A reflexão do mal perpassa o tempo e suas alternâncias. No mundo secularizado a questão toma proporções magnas e distintas mediante os entendimentos teístas e humanistas ateístas próprios da passagem do período moderno ao contemporâneo. As reflexões acerca da problemática do mal, do silêncio e do desamparo de Deus ultrapassam os domínios teológicos-filosóficos e resplandecem em outras diversas manifestações culturais. Após os movimentos históricos do início do século XIX à contemporaneidade, o sentido da existência humana tornou-se objeto de reflexão diante do mal que atinge proporções industriais e globalizadas. A questão do mal direcionou-se para o enfrentamento ético, político e religioso. O ato de refletir sobre o escândalo da maldade que assola a humanidade, mesmo de modo secularizado, é o pensar acerca do projeto soteriológico próprio das tradições religiosas de natureza judaico-cristã.
Objeto tradicionalmente debatido em critérios metafísicos, o mal no período moderno-contemporâneo é visto por meio da nervura do real imanente que o homem se depara: Da condição desumana dos assalariados nas indústrias europeias, à morte de Deus anunciada por Nietzsche, o fracasso da utópica razão esclarecida dos Iluministas, a vulgarização do sofrimento nos campos de batalha e de concentração das duas grandes guerras, a ascensão sistemas políticos totalitários, dentre outros demais males que fizeram o homem, em um ato de contestação, protestar diante do silêncio de Deus. Dito de outro modo, todo projeto filosófico-social sonhado por pensadores do século XVII ao XIX falharam, o ser humano defronte aos impasses recém-adquiridos em sua trajetória se dispõe a resolvê-los por outro caminho.
Dostoiévski no romance Os Irmãos Karamazov anuncia e retrata a condição do homem moderno na presença do mal. O autor suspende o juízo perante a moral e dos valores transcendentes que tanto a tradição religiosa quanto a filosófica sustentou e construiu o mundo ocidental. O homem deixando de contemplar os céus, percebe a fragilidade e as consequências da sustentação metafísica do agir. Não obstante, apesar da dúvida da presença de Deus na história da humanidade, o escritor russo afirma que sua existência é necessária como impedimento para plena liberdade da moral, isto é, os resultados do livre agir humano que afirmam sua capacidade para a maldade levam, fatalmente, à afirmação de Deus. Para mais disto, a existência do Ente Absolutíssimo construído pelas religiões é fundamental para a própria noção de humanidade e a liberdade das ações, sua existência permite, de modo universal, a distinção entre o bem e o mal moral tornando os humanos verdadeiramente humanos.
Sintetizadas nas palavras de Ivan Karamazov, Dostoiévski aponta para a incompatibilidade do mal, da vítima inocente e do agente do mal. A criação é corrompida pelo sofrimento, pela injustiça, e provoca o autor, a revolta própria dos homens em face de um Deus bondoso e onisciente é a contradição existente para a dureza do existir empírico diante a sublimidade dos dogmas religiosos. Por consequência essa aporia já debatida por Lucrécio, o escritor, tal como Jó, contesta a criação e o projeto redentor do Cristo. A fé, nesse sentido, deixa de ser objeto de racionalização e adquire uma postura existencial frente às dores do mundo.
Propondo dar uma solução válida aos novos modos de lidar com o mal, por um trajeto filosófico, Horkheimer por vias diferentes se dispõe a responder à problemática através das influências que recebeu em sua formação filosófica. Em consonância com Schopenhauer, o fundador da teoria crítica reafirma os movimentos absurdos da história e dos sistemas teleológicos dos idealistas metafísicos, de Hegel e Marx. O sofrimento escapa a qualquer possível sistematização racional, é ilógico, é irremediável e irreversível uma vez que a experiência do mal já fora consumada. Sem qualquer sentido que dê um caminho ou a justifique os movimentos históricos, a concepção de vir-a-ser na história é concebida como mitologia e vã filosofia.
De modo semelhante Walter Benjamin compreendia a história como uma grande retenção acumulativa de experiências trágicas e absurdas, o que acaba por levar a uma re-teologia escatológica contra a falácia do progresso humano. O integrante da Escola de Frankfurt em suas Teses sobre a filosofia da história, discorre sobre sua concepção de história que caminha rumo à uma teodiceia: não há resolução acabada nos processos de sofrimento humano, é incompleto e não existe ponto final nas consequências do mal já cometido, a história continua e o homem carrega o fardo de seus próprios erros.
