, com outros conceitos que já haviam sido trabalhados por Arquitas e Filolau, mas que ganhava novas cores por Platão, no Timeu é sintetizado o saber pitagórico. Os aspectos pitagóricos neste diálogo são tão evidentes que A.E. Taylor atribuí as teorias ali presentes como autoria dos pitagóricos de Atenas do século IV. Provavelmente, segundo Kahn, o diálogo do Timeu, individualmente, foi o mais importante para a posteridade da escola pitagórica. 

• Capítulo V: A nova filosofia pitagórica na Academia antiga 
    As divergências sobre Pitágoras adquirem uma nova roupagem após a difusão dos diálogos platônicos. Há duas grandes tendências nesse debate: considerar Pitágoras o primeiro platônico, ou, como Platão discípulo e plagiador. Platão foi o responsável por transformar a imagem de Pitágoras em um arquétipo de verdadeiro filósofo gerando essa discussão oriundas das menções pitagóricas nos diálogos e na doutrina oral da Academia. Pitágoras, nesse período, discutido por vários filósofos, inclusive Aristóteles. 
    Espeusipo e Xenócrates buscavam similaridades entre a doutrina platônica e pitagórica. Epeusipo nessa tentativa substituiu as formas de Platão por números atribuindo a autoria para os antigos pitagóricos, e ambos os filósofos tratavam o diálogo do Timeu como uma obra essencialmente pitagórica. Nessa mesma tendência, Heráclides de Ponto perscrutou o Pitágoras platonizado pelo viés mais místico dos diálogos, colocou o fundador da comunidade sendo o primeiro e verdadeiro amante da sabedoria, e o primeiro membro da Academia de Platão. 
    Em contrapartida aos filósofos que tentaram por Pitágoras como um platônico, Dicearco de Messina e Aristóxeno de Tarento, discípulos de Aristóteles, vão na direção contrária. Dicearco, recusa todo lado místico do pitagorismo, mas admite que Pitágoras foi um grande líder e político influente com suas doutrinas. Enquanto Aristóxeno, compõem o primeiro trabalho de teoria musical sem os aspectos da harmonia pitagórica, além de derrubar todo os aspectos mitológicos em Pitágoras, e considerar Platão como um plagiador do fundador da escola. Independentemente do modo como foi concebida a relação de Pitágoras com Platão, permanecerá em toda Antiguidade a imagem que a filosofia platônica é estritamente pitagórica. 

• Capítulo VI: A sobrevivência do pitagorismo na época helenística 
    A escola pitagórica, por mais que tenha saído dos tópicos de interesse dos filósofos no século III ao I a.C., permaneceu ainda influente e admirada por muitos. Influência localizada principalmente no sul da Itália, o culto pitagórico é documentado arqueologicamente pelas tabuletas de ouro com símbolos órficos em diversas regiões greco-romanas. O vínculo entre orfismo e pitagorismo que ocorriam dentro dos cultos desta época é algo que permite tão somente especulações, todavia, ainda mais bem registrado é a “literatura pitagórica” que firma a presença dos ideais pitagóricos no período helenístico. 
    As “literaturas pitagóricas” são obras anônimas redigidas em prosa dórica com forte presença da metafísica desenvolvida pela Academia platônica que eram atribuídas a grandes discípulos de Pitágoras como Filolau e Arquitas. O movimento começou em Roma e Alexandria no século I a.C. com Nigídio Fígulo, de acordo com Cícero, revivendo os ensinamentos pitagóricos no Império Romano. Nessas obras encontram-se tópicos distintos e mesclados, em um popular curto tratado de filosofia de natureza atribuído a Arquitas é combinado, dentre outros, muitos elementos da doutrina aristotélica e dos dois princípios desenvolvidos por Filolau, e também sob a mesma autoria do amigo de Platão, encontra-se um tratado de ética elaborado sob o viés aristotélico. Arquitas foi o principal pitagórico antigo a ter o nome vinculado ao movimento pitagórico emergente no Império, não apenas de obras cosmológicas e morais foram atribuídas a seu nome, mas inclusive tratados lógicos. 
    Não obstante, apesar de toda literatura forjada, Kahn elenca dois que foram significativos para o repertório intelectual dos pitagóricos. O primeiro é de escrito por Diógenes Laércio, que traz elementos cosmológicos do platonismo tardio com um monismo substancial que privilegia a Unidade do cosmo, também elabora uma psicologia mesclando saberes pitagóricos, pré-socráticos e platônicos, e por fim, uma construção de uma moralidade religiosa e ritualística que remonta a tradição autêntica das primeiras comunidades pitagóricas do sul italiano. O segundo escrito relevante foi preservado por Sexto Empírico que relata a importância da matemática para os pitagóricos e no valor que a racionalidade possui para desvendar a natureza numérica que há no real, ora como os pitagóricos creem que o universo é todo numérico, tão somente com o exercício intelectivo da matemática se é possível perscrutar profundamente a natureza. 
    A permanência da produção dos livros pitagóricos perdurou por mais de um milênio, a maioria dessas obras são conteúdos simples misturados de diversas doutrinas, dos primeiros pitagóricos aos estoicos. Apesar da falta de credibilidade que há nessas obras, existem dois fatos importantes que delas resultaram: em primeiro lugar, a influência e a força dos ensinamentos de Pitágoras no período Clássico; em segundo, não menos importante, a elaboração de uma nova fase na tradição pitagórica que se distancia cada vez mais da autêntica. 

 • Capítulo VII: A tradição pitagórica em Roma 
    Pitágoras esteve em pauta sobretudo em Roma com a ascensão do Império. Os primeiros registros da exaltação pitagórica foram no século III a.C. quando uma estátua do fundador da comunidade fora construída no fórum romano. Para além da filosofia, da mística e da matemática, Pitágoras tornou-se objeto dos poetas e parte do folclore popular dos romanos, Ovídio e Ênio introduziram o mestre em suas obras poéticas. Ademais, até mesmo nos tratados de agricultura há influências dos pitagóricos, Catão nomeia uma espécie de repolho como brassica pythagorea. Fato compreensível dado o período histórico vigente de patriotismo em Roma, em busca de um símbolo máximo de sabedoria e virtude, Pitágoras, como fora descrito desde Aristóteles, é italiano e sua comunidade fundada na península itálica. 
    Políticos e intelectuais importantes também possuíam um apreço especial por Pitágoras. Varrão, por exemplo, foi sepultado de acordo com os critérios ritualísticos dos pitagóricos. Cícero, em diversas obras exalta Pitágoras: em sua tradução do Timeu, dedica sua empreitada à Nigídio Fígulo; relata em De Finibus a emoção que vivenciou em Metaponto ao procurar a casa onde Pitágoras falecera; e também nas Disputas Tusculanas afirma que os primeiros republicanos da Itália tinham em sua perspectiva a grandeza de virtude e sabedoria de Pitágoras. 
    Grande divulgador das doutrinas pitagóricas em solo romano foi Nigídio Fígulo, há poucas informações sobre o pitagórico, conhecemos seus feitos principalmente por notas anedóticas, por Cícero e Varrão. Fígulo era conhecido por possuir conhecimentos de diversas regiões do mundo greco-romano dando ênfase, em especial, ao caráter esotérico do pitagorismo. Seus ensinamentos são marcados pela mistura entre mágica e ciência, era um pythagoricus et magus. Não apenas Nigídio Fígulo foi um pitagórico ilustre em Roma, mas também Quinto Sêxtio que possuía um círculo de membros que guardavam rígidos princípios morais. 
    Ambos os filósofos que foram notáveis em Roma por sua doutrina pitagórica, mesclaram os saberes morais platônicos e pitagóricos produzindo uma nova espécie de moralidade que acentuava a importância da consciência ética, a autocrítica e a interioridade como forma de edificação. Após as influências romanas, Pitágoras e os pitagóricos transformaram-se, novamente, em uma nova doutrina.