Fruto do desencantamento do mundo anunciado com Weber, Horkheimer afirma que os trajetos que a sociedade dirigida e do cogito esclarecido encaminha-se para um período de incivilidade, fazendo de todos os meios e manifestações humanas instrumentos de exploração e opressão. Além de que o modus operandi positivista de conceber o real, para o filósofo, pouco a pouco vai destruindo todas as tradições utópicas, éticas e estritamente humanas, dito doutro modo, o homem deixa de sonhar por um mundo melhor. À medida que o pensamento cientificista cresce e se consolida na sociedade, progressivamente diminui e se enfraquece o alcance dos valores morais. Visto isso, a religião deve assumir uma postura distinta na sociedade capitalista, é preciso que os preceitos divinos deixem de ser objetos especulativos e se tornem imanentes, práxis vividas das leis divinas.
A religiosidade torna possível o engajamento e enfrentamento do mal com a esperança para um futuro mais sublime, ou seja, a religiosidade pode ser uma prática vinculada com as boas obras de justiça. Na sociedade administrada, para a fé e teologia, não é conveniente prender-se em especulações acerca da natureza divina e suas problemáticas metafísicas adjacentes. Além de que a teologia se dedicando exclusivamente aos critérios transcendentes da fé torna-se uma ciência com uma postura positivista ao ter como objeto de investigação a revelação e os argumentos lógicos-racionais para construir seu repertório dogmático e racionalista por negligenciar o aspecto pragmático da vivência religiosa. Desse modo, diferentemente do que Kant estipulava, Deus não é tão somente regulador da consciência humana, mas principalmente, para Horkheimer, estopim para o bem-agir em sociedade.
Dentro do cenário histórico político-social do século XX, a desesperança que afligia o mundo ocidental levou Horkheimer se afastar de correntes filosóficas que predispunham algum projeto messiânico, seja de cunho intelectual ou social, fazendo que o pensador teórico-crítico refletisse também sob a influência que recebeu de alguns conceitos religiosos e teológicos. Por conseguinte, seu posicionamento de engajamento da fé como fomentador de esperança na luta contra o mal o torna mais próximo de Dostoiévski que de Kant ou de outros filósofos que marcaram sua trajetória intelectual, inclusive do seu próprio círculo de pensador. Horkheimer, nesse sentido, é uma anomalia.
Ausente de lógica e incoerente em si, a história é o agente que faz o indivíduo dar um salto de fé no âmago do sagrado e, de modo contraditório, é o que impede a afirmação do Deus presente nos passos que a humanidade traça no tempo. Horkheimer, como já mencionado, se afasta de influências que prezam por um mundo melhor utópico, o filósofo movido pela máxima cristã de amor com o próximo e com a com-paixão schopenhauriana, considera que por meio destas últimas é possível manter viva a esperança e a chama transformadora do real sem cair no desespero diante da irracionalidade imanente à história.
Ainda que Horkheimer rejeite quaisquer tentativas de racionalização da fé especulativa ou de teodiceia, o mesmo não tende para o ateísmo pela insuficiência da razão em construir um pensamento válido que concilie a questão do mal, da bondade e existência de Deus. Sendo os homens incapazes de dizer algo que dê sentido para o mal no mundo, cabe, portanto, viver uma moral que seja harmonizável com os critérios divinos já cristalizados pela tradição teológico-filosófica. Logo, com a impossibilidade de discursar coerentemente acerca das questões divinas e profanas do mal e suas questões seguintes, levar uma existência pautada no amor, na justiça e caridade se torna uma orientação válida para resistir às investidas da maldade no percurso histórico. Horkheimer, consequentemente, em uma posição teísta esclarece um dos questionamentos emergentes de sua época, o mal moral.
- O humanismo ateu e o problema do mal:
O mal é algo que transcende aos questionamentos teístas ou religiosos, a discussão sobre como lidar com sua existência percorre inclusive entre os pensamentos ateus mobilizando uma ética solidária. De acordo com Lévinas, o desamparo de um Ente Absolutíssimo pessoal impulsiona o humanismo ateu em direção a solidariedade. Como não há quem possa salvar os homens de si e dos males inerentes a sua natureza, compete aos próprios indivíduos tornarem do mundo um local mais humano e justo. A concepção ateísta do mal parte da própria imanente da tragicidade da história subjetiva e universal dos indivíduos. Essa proposta é a perspectiva prática de motivação para o problema do mal inescapável da existência.