• Capítulo VIII: Os filósofos neopitagóricos 
    O título de neopitagórico é fruto também de debates sobre o posicionamento de cada historiador da filosofia. Kahn considerará como neopitagórico aqueles que veem a tradição platônica pela ótica de Pitágoras. O primeiro filósofo que se encaixa nos critérios do autor é Eudoro de Alexandria. Trabalhando principalmente na cosmologia do Timeu, Eudoro elabora uma ética derivada da cosmologia platônica desenvolvida pela mesclagem das ideias de Pitágoras e de Platão. Especificamente metafísica e sobrenatural, seus ensinamentos rompem com a Nova Academia retornando aos moldes da primeira escola platônica do século IV a.C. Na mesma linha metafísica com viés pitagórico, também em Alexandria, Fílon utiliza-se das noções platônicas-pitagóricas para elaborar sua exegese bíblica, principalmente em sua numerologia, remodelando os aspectos simbólicos dos números pitagóricos. Posteriormente próximo de 50 a.C. a 50 d.C. outro movimento neopitagórico eclode no Ocidente. Três filósofos do qual sabemos pouca coisa foram responsáveis, apesar de sua obscuridade, de influenciar significativa a doutrina pitagórica: Moderado de Gades, Numênio de Apaméia, e Nicômaco de Gerasa. A principal diferença entre os três com Eudoro e Fílon, é a atribuição das próprias ideias a si mesmo, ao contrário de tributar para Platão ou Pitágoras. 
    Moderado possui uma perspectiva intensamente sóbria sobre as doutrinas de Pitágoras. Para ele, os ensinamentos tradicionais pitagóricas são fáceis de serem compreendidos, todavia, em decorrência da incapacidade dos filósofos em explicarem a numerologia pitagórica substituíram pelas Formas. Moderado, portanto, está alinhado com a tradição que concebe Platão como um plagiador de Pitágoras, uma vez que a própria noção de número para os discípulos da escola pitagórica era entendida já como atributos imateriais da realidade. Outra contribuição significativa do filósofo de Gades é a nova chave hermenêutica do Parmênides de Platão, também para a metafísica neoplatônica acerca da matéria e do Uno, e inclusive para o entendimento gnóstico moral da materialidade da natureza. 
    De maneira similar a Moderado, Nicômaco, seguindo uma linha pitagórica distinta, também possui uma noção lúcida de Pitágoras. Nicômaco dedicou-se na geometria, matemática e música, não foi responsável por inovar estas ciências em seu período, sua contribuição se dá principalmente na sistematização didática de conceitos matemáticos. Sua Introdução à Aritmética transcorrerá o tempo, e será utilizado na Idade Média como material didático para os alunos. A metafísica que Nicômaco irá elaborar sutilmente é consequência da sua teoria da harmonia musical de interpretação dos movimentos celestes, aliás, a própria metafísica, para o filósofo, poderia ser substituída pela aritmética dado que esta é a própria linguagem que o demiurgo se expressa na natureza. Grande parte dos seus escritos se perderam, suas informações que ficaram intactas são de alçada de Jâmblico e Porfírio em utilizar das ideias do neopitagórico como contra-argumento para as incursões cristãs que ocorriam no período. 
    O último neopitagórico que Kahn apresenta é Numênio. As influências do filósofo foram enormes na filosofia ocidental, seus textos eram lidos e debatidos por Plotino e seus discípulos que beberam em larga medida dos seus escritos. Numênio tinha o intuito de buscar a pureza da Academia Antiga e encontrar a essência de todo conhecimento platônico. Sua principal obra, pode-se dizer, é uma interpretação do Timeu, Sobre o Bem, dedica-se em questões cosmológicas reunindo as teorias básicas de Pitágoras com o desenvolvimento exercido nessas ideias por Platão. Sinteticamente, seu modelo cosmológico aproveita a noção unitária do deus dos pitagóricos e platônicos que faz da realidade o melhor possível em decorrência de sua bondade. O Uno é correlato ao Nous que se subdivide na construção da natureza, de modo similar a emanação plotiniana, a alma humana possuí completamente o intelecto divino, o corpo inerente a matéria é mau por estar distinta dos primeiros objetos elaborados pelo demiurgo. Após Numênio, absolutamente todo pitagorismo será aproveitado pelos neoplatônicos. 
    Além destes, Jâmblico e Porfírio exerceram um papel fundamental no destino da tradição pitagórica e neoplatônica posterior. Eles retratam em suas Vidas de Pitágoras o lado mais místico e esotérico do fundador da comunidade pitagórica, reforçando a imagem mítica de Pitágoras como uma forma de contenção do cristianismo que se espalhava em território pagão. Foram também responsáveis por fazer de Pitágoras um santo e um pioneiro da tradição platônica, destacando o valor matemático dos ideais de Platão. Jâmblico, diferentemente da biografia de Porfírio, em seus escritos sobre a doutrina pitagórica, dá ênfase nos aspectos doutrinários, dogmáticos e institucionais do pitagorismo. Platão, nesse ínterim neopitagórico, continuará sendo louvado pelas suas contribuições para a filosofia, porém com o viés neoplatônico de conceber suas doutrinas sem nenhuma distinção entre platonismo e pitagorismo, — ambas as doutrinas se fundem em um só corpo. 

• Capítulo IX: O legado pitagórico 
    O legado da tradição pitagórica para o pensamento do ocidente é de suma importância e divide-se em três principais tópicos: o âmbito sobrenatural, alimentar e matemático. No primeiro aspecto, a sobre-naturalidade do pitagorismo se dá especialmente pela imagem construída, desde a fundação da primeira escola de Pitágoras, que o fundador é um homem-divino, sábio e possuidor de grandes virtudes. No segundo, as influências se dão via a concepção de transmigração das almas e os ensinamentos morais que acarretava o lado místico do saber pitagórico. No terceiro e último legado, a importância da matemática como ferramenta para a compreensão do universo que irá ter suas consequências mais notáveis em Kepler e Newton. A acentuação do lado mítico do pitagorismo se deu no período helenístico e neoplatônico. Com a revivência das ideias de Pitágoras, principalmente em Roma e Alexandria, formaram-se muitos círculos pitagóricos que seguiam a ritualística da escola. O movimento religioso pitagórico foi popular, Ovídio e outros poetas retratam o Pitágoras deificado. Não obstante, fora do ambiente intelectual do pitagorismo, foram notáveis alguns personagens, como Alexandre de Abonuteico e Apolônio de Tianam, que eram considerados “santos” e sábios no conhecimento do oculto. Pitágoras, seus discípulos e ensinamentos nesse período escaparam da elite intelectual romana, se integrando na cultura e no folclore popular. 
    Correlata ao aspecto religioso de Pitágoras, o vegetarianismo que surgiu no primeiro século da Era Comum em Roma é consequência da noção da metempsicose pitagórica. Apesar das divergências que há sobre a origem desse movimento no Império Romano, o crédito fora atribuído pela tradição a Pitágoras. Tanto a noção de “familiaridade” com os seres vivos como a imagem de homem virtuoso, permanecerão intacta até no século XVIII quando Voltaire exalta as doutrinas pitagóricas por possibilitarem uma relação para com o mundo mais bela e sublime. 
    Já no âmbito matemático do pitagorismo, foi onde causou maior influência e também o seu fim. As noções matemáticas e numéricas deixadas pelos pitagóricos chegaram a Idade Média e foram utilizadas por séculos, passando pelos filósofos e cientistas da Renascença que será feita de instrumento para a exegese da Cabala. Para além dos medievais e renascentistas, a principal obra que Pitágoras influenciou foi a Harmonia de Ptolomeu que será de suma importância para as contribuições astronômicas de Kepler no século XVII. Copérnico, como grande parte dos filósofos renascentistas, faz citação a Pitágoras para justificar sua explanação sobre o movimento da Terra. Todavia, tão somente com Kepler que o pitagorismo é evidentemente vivido. Kepler concebe Deus como um sumo-artífice geométrico, influenciado pelo Timeu, que pode ser descoberto pelas relações matemáticas que há nos fenômenos. Kepler, segundo Kahn, só conseguiu dar continuidade aos trabalhos de Tycho Brache por ter o ímpeto pitagórico de desvendar a natureza pela ótica geométrica. Com os trabalhos do astrônomo o pitagorismo chega ao fim, do século XVII em diante, o cientista ser pitagórico só pode ser considerado metaforicamente. 

                                    




• REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 KAHN, Charles H. Pitágoras e os pitagóricos: uma breve história. São Paulo: Editora Loyola, 2007

A CONSCIENTIZAÇÃO ACERCA DA AIDS NA UGANDA: PSICOEDUCAÇÃO.

        O sul da África desde meados da década de 70 vem sofrendo com uma grave epidemia do vírus do HIV. Em 2003 tem-se em média que aproximadamente 2,4 milhões de pessoas tenham falecido em decorrência da AIDS e cerca 30 milhões estão com o vírus ativo em seu organismo na região subsaariana do continente. Longe de ser tão somente uma questão de saúde de pública, a disseminação da enfermidade abalou toda infraestrutura sociopolítica agravando de modo contumaz as dificuldades já preexistentes dos países africanos. 

        Na região central da África, em Uganda, as taxas relacionadas ao vírus do HIV vêm diminuindo drasticamente proporcionando um exemplo profícuo frente as crises geradas por doenças sexualmente transmissíveis; com políticas públicas de conscientização, mudanças de comportamentos interpessoais, tratando a epidemia sem critérios morais pré-concebidos, o país, nas palavras do ex-epistemologista da Organização Mundial da Saúde, Rand Stoneburner, tomou uma “vacina social” mais eficaz e acessível financeiramente que os métodos de combate ao HIV empregados em outras regiões do globo tal como o uso de preservativos e fármacos que impedem o desenvolvimento da patologia no corpo humano — ademais, é válido destacar que a facilidade de acesso a preservativos se mostrou ineficaz frente a sistemática educativa (Botsuana e Zimbábue, mesmo com a disponibilidade de camisinhas, continuam com uma taxa elevada de pessoas com HIV positivo). 