No âmbito filosófico-literário Camus em seu romance trágico, A Peste, vai mais à frente de Horkheimer discorrendo, para além do mal moral, a dimensão física do sofrimento e da dor. Para o franco-argelino, as explicações cristãs fracassaram em decorrência do silêncio de Deus para com o sofrimento de inocentes. Não se pode crer em um Deus que se oculta em neblinas de vagas promessas enquanto sua criação chora as dores do mundo. A falta de justificativa para a experiência da dor é o sumo-obstáculo que impede a afirmação do divino na qualidade de Ente de Amor e Bondade, deste modo, o próprio Deus se torna inviável dada as vivências do mundo. Não há bem-aventurança alguma que amenize a inaceitabilidade do mal físico e moral.
Em seu ensaio filosófico O homem revoltado, Camus compreende a história mediante uma hermenêutica antropocêntrica atéia, para o autor o encadeamento de ações humanas são uma revolta que escapa a universalidade da metafísica. A nervura do real separada pela absoluta transcendência do divino possibilita que os homens se revoltem para com seu Criador. Apesar dos protestos dos homens, visto que no decorrer da história Deus se manteve passivo frente as tragédias que sucediam no mundo é vão implorar algum socorro ou pedir auxílio à racionalidade para encontrar uma ordem justificável para os atos humanos. Todavia, mesmo acreditando no total desamparo que os homens se encontram e na ausência de valores imutáveis, Camus reconhece a necessidade de Deus para que os indivíduos moderem seus atos e o mundo não se torne um local ainda mais árduo para vida.
Na não-existência de um Ente Absoluto não há critérios para se definir a santidade ou pecaminosidade. O mal está no mundo e sempre vence, não há condenação para o injusto e salvação para o justo devoto, isto é, a injustiça vence. Logo, como não há um centro moral metafísico para a determinação das ações humanas, o homem deve assumir o local de Deus e corrigir a história na luta contra o mal, mesmo com a certeza de que o sofrimento inevitavelmente há de vencer. Ora, o próprio esforço solidário para lutar contra as injustiças e as maldades que sucedem no itinerário humano é a demonstração da grandeza e sublimidade que o homem contém em si. Em oposição à problemática da natureza do mal, o engajamento para sua contenção não deve ser entendido nos moldes kantianos de moral, por imperativo categórico, mas, sim, dada a fragilidade dos homens, por intervenção a compaixão e ternura para com os indivíduos que sofrem.
Camus, mesmo se autoproclamando ateu, reconhece a necessidade da religião tanto para com os indivíduos como na luta contra o mal. A objeção camusiana para com a fé, em uma linha de pensamento já advertida por Marx nas Teses sobre Feuerbach, é para a tendência de algumas vertentes religiosas estimularem a passividade diante da dor, ou seja, a crença de uma esperança anestesiadora para com o sofrimento sem as devidas ações necessárias para o desenvolvimento de uma existência coletiva mais justa. Infiel ou fiel aos dogmas de fé, o homem bom e justo que enfrenta o mal é melhor do que Deus que se mantém indiferente aos clamores desiludidos dos homens. Por essa discrepância existente entre a solidariedade humana e a benevolência de Deus, é incompreensível qualquer tentativa de fundamentar ou de conciliar ambas as posições em um mesmo corpo teórico. É ineficaz e absurda, portanto, toda justificativa de conciliação, filosófica ou mitológica, com base nas premissas das religiões de natureza judaico-cristã, — o homem enquanto pecador e mal por natureza, e, Deus essencialmente perfeitíssimo e modelo universal de virtude.
Ainda que as pretensões religiosas sejam belas e sublimes, o mal derrota toda esperança soteriológica. Exemplificado na figura do médico contra a peste, ainda que o sofrimento se faça inescapável, é preciso lutar até as últimas consequências contra o mal. O ato de revolta dos homens diante do absurdo do real e de seus esforços inúteis por uma realidade melhor, longe de desaguar em um niilismo defronte as adversidades, é o estopim para o ser humano eleve sua potência capacidade de amar e estimar a vida, só existe esta única possibilidade uma vez que os indivíduos estão sozinhos e têm tão somente a si mesmos para lidar com o mal em sua amplitude. Os homens estão sozinhos na indiferença de Deus e do universo, desta maneira, é preciso que acolher verdadeiramente o absurdo e ser otimista quanto a própria humanidade.
Com o espírito próprio da filosofia continental da metade do século XX, Camus está inserido no desencantamento dos mitos de progresso, da religião e do projeto emancipador do Iluminismo. Em uma perspectiva diferente, o autor se assemelha aos ideais de Horkheimer ao propor um humanismo solidário no enfrentamento do mal, ainda que não pretenda que a religiosidade seja o condutor principal para solidariedade neste campo de batalha. Sem fé no destino humano, em um Deus que salva e com a esperança nas boas ações humanas, Camus, de determinado modo, chega no cerne da tradição cristã, embora seu pensamento, fundamentalmente, não seja religioso.