        O ponto de virada na grave relação com a AIDS na Uganda sucedeu após o presidente Yoweri Museveni assumiu o cargo estatal. Com um país devastado por ditaduras, conflitos internos, doenças infecciosas, Museveni começou uma larga campanha de combate à disseminação do HIV com três critérios preventivos basilares: castidade, observância e zelo matrimonial, e preservativos. Ainda que com pouco apoio de instituições humanitárias do ocidente que estimulavam o uso de preservativos, amplas entidades da sociedade uganlandesa se mobilizaram com o governo e com a Comissão de Aids de Uganda afim de proporcionar uma conscientização salutar acerca da problemática e da intimidade sexual da população. 

        O resultado da conscientização: no final do século passado e início dos anos 2000 a epidemia já estava excepcionalmente controlada no país africano com altos índices de indivíduos se abstendo de relações sexuais fora do casamento, com casais fiéis aos seus respectivos companheiros, com redes de informação sobre a AIDS em todo território, concomitantemente, com facilidade de obtenção de preservativos por parte do grupo de risco (meretrizes e pessoas que trabalham de forma ativa com o sexo), e de igual importância, o índice de contaminação radicalmente atenuado em dois terços. 

        Dentre todas as medidas adotadas, na antiga capital da Uganda também fora estabelecido por voluntários uma rede apoio para pessoas que testam positivo para o HIV, a Organização de Apoio à Aids visa enfrentar os preconceitos ligados a enfermidade e proporcionar um auxílio adequado para os indivíduos infectados; igualmente, com o intuito de prevenir a epidemia à longo prazo, desde o início dos estudos as crianças são instruídas sobre questões acerca da sexualidade e dos riscos de possuir uma vida sexual ativa fora do matrimônio ou relações vulneráveis às DSTs. 

        Não obstante, apesar de todo progresso que o país conquistou da década de 80 para o início do século XXI Uganda ainda sofre com as consequências da crise de saúde pública ocasionada pela Aids, por exemplo, com um número significativo de órfãos, filhos de pais vitimados pela enfermidade, e com uma taxa elevada de contaminação comparada aos países europeus.  

        Com efeito, de acordo com os dados levantados pelo Programa de Aids da ONU, nos países adjacentes a situação epidêmica é ainda mais alarmante com índices elevadíssimos de pessoas com o vírus ativo do HIV. O presidente Museveni deduz que a negligência perante a AIDS se origina pelo tabu existente sobre a sexualidade em regiões mais conservadoras da África; tal como no Quênia, onde em decorrência da contrariedade popular e estatal diante dos métodos de combate a AIDS, o governo só declarou estado de emergência quando a propagação do vírus já havia gerado consequências substanciais, estima-se que acerca de 700 pessoas faleciam diariamente resultante da doença em 1999. Todavia, com a chegada ao governo em 2002, o presidente queniano Mwai Kibai, o combate e prevenção à AIDS tomou uma proporção significativa com centros médicos e educativos para a popular. Seguindo o exemplo de Uganda, Quênia e Zâmbia, vêm se desenvolvendo principalmente entre os jovens através das mudanças de atitudes funcionais e preventivas em relação ao sexo.



 

AS NOÇÕES COMUNS DE MIMESE EM PLATÃO E ARISTÓTELES

        O conceito de mimese é parte do vocabulário ocidental desde os primeiros expoentes da literatura grega como Homero e Hesíodo, alcançando seu desenvolvimento sobretudo no decorrer de toda a história da filosofia: da primeira Ilustração grega aos critérios estéticos de Adorno no século XX. Ainda que outros filósofos pré-socráticos já houvessem utilizado do termo em seus pensamentos, tão-somente com Platão e Aristóteles, séculos mais tarde, a noção de mimese será incorporada e aprofundada em suas obras iniciando a teoria da arte na filosofia ocidental. 

        Não obstante, apesar de tradicionalmente atribuído ao livro décimo da República de Platão e na Poética de Aristóteles, o conceito possui significações distintas em outras obras dos filósofos demonstrando a importância e versatilidade da palavra no repertório filosófico grego no decorrer do período socrático. Desde os diálogos platônicos de juventude até os tardios a mimese é inserida, e na filosofia aristotélica, o conceito é aplicado em múltiplas maneiras tanto nos fundamentos físicos quanto biológicos. A despeito da multiplicidade que a mimese foi desenvolvida em Platão e em Aristóteles, é sobretudo no âmbito da estética e da arte que será majoritariamente atuante em seus pensamentos e influente na tradição filosófica posterior. 

        Para uma compreensão segura sobre a noção de mimese em Platão é preciso, antes de tudo, pormenorizar a epistemologia presente em seu pensamento. De acordo com o discípulo de Sócrates, não há ciência sem o uso da dialética. A ascensão dialética é a base de seu dualismo e de seu entendimento sobre o que é o conhecimento verdadeiro. O filósofo, influenciado pelos pensadores eleatas, identificara uma clara distinção entre o permanente e o transitório, afirmando a superioridade do primeiro em relação ao segundo. De acordo com seu dualismo, Platão compreendia o mundo fenomênico como uma cópia imperfeita do mundo suprassensível, e uma vez que os objetos materiais estão sujeitos ao devir, por si só não possui nenhum valor científico. 

        Para compreender o que Platão concebe como conhecimento verdadeiro, é imprescindível ter o entendimento de como ocorre a ascensão dialética e a divisão que o mesmo faz sobre a realidade empírica e inteligível. O fundador da primeira Academia grega acreditava ser essencial constatar a superioridade às Ideias sobre os objetos sensíveis justamente pelo fato que a sensibilidade está em constante mudança, enquanto as Ideias, habitantes do mundo suprassensível, permaneceriam imutáveis e, portanto, esta deveria ser o objeto de uma investigação segura, sem estar correndo o risco que deixar cair-se no engano ocasionado pelas sensações. 

        A alegoria da caverna, retratada na República, representa as etapas do processo dialético rumo ao conhecimento verdadeiro. Como já foi dito, Platão distingue dois tipos de saberes, o sensível e o inteligível, que se subdividem: nas sombras, aparência sensível dos objetos; nas marionetes, representação própria dos objetos empíricos; no muro, limiar que separa os dois tipos de conhecimento; no exterior da caverna, realidade das ideias em si; por fim, no sol, suprema ideia do Bem e da Verdade. Platão, através da narrativa do mito da caverna, demonstra que as coisas do mundo sensível são apenas ilusões, e que para contemplar as Ideias só é possível através da reflexão, do raciocínio, do pensamento. Em suma, Platão demonstra a passagem do conhecimento meramente opinativo (dóxa) para o conhecimento real e verdadeiro (epistéme) que só seria alcançado mediante a dialética que engloba tanto o saber matemático quanto o filosófico. 

        Visto isso, intimamente conexa com a epistemologia e metafísica de Platão, a mimese no livro X da República é submetida a critérios gnosiológicos que atestam sua invalidade como modelo de conhecimento, levando, consequentemente, ao campo da ética e sua rejeição. É válido destacar que a discussão acerca da mimese como imitação é posterior à alegoria da caverna, reforçando a construção da teoria do conhecimento platônica e suas implicações na vida política. 

        A arte, como imitação, é concebida por um viés negativo por Platão: é inferior ao saber filosófico, embrutece o homem suscitando paixões baixas, e principalmente, afasta o indivíduo cada vez mais do Sumo Bem, ou na terminologia alegórica exposta no mito da caverna do livro VII da República, mantém o indivíduo entretido em seus grilhões. Cópia do mundo sensível, a arte é a falsificação da falsidade e deve ser proibida na utopia platônica. Em todas suas manifestações, a arte é a imitação dos fenômenos que são imperfeitos em si. Portanto, a mimese compreendida como imitação da natureza e, por conseguinte, das aparências, é algo que deve ser afastado dos indivíduos que visam a contemplação da verdade e a ordenação de sua alma com o auxílio da racionalidade. 

        Diferentemente de seu mestre, Aristóteles não concebe a mimese de modo negativo ou que afasta o homem da verdade. A imitação possui para o Estagirita uma significação dupla: em primeiro lugar, o aspecto ativo que representa uma ação ou uma atitude; em segundo, o retratado verdadeiro e universal da natureza. A arte recria a natureza, o homem, concebido como ente natural, é mimetizador em todos seus atos, e o artista aquele que vai considerar, nas possibilidades das possibilidades, o universal. 

        Desse modo, a poesia e a mimese poética, é um saber mais profundamente filosófico do que a história narrada pelos historiadores; enquanto o primeiro retrata a natureza e o gênero humano em seu modo atemporal e essencial, o historiador descreve fatos particulares restritos a um só tempo e acontecimento. Aristóteles, portanto, não compreende a mimese como algo falso e cópia imperfeita da cópia do mundo suprassensível, mas a entende como a imitação de um processo real uma vez que escapa a causa material e capta a formalidade do objeto. A própria natureza, de acordo com o fundador do Liceu, é artística por imitar um princípio teleológico interno, enquanto o ser humano, como causa eficiente dos processos poéticos mimetiza pela exterioridade. A arte, ao contrário de Platão, é indutiva: parte do particular para o universal, abrindo um caminho para a realidade que subjaz na sensibilidade do mundo. 

        O poeta, ao imitar a natureza em suas possibilidades, descreve algo que pode ser verossímil na realidade possibilitando conhecer tanto a realidade quanto as aptidões intelectivas próprias da alma racional. Além do mais, para Aristóteles, a poesia mediante a mimese é própria do ser humano, um modo que possibilita a obtenção de conhecimento estimulando o indivíduo a buscar os critérios universais do real. Em síntese, é possível traçar diversos contrates entre as noções comuns de Platão e Aristóteles, sendo as principais respectivamente: para o ateniense a mimese é falsa e embrutece o ser humano; para o estagirita a mimese demonstra o real em sua universalidade e engrandece o homem ao impulsioná-lo à saber.




A DIFERENÇA ENTRE A ÉTICA TELEOLÓGICA, DEONTOLÓGICA E UTILITARISTA

        As éticas teleológicas, deontológicas e utilitaristas são três abordagens distintas na filosofia moral, diferindo em suas bases teóricas e critérios para determinar a moralidade de uma ação. Cada uma das quais compreendendo uma hierarquia de valores distintos dependendo da abordagem filosófica que a ética é tratada. De forma sintética, é possível definir em três conceitos principais chaves para ambas: Na perspectiva teleológica, que possui um fim último, é a felicidade; na ética deontológica, imanente a toda ação virtuosa, o dever; no viés utilitarista, com o auxílio da razão pragmática, a ação útil a si e a coletividade. As diferenças mais notáveis entre as éticas são intrinsecamente ligadas com a própria conceituação de seu repertório teórico, portanto, cabe explicá-las para demarcar as principais diferenças essas abordagens em discussão:

        Ética Teleológica (consequencialismo): As éticas teleológicas, também conhecidas como consequencialistas, concentram-se nas consequências ou nos fins últimos de uma ação para determinar sua moralidade. O termo "teleológico" deriva da palavra grega "telos", que significa "fim" ou "objetivo". Nessas noções éticas, o valor moral de uma ação é determinado com base em seus resultados ou consequências. O foco principal está em maximizar o bem-estar, a felicidade, a satisfação ou algum outro objetivo final desejado. Exemplos de éticas teleológicas incluem Aristóteles e Tomás de Aquino como autores que discorrem nessa perspectiva. Para o Estagirita, o telos de todas as ações é a felicidade, enquanto para o Aquinate, na mesma linha que Aristóteles, a teleologia da ética é a bem-aventurança de estar em comunhão com Deus.

        Ética Deontológica: As éticas deontológicas, em contraste com as teleológicas, concentram-se nos deveres, obrigações e princípios morais inerentes à própria ação, independentemente de suas consequências. A palavra "deontologia" tem origem no grego "deon", que significa "dever". De acordo com a ética deontológica, algumas ações são moralmente corretas ou incorretas por natureza, independentemente das consequências que possam surgir. Exemplos de éticas deontológicas incluem a ética kantiana, que se baseia no princípio do Imperativo Categórico, e a ética dos direitos, que se concentra no respeito aos direitos individuais. O dever, ao contrário do fim, é o demarcador da ação moral e imanente à nervura do real.

        Ética Utilitarista: O utilitarismo é uma forma específica de ética teleológica cujo norte direcionador é o princípio da utilidade, também conhecido como princípio do maior bem-estar. O utilitarismo enfatiza a maximização da felicidade, do bem-estar ou do prazer como critério para determinar a moralidade de uma ação tanto relacionada aos aspectos do indivíduo quanto ao corpo político em sua integralidade. Ele avalia as ações com base em seu impacto nas consequências globais, buscando produzir a maior quantidade de felicidade (que é sinônimo de prazer) ou bem-estar para o maior número de pessoas possível mediante a utilidade de determinada ação. Em resumo, as éticas teleológicas concentram-se nas consequências de uma ação para determinar sua moralidade; enquanto as éticas deontológicas enfatizam os deveres e princípios morais inerentes à própria ação, independentemente das consequências; já a ética utilitária é estruturada, diferente da teleológica em si e da deontológica, pelo prazer consequente de um ato, ou seja, a retidão de uma ação depende exclusivamente da bondade final que esta acarreta independentemente dos meios que levam ao prazer final. 





UMA INTERPRETAÇÃO HEIDEGGERIANA DA EXISTÊNCIA HUMANA NA MÚSICA CONSTRUÇÃO DE CHICO BUARQUE

        A construção é parte da civilização humana, talvez, seu aspecto mais significativo. Escapando tão somente a exterioridade de suas manifestações, como é o conteúdo aparente na música em análise do Chico Buarque. Em sua etimologia latina, construir provém de construire designando o edificar, levantar. O homem constrói a realidade em seu entorno: edificando sistemas abstratos tanto filosóficos quanto artísticos; levantando monumentos arquitetônicos e manifestando a grandeza em sua complexidade sociocultural do ser humano no decorrer da história. Construir é próprio do ser humano em sua capacidade de transformar a natureza. 

        Refletida por Heidegger em Ser e Tempo, a existência é construída visto que a sua condição finita no mundo, intrínseca a sua essência, constitui parte de uma dimensão ontológica do ser humano: a realidade, sua existência não lhe são dadas de antemão em um plano imutável, mas estão por serem edificadas movidas pela tensão contraditória entre existir e não-existir. A despeito da existência humana não lhe ser dada em todas suas dimensões, o Ser, que se manifesta no Dasein, é histórico, isto é, o homem é lançado no mundo em determinados contextos que forjam a significação existencial que lhe buscada para lidar com a angústia da própria temporalidade finita. A consciência da própria morte impulsiona a dispor de uma autenticidade do viver, ou, na terminologia de Espinosa, faz que o homem exista em ato. Essa autenticidade da existência, para Heidegger, é construída. O pensamento é uma construção, e pensar é construir. 

        Não apenas a existência e a própria construção é debatida nos círculos filosóficos, Chico Buarque elabora uma música na qual retrata a condição de um operário que perpassa os dias de sua existência de modo automático sob uma condição inautêntica de viver. Sob uma proposta hermenêutica diferente, Chico com seu Dasein, em um período histórico formado pelas condições precárias do trabalhador, em plena ditadura militar, concebe a alienação tanto do construtor civil quanto das pessoas que consideram belo e sublime a condição automatizada da exploração da mão de obra proletária. 

        Inautenticidade, nos termos de Heidegger, é a palavra-chave para caracterizar a condição retratada na música. Viver autenticamente é existir se lançando para o futuro, buscando através das condições históricas o sentido de uma vida plena de significado, fazendo de seus atos expressões do Ser que se manifesta no mundo. Ora, um operário que vive por meio de condições que impedem a capacidade de reflexão de pensar, ou seja, construir, transcorre sua existência sem que encontre uma autenticidade própria do seu ser-no-mundo. A própria existência, a autenticidade que é essencial para a realização do ser humano, se torna objeto nas condições de trabalho capitalista: o homem, na concepção de alienação exposta no O Capital de Marx, transforma-se na própria mercadoria que produz. Segue-se que, sendo a autenticidade inerentemente humana, e o homem feito mercadoria pela condição alienante do trabalho, resplandece em cada ato automatizado do homem-máquina a inautenticidade do seu viver.




A DIFERENÇA CONCEITUAL ENTRE ÉTICA E MORAL

    O homem é um ser político, concebido seja com viés naturalista ou contratualista, a moral necessariamente emerge frente aos costumes sociais visando ao bem-estar coletivo. Intrínseca a todo corpo social, a moralidade abrange códigos, princípios e valores que ganham consistência mediante a relação individual e pública do agir. Para esta não há um fundador específico há quem possa se atribuir a constituição moral de um povo. Ela é anônima, formada por inúmeros indivíduos que seguindo as tradições e inovações conceberam um modo do bem-agir em determinado espaço e tempo próprio, são conceitos ambientais próprios e sujeitos a ação do tempo, exemplificando: uma ação que seria considerada bela e sublime na moral tradicional patriarcal, aplicada na contemporaneidade, com novos princípios e valores, estaria inadequada e injusta. 

    Fruto da racionalidade filosófica, a ética se distingue da moral em decorrência de seu caráter sistemático e reflexivo — ou seja, enquanto a moralidade ela surge pela experiência do viver, a ética, pelo contrário, nasce do pensar sobre a moral. Outra diferença contumaz entre ambas as áreas do pensamento humano é seu aspecto “autoral”, é possível atribuir um autor para dada reflexão sobre o tema, no decorrer da história da filosofia, por exemplo, inúmeros pensadores se dedicaram a repensar a ética proporcionando ferramentas para fazer uma análise ética da sociedade: pode-se fazer um discernimento ético se utilizando de Aristóteles, Espinosa ou Kant, enquanto no âmbito da moral, tal discernimento é inválido dado seu caráter temporal e subjetivo de alguma localidade, isto é, não se pode utilizar dos preceitos morais do êxodo do povo hebreu para se fazer um juízo da moralidade norte-americana do século XXI.