O filósofo em seus ideais sobre o problema do mal representa grande parte dos humanistas-ateus estabelecendo que, mesmo sem o cultivo dos critérios próprios da fé e com o alicerce no próprio absurdo da existência, é possível o enfrentamento da dor e do sofrimento mediante a solidariedade e compaixão. No O homem revoltado, o pensador reconhece os méritos do cristianismo ao tentar superar a maldade e a morte na figura do Deus fragilizado no alto da cruz, ainda que a religião tenha fracassado em reconstruir a história por meio do sacrifício compassivo de Jesus. Camus compreende que a fé no Deus crucificado é própria do homem revoltado que não se conforma com o absurdo da finitude e da injustiça. A despeito da excelência do ato penitencial do Cristo e do homem solidário que enfrenta o mal através do silêncio de Deus, Camus não propõe uma solução para o problema do mal, todavia, desperta os homens para com um otimismo consigo mesmo em uma possível construção de um mundo melhor.
No itinerário da questão acerca do mal da transição do período moderno ao contemporâneo, Ernest Bloch possui um lugar ímpar no debate. Com ideais marxistas e transcendentes cristãos, o alemão discorre, em uma tentativa de harmonizar o materialismo dialético com o projeto messiânico religioso. Diferentemente de Horkheimer que entendia a história de modo pessimista e de Camus no absurdo da existência, Bloch constrói uma estrutura teórica que expõe o homem, sua tragicidade, no âmbito de arquiteto e construtor de um mundo futuro que há de corrigir, ou pelo menos remediar, o mal ligado as ações humanas, ou seja, é impelido pela esperança plena no homem. Como tanto o mal metafísico quanto o empírico são inevitáveis, os seres humanos devem aprender com os males já cometidos, pensar no tempo que há de vir, para elaborar um presente que, solidariamente, é composto para as próximas gerações.
A emenda do mundo para com os indivíduos futuros comporta uma ética utópica, uma aposta de intencionalidade, herdada de elementos da tradição cristã. O cristianismo é uma forma de religiosidade que se pauta na esperança por intermédio da contemplação da glória de Deus no paraíso e do Cristo que há de fazer justiça aos que choram pelo Reino do Céu. Todavia, Bloch rejeita a imagem de um Deus transcendente e pretende que o próprio ser humano, fiel ou ateu, seja, enquanto sujeito-histórico, o artífice do mundo que sofre para uma postura heroica na luta contra o mal moral. Uma vez que não há Deus que salve o mundo, compete o homem ser o redentor de si mesmo e se justificar diante do mal. Dado que o homem assume a postura de salvador e demiurgo do real, Bloch inverte faz de sua solução para o mal uma antropodiceia.
Para o filósofo, o cerne da questão do mal e as investidas contra sua proliferação independe da motivação pragmática que impele os indivíduos na busca de um mundo mais justo. No fim, o que acaba sendo importante é a própria luta para conter a maldade. Desta maneira, não hierarquização sobre qual modo contém uma eficácia maior para a solidariedade, ambas posturas, ateias ou religiosas, na práxis para a retificação da experiência da dor, desaguam no alcance da potência humana para a mobilização e vivência da esperança. Porventura, a principal diferença entre as posturas existenciais é a significação do mal que escapa ao crivo racional, — o religioso ultrapassa por meio do sentido que obtém da fé e suas justificativas na transcendência de Deus para a idealização própria para experienciar o mal.
Apesar do clamor de esperança para com o futuro que Bloch desenvolve em sua antropodiceia, o valor para manifestação do engajamento perante o mal, provindos da religiosidade é insuperável. Tão somente a intenção de construir um mundo mais ameno é frágil ante a função político-social que as expressões religiosas possuem. O ato de fé para o ser humano possui raízes profundas, a tendência a transcender não é abalada pelo avanço da técnica cientificista. Comprometida para com o âmbito ético da humanidade, visto os problemas emergentes que perpassaram o século XIX e XX, ascende uma perspectiva religiosa na Europa e nas Américas que atestam a contribuição da fé no combate para o mal em suas três dimensões, — independentemente dos impasses adquiridos após as mudanças de pensamento no Ocidente, a religião ainda consegue manter-se essencial para a humanidade pela significação e motivação para ultrapassagem do sofrimento moral, físico e metafísico.