    Ela teoriza a respeito do bem-agir humano com o fim de dar respostas consistentes acerca do bem problematizando e superando os limites da moral vigente em determinado contexto, construindo códigos de normas, princípios e valores. Não obstante, a ética também abrange múltiplas áreas do viver humano, tanto no âmbito profissional quanto nos debates bioéticos. A reflexão de cunho ético se torna estritamente necessária para uma possível revisão dos valores presentes na moral; como a moral está sujeita às mudanças do tempo, conforme já explicitado, elas podem se tornar antiquadas e maléficas para o convívio dos indivíduos.




HERMENÊUTICA EM SCHLEIERMACHER : LINGUAGEM, TALENTO, CÍRCULO E MÉTODO HERMENÊUTICO

        Para Schleiermacher hermenêutica é um processo artístico de compressão e interpretação de textos. Mesmo sendo uma arte de compreender, para uma interpretação válida dos escritos é preciso certos aspectos mecânicos não fechados em si mesmos para a compreensão dos textos. O composto básico e constituinte de toda hermenêutica é a linguagem que, para nosso autor, comunica e é infinita em suas possibilidades de manifestação. Todavia, é válido destacar que diferentemente da retórica que também se utiliza da linguagem, a hermenêutica tem seu fim último em desvendar os pensamentos do orador no qual ela se dedica.   

        Tendo em vista que o telos hermenêutico é uma clarificação do uso da linguagem do orador em seus escritos, uma arte que se consuma na interpretação gramatical, Schleiermacher considera que é necessário possuir um talento para com a linguagem e de conhecimentos dos indivíduos, e também experiência que o sujeito, que se dedica a interpretar um texto, deve dispor. Não obstante, é preciso ter um conhecimento suficiente do “círculo hermenêutico” aparente que o autor interpretado está inserido e pode ser pormenorizado sabendo: seu idioma original, o ambiente intelectual de sua época, dentre outros aspectos que o influenciaram a fechar um ciclo de pensamento que se expressa mediante o uso da linguagem. 

        Ademais, para Schleiermacher, o processo de hermenêutica está ligada a passos interligados para uma possível elucidação do texto, seguida da interpretação gramatical e técnica, há a psicológica que serve de auxílio para a compreensão dos textos através de uma perspectiva totalizante da vida do autor que há de ser interpretado. Dentre outros componentes essenciais para esta forma de interpretação, Schleiermacher elenca duas fundamentais: o método comparativo e divinatório. Respectivamente, o comparativo coloca o autor interpretado, com sua individualidade descoberta diante de outros contemporâneos seus que debatiam acerca do mesmo tema, se expressavam com o mesmo gênero de escrita, possibilitando conhecer tanto a identidade quanto a alteridade do autor em seu meio. Já o método divinatório, corresponde à um processo de abstração por parte do hermeneuta que se coloca no lugar do autor trabalhado e, ao tentativas e erros, se transformar e tentar entender a individualidade do sujeito diretamente.  

        Em síntese, o interpréte precisa utilizar todos os passos e meios de interpretação para elaborar sua arte de compreensão de forma bela e sublime. A hermenêutica não fechada em si mesma, nem suas regras e técnicas, mas é um modo no qual o autor deixa de fazer parte de um determinado contexto sócio-histórico para entrar em um diálogo com o seu leitor que elucida de modo sistemático seus pensamentos para além de tão somente o manejo e entendimento da linguagem do autor. Nesse sentido, a hermenêutica exige puramente de talento da linguagem e de empatia para entender outros indivíduos.




POSICIONAMENTOS TEÍSTAS E HUMANISTAS ATEUS DIANTE DO PROBLEMA DO MAL

  •  O teísmo e as reações diante do mal: 
        A reflexão do mal perpassa o tempo e suas alternâncias. No mundo secularizado a questão toma proporções magnas e distintas mediante os entendimentos teístas e humanistas ateístas próprios da passagem do período moderno ao contemporâneo. As reflexões acerca da problemática do mal, do silêncio e do desamparo de Deus ultrapassam os domínios teológicos-filosóficos e resplandecem em outras diversas manifestações culturais. Após os movimentos históricos do início do século XIX à contemporaneidade, o sentido da existência humana tornou-se objeto de reflexão diante do mal que atinge proporções industriais e globalizadas. A questão do mal direcionou-se para o enfrentamento ético, político e religioso. O ato de refletir sobre o escândalo da maldade que assola a humanidade, mesmo de modo secularizado, é o pensar acerca do projeto soteriológico próprio das tradições religiosas de natureza judaico-cristã.  

        Objeto tradicionalmente debatido em critérios metafísicos, o mal no período moderno-contemporâneo é visto por meio da nervura do real imanente que o homem se depara: Da condição desumana dos assalariados nas indústrias europeias, à morte de Deus anunciada por Nietzsche, o fracasso da utópica razão esclarecida dos Iluministas, a vulgarização do sofrimento nos campos de batalha e de concentração das duas grandes guerras, a ascensão sistemas políticos totalitários, dentre outros demais males que fizeram o homem, em um ato de contestação, protestar diante do silêncio de Deus. Dito de outro modo, todo projeto filosófico-social sonhado por pensadores do século XVII ao XIX falharam, o ser humano defronte aos impasses recém-adquiridos em sua trajetória se dispõe a resolvê-los por outro caminho. 

        Dostoiévski no romance Os Irmãos Karamazov anuncia e retrata a condição do homem moderno na presença do mal. O autor suspende o juízo perante a moral e dos valores transcendentes que tanto a tradição religiosa quanto a filosófica sustentou e construiu o mundo ocidental. O homem deixando de contemplar os céus, percebe a fragilidade e as consequências da sustentação metafísica do agir. Não obstante, apesar da dúvida da presença de Deus na história da humanidade, o escritor russo afirma que sua existência é necessária como impedimento para plena liberdade da moral, isto é, os resultados do livre agir humano que afirmam sua capacidade para a maldade levam, fatalmente, à afirmação de Deus. Para mais disto, a existência do Ente Absolutíssimo construído pelas religiões é fundamental para a própria noção de humanidade e a liberdade das ações, sua existência permite, de modo universal, a distinção entre o bem e o mal moral tornando os humanos verdadeiramente humanos.  

        Sintetizadas nas palavras de Ivan Karamazov, Dostoiévski aponta para a incompatibilidade do mal, da vítima inocente e do agente do mal. A criação é corrompida pelo sofrimento, pela injustiça, e provoca o autor, a revolta própria dos homens em face de um Deus bondoso e onisciente é a contradição existente para a dureza do existir empírico diante a sublimidade dos dogmas religiosos. Por consequência essa aporia já debatida por Lucrécio, o escritor, tal como Jó, contesta a criação e o projeto redentor do Cristo. A fé, nesse sentido, deixa de ser objeto de racionalização e adquire uma postura existencial frente às dores do mundo.  

        Propondo dar uma solução válida aos novos modos de lidar com o mal, por um trajeto filosófico, Horkheimer por vias diferentes se dispõe a responder à problemática através das influências que recebeu em sua formação filosófica. Em consonância com Schopenhauer, o fundador da teoria crítica reafirma os movimentos absurdos da história e dos sistemas teleológicos dos idealistas metafísicos, de Hegel e Marx. O sofrimento escapa a qualquer possível sistematização racional, é ilógico, é irremediável e irreversível uma vez que a experiência do mal já fora consumada. Sem qualquer sentido que dê um caminho ou a justifique os movimentos históricos, a concepção de vir-a-ser na história é concebida como mitologia e vã filosofia. 

        De modo semelhante Walter Benjamin compreendia a história como uma grande retenção acumulativa de experiências trágicas e absurdas, o que acaba por levar a uma re-teologia escatológica contra a falácia do progresso humano. O integrante da Escola de Frankfurt em suas Teses sobre a filosofia da história, discorre sobre sua concepção de história que caminha rumo à uma teodiceia: não há resolução acabada nos processos de sofrimento humano, é incompleto e não existe ponto final nas consequências do mal já cometido, a história continua e o homem carrega o fardo de seus próprios erros. 

        Fruto do desencantamento do mundo anunciado com Weber, Horkheimer afirma que os trajetos que a sociedade dirigida e do cogito esclarecido encaminha-se para um período de incivilidade, fazendo de todos os meios e manifestações humanas instrumentos de exploração e opressão. Além de que o modus operandi positivista de conceber o real, para o filósofo, pouco a pouco vai destruindo todas as tradições utópicas, éticas e estritamente humanas, dito doutro modo, o homem deixa de sonhar por um mundo melhor. À medida que o pensamento cientificista cresce e se consolida na sociedade, progressivamente diminui e se enfraquece o alcance dos valores morais. Visto isso, a religião deve assumir uma postura distinta na sociedade capitalista, é preciso que os preceitos divinos deixem de ser objetos especulativos e se tornem imanentes, práxis vividas das leis divinas. 

        A religiosidade torna possível o engajamento e enfrentamento do mal com a esperança para um futuro mais sublime, ou seja, a religiosidade pode ser uma prática vinculada com as boas obras de justiça. Na sociedade administrada, para a fé e teologia, não é conveniente prender-se em especulações acerca da natureza divina e suas problemáticas metafísicas adjacentes. Além de que a teologia se dedicando exclusivamente aos critérios transcendentes da fé torna-se uma ciência com uma postura positivista ao ter como objeto de investigação a revelação e os argumentos lógicos-racionais para construir seu repertório dogmático e racionalista por negligenciar o aspecto pragmático da vivência religiosa. Desse modo, diferentemente do que Kant estipulava, Deus não é tão somente regulador da consciência humana, mas principalmente, para Horkheimer, estopim para o bem-agir em sociedade. 

        Dentro do cenário histórico político-social do século XX, a desesperança que afligia o mundo ocidental levou Horkheimer se afastar de correntes filosóficas que predispunham algum projeto messiânico, seja de cunho intelectual ou social, fazendo que o pensador teórico-crítico refletisse também sob a influência que recebeu de alguns conceitos religiosos e teológicos. Por conseguinte, seu posicionamento de engajamento da fé como fomentador de esperança na luta contra o mal o torna mais próximo de Dostoiévski que de Kant ou de outros filósofos que marcaram sua trajetória intelectual, inclusive do seu próprio círculo de pensador. Horkheimer, nesse sentido, é uma anomalia.  

        Ausente de lógica e incoerente em si, a história é o agente que faz o indivíduo dar um salto de fé no âmago do sagrado e, de modo contraditório, é o que impede a afirmação do Deus presente nos passos que a humanidade traça no tempo. Horkheimer, como já mencionado, se afasta de influências que prezam por um mundo melhor utópico, o filósofo movido pela máxima cristã de amor com o próximo e com a com-paixão schopenhauriana, considera que por meio destas últimas é possível manter viva a esperança e a chama transformadora do real sem cair no desespero diante da irracionalidade imanente à história. 

        Ainda que Horkheimer rejeite quaisquer tentativas de racionalização da fé especulativa ou de teodiceia, o mesmo não tende para o ateísmo pela insuficiência da razão em construir um pensamento válido que concilie a questão do mal, da bondade e existência de Deus. Sendo os homens incapazes de dizer algo que dê sentido para o mal no mundo, cabe, portanto, viver uma moral que seja harmonizável com os critérios divinos já cristalizados pela tradição teológico-filosófica. Logo, com a impossibilidade de discursar coerentemente acerca das questões divinas e profanas do mal e suas questões seguintes, levar uma existência pautada no amor, na justiça e caridade se torna uma orientação válida para resistir às investidas da maldade no percurso histórico. Horkheimer, consequentemente, em uma posição teísta esclarece um dos questionamentos emergentes de sua época, o mal moral. 

  • O humanismo ateu e o problema do mal:
        O mal é algo que transcende aos questionamentos teístas ou religiosos, a discussão sobre como lidar com sua existência percorre inclusive entre os pensamentos ateus mobilizando uma ética solidária. De acordo com Lévinas, o desamparo de um Ente Absolutíssimo pessoal impulsiona o humanismo ateu em direção a solidariedade. Como não há quem possa salvar os homens de si e dos males inerentes a sua natureza, compete aos próprios indivíduos tornarem do mundo um local mais humano e justo. A concepção ateísta do mal parte da própria imanente da tragicidade da história subjetiva e universal dos indivíduos. Essa proposta é a perspectiva prática de motivação para o problema do mal inescapável da existência.         No âmbito filosófico-literário Camus em seu romance trágico, A Peste, vai mais à frente de Horkheimer discorrendo, para além do mal moral, a dimensão física do sofrimento e da dor. Para o franco-argelino, as explicações cristãs fracassaram em decorrência do silêncio de Deus para com o sofrimento de inocentes. Não se pode crer em um Deus que se oculta em neblinas de vagas promessas enquanto sua criação chora as dores do mundo. A falta de justificativa para a experiência da dor é o sumo-obstáculo que impede a afirmação do divino na qualidade de Ente de Amor e Bondade, deste modo, o próprio Deus se torna inviável dada as vivências do mundo. Não há bem-aventurança alguma que amenize a inaceitabilidade do mal físico e moral.         Em seu ensaio filosófico O homem revoltado, Camus compreende a história mediante uma hermenêutica antropocêntrica atéia, para o autor o encadeamento de ações humanas são uma revolta que escapa a universalidade da metafísica. A nervura do real separada pela absoluta transcendência do divino possibilita que os homens se revoltem para com seu Criador. Apesar dos protestos dos homens, visto que no decorrer da história Deus se manteve passivo frente as tragédias que sucediam no mundo é vão implorar algum socorro ou pedir auxílio à racionalidade para encontrar uma ordem justificável para os atos humanos. Todavia, mesmo acreditando no total desamparo que os homens se encontram e na ausência de valores imutáveis, Camus reconhece a necessidade de Deus para que os indivíduos moderem seus atos e o mundo não se torne um local ainda mais árduo para vida.         Na não-existência de um Ente Absoluto não há critérios para se definir a santidade ou pecaminosidade. O mal está no mundo e sempre vence, não há condenação para o injusto e salvação para o justo devoto, isto é, a injustiça vence. Logo, como não há um centro moral metafísico para a determinação das ações humanas, o homem deve assumir o local de Deus e corrigir a história na luta contra o mal, mesmo com a certeza de que o sofrimento inevitavelmente há de vencer. Ora, o próprio esforço solidário para lutar contra as injustiças e as maldades que sucedem no itinerário humano é a demonstração da grandeza e sublimidade que o homem contém em si. Em oposição à problemática da natureza do mal, o engajamento para sua contenção não deve ser entendido nos moldes kantianos de moral, por imperativo categórico, mas, sim, dada a fragilidade dos homens, por intervenção a compaixão e ternura para com os indivíduos que sofrem.         Camus, mesmo se autoproclamando ateu, reconhece a necessidade da religião tanto para com os indivíduos como na luta contra o mal. A objeção camusiana para com a fé, em uma linha de pensamento já advertida por Marx nas Teses sobre Feuerbach, é para a tendência de algumas vertentes religiosas estimularem a passividade diante da dor, ou seja, a crença de uma esperança anestesiadora para com o sofrimento sem as devidas ações necessárias para o desenvolvimento de uma existência coletiva mais justa. Infiel ou fiel aos dogmas de fé, o homem bom e justo que enfrenta o mal é melhor do que Deus que se mantém indiferente aos clamores desiludidos dos homens. Por essa discrepância existente entre a solidariedade humana e a benevolência de Deus, é incompreensível qualquer tentativa de fundamentar ou de conciliar ambas as posições em um mesmo corpo teórico. É ineficaz e absurda, portanto, toda justificativa de conciliação, filosófica ou mitológica, com base nas premissas das religiões de natureza judaico-cristã, — o homem enquanto pecador e mal por natureza, e, Deus essencialmente perfeitíssimo e modelo universal de virtude.         Ainda que as pretensões religiosas sejam belas e sublimes, o mal derrota toda esperança soteriológica. Exemplificado na figura do médico contra a peste, ainda que o sofrimento se faça inescapável, é preciso lutar até as últimas consequências contra o mal. O ato de revolta dos homens diante do absurdo do real e de seus esforços inúteis por uma realidade melhor, longe de desaguar em um niilismo defronte as adversidades, é o estopim para o ser humano eleve sua potência capacidade de amar e estimar a vida, só existe esta única possibilidade uma vez que os indivíduos estão sozinhos e têm tão somente a si mesmos para lidar com o mal em sua amplitude. Os homens estão sozinhos na indiferença de Deus e do universo, desta maneira, é preciso que acolher verdadeiramente o absurdo e ser otimista quanto a própria humanidade.         Com o espírito próprio da filosofia continental da metade do século XX, Camus está inserido no desencantamento dos mitos de progresso, da religião e do projeto emancipador do Iluminismo. Em uma perspectiva diferente, o autor se assemelha aos ideais de Horkheimer ao propor um humanismo solidário no enfrentamento do mal, ainda que não pretenda que a religiosidade seja o condutor principal para solidariedade neste campo de batalha. Sem fé no destino humano, em um Deus que salva e com a esperança nas boas ações humanas, Camus, de determinado modo, chega no cerne da tradição cristã, embora seu pensamento, fundamentalmente, não seja religioso.         O filósofo em seus ideais sobre o problema do mal representa grande parte dos humanistas-ateus estabelecendo que, mesmo sem o cultivo dos critérios próprios da fé e com o alicerce no próprio absurdo da existência, é possível o enfrentamento da dor e do sofrimento mediante a solidariedade e compaixão. No O homem revoltado, o pensador reconhece os méritos do cristianismo ao tentar superar a maldade e a morte na figura do Deus fragilizado no alto da cruz, ainda que a religião tenha fracassado em reconstruir a história por meio do sacrifício compassivo de Jesus. Camus compreende que a fé no Deus crucificado é própria do homem revoltado que não se conforma com o absurdo da finitude e da injustiça. A despeito da excelência do ato penitencial do Cristo e do homem solidário que enfrenta o mal através do silêncio de Deus, Camus não propõe uma solução para o problema do mal, todavia, desperta os homens para com um otimismo consigo mesmo em uma possível construção de um mundo melhor.         No itinerário da questão acerca do mal da transição do período moderno ao contemporâneo, Ernest Bloch possui um lugar ímpar no debate. Com ideais marxistas e transcendentes cristãos, o alemão discorre, em uma tentativa de harmonizar o materialismo dialético com o projeto messiânico religioso. Diferentemente de Horkheimer que entendia a história de modo pessimista e de Camus no absurdo da existência, Bloch constrói uma estrutura teórica que expõe o homem, sua tragicidade, no âmbito de arquiteto e construtor de um mundo futuro que há de corrigir, ou pelo menos remediar, o mal ligado as ações humanas, ou seja, é impelido pela esperança plena no homem. Como tanto o mal metafísico quanto o empírico são inevitáveis, os seres humanos devem aprender com os males já cometidos, pensar no tempo que há de vir, para elaborar um presente que, solidariamente, é composto para as próximas gerações.
        A emenda do mundo para com os indivíduos futuros comporta uma ética utópica, uma aposta de intencionalidade, herdada de elementos da tradição cristã. O cristianismo é uma forma de religiosidade que se pauta na esperança por intermédio da contemplação da glória de Deus no paraíso e do Cristo que há de fazer justiça aos que choram pelo Reino do Céu. Todavia, Bloch rejeita a imagem de um Deus transcendente e pretende que o próprio ser humano, fiel ou ateu, seja, enquanto sujeito-histórico, o artífice do mundo que sofre para uma postura heroica na luta contra o mal moral. Uma vez que não há Deus que salve o mundo, compete o homem ser o redentor de si mesmo e se justificar diante do mal. Dado que o homem assume a postura de salvador e demiurgo do real, Bloch inverte faz de sua solução para o mal uma antropodiceia.         Para o filósofo, o cerne da questão do mal e as investidas contra sua proliferação independe da motivação pragmática que impele os indivíduos na busca de um mundo mais justo. No fim, o que acaba sendo importante é a própria luta para conter a maldade. Desta maneira, não hierarquização sobre qual modo contém uma eficácia maior para a solidariedade, ambas posturas, ateias ou religiosas, na práxis para a retificação da experiência da dor, desaguam no alcance da potência humana para a mobilização e vivência da esperança. Porventura, a principal diferença entre as posturas existenciais é a significação do mal que escapa ao crivo racional, — o religioso ultrapassa por meio do sentido que obtém da fé e suas justificativas na transcendência de Deus para a idealização própria para experienciar o mal.         Apesar do clamor de esperança para com o futuro que Bloch desenvolve em sua antropodiceia, o valor para manifestação do engajamento perante o mal, provindos da religiosidade é insuperável. Tão somente a intenção de construir um mundo mais ameno é frágil ante a função político-social que as expressões religiosas possuem. O ato de fé para o ser humano possui raízes profundas, a tendência a transcender não é abalada pelo avanço da técnica cientificista. Comprometida para com o âmbito ético da humanidade, visto os problemas emergentes que perpassaram o século XIX e XX, ascende uma perspectiva religiosa na Europa e nas Américas que atestam a contribuição da fé no combate para o mal em suas três dimensões, — independentemente dos impasses adquiridos após as mudanças de pensamento no Ocidente, a religião ainda consegue manter-se essencial para a humanidade pela significação e motivação para ultrapassagem do sofrimento moral, físico e metafísico.