- Inconsistência e implausibilidade da teodicéia e conclusão:
Com o intuito de demonstrar a fragilidade das explicações da fé defronte o sofrimento, a teodiceia obtêm uma proporção magna com o pensamento analítico não apenas com o seu desenvolvimento reflexivo no campo ético-metafísico, mas também no teórico e lógico. A investigação sobre o mal, nessa perspectiva, deixa de centralizar as dimensões qualitativas da subjetividade do sofrimento no homem e suas soluções, para a compreensão integralmente racional da exatidão dos argumentos teológicos que se propõem a justificar as dores do mundo via a imagem de um Deus todo-poderoso e pleno de Amor.
O primeiro problema ao tentar discorrer sobre o mal na perspectiva fria da lógica matemática é a própria conceituação do mal em si mesmo, a experiência de qualquer dimensão da dor não é objetiva ou quantificável. Segundo N. Pike, a observação do fato empírico não carrega juízo de valor algum, a presença do mal é determinada pela sociedade na qual se apresenta; o sujeito julga o objeto pela identidade construída socio-culturalmente. O segundo inconveniente de tratar sobre o mal é pelo caráter totalizante e universal que as religiões partem: Deus, o Sumo-Bem e Criador do real, convive lado a lado com a presença do mal em sua Criação. Não obstante, nessa segunda colocação acerca do sofrimento, não há ainda contradição lógica entre ambas as premissas entre a existência ou não do divino, mas sim quanto à sua essência.
A vivência da fé escapa ao crivo total da ratio ocidental que tenta racionalizar toda realidade. Existe uma diferença contumaz entre pensar como as teodiceias explicam logicamente o mal e a compreensão sobre como Deus permite que o mal se encontre em sua Criação. Frequentemente as experiências da vida não são lógicas ou possuem plena explicação racional, Heidegger advertiu sobre a tentativa de sistematizar Deus e seus movimentos em um pensamento integral por desaguar em um racionalismo que não assume os limites da razão em face da contingência do viver. Absolutamente toda tentativa de sistematizar a experiência do mal fracassa frente a diversidade e universalidade do sofrimento. O mal, simplesmente, desafia o entendimento dos homens.
O ser humano é livre, a projeção de um mundo melhor não depende apenas da vontade de Deus, mas principalmente da própria ação sublime do homem na história. Como Kant observou, a idealização de uma possível realidade que seja melhor do que as dos fenômenos tais como se apresentam aos sentidos é um desvio da razão em decorrência da fragilidade dos processos indutivos dos conhecimentos a priori: não há como saber se o futuro há de ser menos ou mais perfeito que o real imanente que se impõe e escapa ao entendimento. A filosofia analítica, desse modo, contribui para a demonstração que as teodiceias falham ao tentar explicar as contrariedades presentes na afirmação da bondade de Deus e da maldade no mundo, além da ênfase facultada ao principal obstáculo racional do sofrimento que põe em xeque toda credibilidade dos argumentos teístas ou religiosos.
Em síntese, é possível afirmar que toda e qualquer tentativa de justificar o mal é uma tentativa falha em si mesma. Toda especulação, religiosa ou ateia, perde sua força frente a experiência vivida do mal e do sofrimento. A razão e a consciência religiosa possuem limites de apreensão da realidade do mundo, subsistem ainda questões aporéticas que perpassam o entendimento humano que percebe o real de modo fragmentado, hipotético e subjetivo.
Visto que a teodiceia na contemporaneidade perde suas forças pela virada antropológica do sofrimento inerente à existência do homem, a práxis do enfretamento do mal aumenta sua potência de ação. Ademais, qualquer posição e solução que o homem assume defronte ao mal é uma contestação humana tão inerente ao seu ser quanto a própria universalidade das experiências trágicas do existir. A questão central, no fim, é o combate contra o mal em sua totalidade, — físico, metafísico e moral —, em um ambiente globalizado em que as diferenças ideológicas, mesmo com suas divergências teóricas, possam lutar com o propósito solidário de amenizar as dores do mundo. Na transição da modernidade ao período contemporâneo, de Dostoiévski aos Analíticos, há um traço comum entre todas as perspectivas humanistas teístas e ateístas: A responsabilidade social do homem para com seus semelhantes, sua culpa e grandeza na história. “Hoje, antropodiceia ocupa o lugar da teodiceia, a resposta prática e solidária contra o mal substitui a especulação teórica.” (ESTRADA, 2004, cap. VI, p. 376.)
ESTRADA, Juan Antonio. A impossível teodicéia: a crise da fé em Deus e o problema do mal. São Paulo: Paulinas, 2004.