  • Inconsistência e implausibilidade da teodicéia e conclusão: 
        Com o intuito de demonstrar a fragilidade das explicações da fé defronte o sofrimento, a teodiceia obtêm uma proporção magna com o pensamento analítico não apenas com o seu desenvolvimento reflexivo no campo ético-metafísico, mas também no teórico e lógico. A investigação sobre o mal, nessa perspectiva, deixa de centralizar as dimensões qualitativas da subjetividade do sofrimento no homem e suas soluções, para a compreensão integralmente racional da exatidão dos argumentos teológicos que se propõem a justificar as dores do mundo via a imagem de um Deus todo-poderoso e pleno de Amor.         O primeiro problema ao tentar discorrer sobre o mal na perspectiva fria da lógica matemática é a própria conceituação do mal em si mesmo, a experiência de qualquer dimensão da dor não é objetiva ou quantificável. Segundo N. Pike, a observação do fato empírico não carrega juízo de valor algum, a presença do mal é determinada pela sociedade na qual se apresenta; o sujeito julga o objeto pela identidade construída socio-culturalmente. O segundo inconveniente de tratar sobre o mal é pelo caráter totalizante e universal que as religiões partem: Deus, o Sumo-Bem e Criador do real, convive lado a lado com a presença do mal em sua Criação. Não obstante, nessa segunda colocação acerca do sofrimento, não há ainda contradição lógica entre ambas as premissas entre a existência ou não do divino, mas sim quanto à sua essência.         A vivência da fé escapa ao crivo total da ratio ocidental que tenta racionalizar toda realidade. Existe uma diferença contumaz entre pensar como as teodiceias explicam logicamente o mal e a compreensão sobre como Deus permite que o mal se encontre em sua Criação. Frequentemente as experiências da vida não são lógicas ou possuem plena explicação racional, Heidegger advertiu sobre a tentativa de sistematizar Deus e seus movimentos em um pensamento integral por desaguar em um racionalismo que não assume os limites da razão em face da contingência do viver. Absolutamente toda tentativa de sistematizar a experiência do mal fracassa frente a diversidade e universalidade do sofrimento. O mal, simplesmente, desafia o entendimento dos homens.         O ser humano é livre, a projeção de um mundo melhor não depende apenas da vontade de Deus, mas principalmente da própria ação sublime do homem na história. Como Kant observou, a idealização de uma possível realidade que seja melhor do que as dos fenômenos tais como se apresentam aos sentidos é um desvio da razão em decorrência da fragilidade dos processos indutivos dos conhecimentos a priori: não há como saber se o futuro há de ser menos ou mais perfeito que o real imanente que se impõe e escapa ao entendimento. A filosofia analítica, desse modo, contribui para a demonstração que as teodiceias falham ao tentar explicar as contrariedades presentes na afirmação da bondade de Deus e da maldade no mundo, além da ênfase facultada ao principal obstáculo racional do sofrimento que põe em xeque toda credibilidade dos argumentos teístas ou religiosos.         Em síntese, é possível afirmar que toda e qualquer tentativa de justificar o mal é uma tentativa falha em si mesma. Toda especulação, religiosa ou ateia, perde sua força frente a experiência vivida do mal e do sofrimento. A razão e a consciência religiosa possuem limites de apreensão da realidade do mundo, subsistem ainda questões aporéticas que perpassam o entendimento humano que percebe o real de modo fragmentado, hipotético e subjetivo.         Visto que a teodiceia na contemporaneidade perde suas forças pela virada antropológica do sofrimento inerente à existência do homem, a práxis do enfretamento do mal aumenta sua potência de ação. Ademais, qualquer posição e solução que o homem assume defronte ao mal é uma contestação humana tão inerente ao seu ser quanto a própria universalidade das experiências trágicas do existir. A questão central, no fim, é o combate contra o mal em sua totalidade, — físico, metafísico e moral —, em um ambiente globalizado em que as diferenças ideológicas, mesmo com suas divergências teóricas, possam lutar com o propósito solidário de amenizar as dores do mundo. Na transição da modernidade ao período contemporâneo, de Dostoiévski aos Analíticos, há um traço comum entre todas as perspectivas humanistas teístas e ateístas: A responsabilidade social do homem para com seus semelhantes, sua culpa e grandeza na história. “Hoje, antropodiceia ocupa o lugar da teodiceia, a resposta prática e solidária contra o mal substitui a especulação teórica.” (ESTRADA, 2004, cap. VI, p. 376.)




  • Bibliografia:
ESTRADA, Juan Antonio. A impossível teodicéia: a crise da fé em Deus e o problema do mal. São Paulo: Paulinas, 2004.

SIGNIFICADO DA AUTOTRANSCENDÊNCIA EM BATTISTA MONDIN

    A autotranscendência é um percurso no qual o homem alça um voo sistemático sobre si, superando a sua própria existência e sua complexidade para um plano mais elevado. Essa posição que engloba os seres humanos é também uma chave elementar, única e segura para a compreensão integral da natureza dos homens. Em síntese, é possível dizer que a experiência autotranscendente ocorre em três principais âmbitos, egocêntrica, filantrópica e teocêntrica; ambas compartilham o princípio de fazer que o homem ultrapasse a si e chegue a um patamar mais elevado de entendimento acerca da realidade, todavia, os processos que levam o sujeito a tal nível mudam com base na concepção que o indivíduo parte para a ascensão de um plano superior. 

    A primeira das concepções que Mondin irá elencar em sua obra é a egocêntrica, esta é a via de autotranscendência na qual é possível identificar facilmente no decorrer de toda a história do pensamento filosófico ocidental, desde os pensadores clássicos gregos aos existencialistas contemporâneos do século XX. Os filósofos, mesmo que ajam discrepâncias ímpares em seus pensamentos, grande parte deles compartilham a noção que o ser humano precisa se aperfeiçoar frente a situação atual em que se encontra visando adquirir um estado superior de ser, excelência e felicidade plena. O homem, nessa perspectiva, possui uma inclinação excepcional para o mal da ignorância, das paixões e do engano, portanto, com diferentes “exercícios” intelectivos é possível encontrar um estado de estar no mundo original, verdadeiro para realizar a própria existência de modo perfeitamente pleno. 

    Na concepção egocêntrica o homem busca um ser pessoal excelente. Reconhecendo que indivíduo consegue ultrapassar a si constantemente, este vai em busca de um patamar intelectivo que há de elevá-lo a conferir, corrigir, ordenar o “antigo eu” para à auto-realização total de sua vida. Essa noção de transcendência é marcada por uma atitude própria do sujeito que têm o intuito de se emancipar do jugo que mantém a humanidade presa em um estado de infelicidade, consequentemente cabe ascender apoiado à iniciativa, força e esforço particular — com efeito, ninguém pode aperfeiçoar-se por terceiros, nos termos de Immanuel Kant, compete ao indivíduo sair do estado de trevas para o esclarecimento. Não obstante, como Mondin aponta, frequentemente atesta a experiência que todos os esforços que o homem pode fazer é infrutífero, não é possível adquirir alcançar o modo de perfeição almejado mediante as próprias forças. 

    Visto que a concepção utilizada pelos filósofos muitas vezes é estéril para o homem atingir uma plenitude transcendente singular, o autor passa para a segunda concepção procurando uma solução para autotranscendência que seja de fato eficiente para o aperfeiçoamento humano. Esta segunda noção, a filantrópica, foi instituída pelos fundadores das ciências sociais no século XIX, em especial com Marx e Comte, esses e outros vários autores dessa área do saber perceberam que é possível que a autotranscendência também possui um valor que escapa ao indivíduo, isto é, ultrapassar a si com vista ao bem-estar geral da sociedade se desprendendo dos grilhões do individualismo rumo à uma humanidade livre da miséria, da desigualdade e dos demais problemas sociais para a obtenção da perfeita felicidade. Essa dimensão sociopolítica é principalmente verificada no sangue ardente e sonhador da juventude que se manifesta ativamente contra as estruturas tradicionais da sociedade. 

    A autotranscendência filantrópica traz uma perspectiva diferente da egocêntrica, o homem transcende porque é um ser social. Todavia, mesmo Marx e seus seguidores posteriores deixam um vácuo significativo frente ao aspecto pessoal da autotranscendência, mesmo uma sociedade utopicamente perfeita, esse fato não consegue compreender a totalidade do homem. O movimento de superação de si com a finalidade de um futuro abstrato e distante é sinônimo de abandonar as necessidades atuais dos indivíduos tanto social quanto pessoalmente, negligenciando o agora para um corpo social que todos, sejam os revolucionários ou as massas conduzidas, não poderão usufruir inteiramente. Além do mais, como estabelece Gollwitzer, todos os fatos fenomênicos são fugazes e imperfeitos, logo atribuir permanência em algo tão mutável e vivo como a sociedade é uma abstração elevada, quase infantil. Em vista desses fatos apontados por Mondin e Gollwitzer, a concepção filantrópica tal qual a egocêntrica é infértil para dar um sentido apto para o aspecto dinâmico autotranscendente da natureza humana. 

    A última concepção de autotranscendência que Mondin vai estabelecer em sua busca para dar uma solução segura para a superação do indivíduo é a teocêntrica, que possui dentre seus intérpretes e estudiosos Rahner, Marcel, Metz, etc. Esta tem sua base na fé, fazendo que o homem saía de si e da realidade mediante uma força exterior transcendente, Deus o sumo-bem, perfeitíssimo em todos seus atributos, concede a Graça de aproximar de modo “imperfeito” alguns indivíduos para uma comunhão mais íntima com seu Criador. 

    Por certo, como salienta o autor, a noção teocêntrica de superação de si é envolta de sérias dificuldades para seus defensores em decorrência do local que Deus tomou na modernidade, a saber, que o Ser Absoluto é incognoscível e inexprimível ou que é apenas uma criação da mente do homem que transfere seus anseios, necessidades e ideais para algo que foge a realidade concreta. Contudo, os partidários desse sentido autotranscendente estabelecem que esse movimento não é uma demonstração da existência de Deus, mas sim um fator importante para a compreensão que há uma realidade que está além da empiria. De todo modo, seja nessa concepção ou nas demais já citadas, ambas compartilham um ideal e objetivo metafísico, todavia, como já demonstrado, nem a razão deixada por si ou a sociedade perfeita conseguem edificar o homem em sua plenitude, logo não há alternativa, na perspectiva de Mondin, que tal aperfeiçoamento não seja fundamentalmente transcendental e divino. 

    O erro das outras perspectivas autotranscendentes, diz Merleau-Ponty, é a falta de capacidade, em especial dos filósofos e da concepção egocêntrica, de subjugar a verticalidade da transcendência e prezar tão somente em uma visão horizontal, sendo que o esforço de muitos pensadores em mediar sua filosofia entre ambas as linhas foi insuficiente para tal união. De modo paralelo, Vergote apresenta que a horizontalidade da transcendência abre a possibilidade para o homem ascender de modo vertical para que alcançando um plano divino o indivíduo delimite claramente que a matéria é o reino humano, a metafísica é o reino de Deus e a transcendência sendo a ligação entre o Sagrado e o Profano.

    Ademais, o homem quando se condiciona para sua edificação mediante a Graça, o indivíduo, que é fisicamente ligado aos fenômenos, caminha para o desprendimento da realidade material para alcançar a felicidade em Deus, que é o único capaz de preencher a totalidade do anseio pela perfeição e auto-realização. Dessa maneira, o homem se funde de modo horizontal e vertical com o Ideal, metaforicamente, ocorre um casamento sublime entre a condição empírica e metafísica. Por essa relação homem-Deus, os complexos aspectos humanos vão além dos objetos desaguando na fonte originária da substancialidade do real abrindo uma via de libertação para as carências do viver, isto é, o indivíduo preenche-se do Divino, ou em termos cristãos, sacia-se do Pão que uma vez alimentado não têm mais fome e da Água que extingue a sede. 

    Estabelecido que a concepção teocêntrica é a única capaz de edificar o homem para um estado de perfeição pleno, a autotranscendência toma um aspecto teológico relevante, sendo este um vestígio significativo para a existência de Deus e de uma natureza espiritual que escapa a materialidade. Para o autor, esses fatos são importantes para um entendimento antropológico que englobam o ser humano em uma perspectiva contrária ao pensamento que reduz a humanidade tão somente como ser material e biológico; o homem, longe de ser plenamente um fenômeno, é uma correlação entre corpóreo-não corpóreo, material-espiritual, distinguindo-se dos animais pela rica constituição do seu ser e de todas suas atividades que levam necessariamente a autotranscendência, dito de outro modo, a vida humana é autotranscendente por excelência. 

    O ser humano pode ultrapassar toda a realidade concreta, sair da relação espaço-tempo, ver o mundo afastado da matéria, justamente pelo fato que os indivíduos possuem um elemento espiritual que habita em sua alma, sendo esta, o ponto de partida para a ascendência rumo ao Divino e a manifestação mais evidente do caráter imaterial da vida humana — fenômeno tal atestado por inúmeros pensadores de regiões, motivações e gerações distintas, por exemplo, o grego Orígenes, Tomás de Aquino e o indiano Radhakrishnan. 

    Frente aos dados levantados por Mondin no capítulo I da segunda parte de sua obra, fica evidente que o homem é ser que perpassa sua existência no imediato material, que retém uma centelha de espírito em seu corpo, que ultrapassa continuamente a si e a realidade fenomênica, que autotranscende em todos seus atos e atinge sua profundidade mediante a presença metafísica distinta de constituição física habitante em seu ser. Em suma, “o homem é ser [corpóreo] que tem um elemento (a alma) que é absolutamente e por essência espiritual” (MONDIN, 1980), realizando seu fim último de desenvolvimento superando-se indo além das aparências usufruindo uma existência ideal em comunhão com a Graça concedida por Deus. 




RESUMO DE PSICOLOGIA SOCIAL: CONFORMIDADE E OBEDIÊNCIA

  1. Duas formas em que ocorre a conformidade segundo David G. Myers: A conformidade manifesta-se de inúmeras maneiras. David G. Myers, no...