A autotranscendência é um percurso no qual o homem alça um voo sistemático sobre si, superando a sua própria existência e sua complexidade para um plano mais elevado. Essa posição que engloba os seres humanos é também uma chave elementar, única e segura para a compreensão integral da natureza dos homens. Em síntese, é possível dizer que a experiência autotranscendente ocorre em três principais âmbitos, egocêntrica, filantrópica e teocêntrica; ambas compartilham o princípio de fazer que o homem ultrapasse a si e chegue a um patamar mais elevado de entendimento acerca da realidade, todavia, os processos que levam o sujeito a tal nível mudam com base na concepção que o indivíduo parte para a ascensão de um plano superior.
A primeira das concepções que Mondin irá elencar em sua obra é a egocêntrica, esta é a via de autotranscendência na qual é possível identificar facilmente no decorrer de toda a história do pensamento filosófico ocidental, desde os pensadores clássicos gregos aos existencialistas contemporâneos do século XX. Os filósofos, mesmo que ajam discrepâncias ímpares em seus pensamentos, grande parte deles compartilham a noção que o ser humano precisa se aperfeiçoar frente a situação atual em que se encontra visando adquirir um estado superior de ser, excelência e felicidade plena. O homem, nessa perspectiva, possui uma inclinação excepcional para o mal da ignorância, das paixões e do engano, portanto, com diferentes “exercícios” intelectivos é possível encontrar um estado de estar no mundo original, verdadeiro para realizar a própria existência de modo perfeitamente pleno.
Na concepção egocêntrica o homem busca um ser pessoal excelente. Reconhecendo que indivíduo consegue ultrapassar a si constantemente, este vai em busca de um patamar intelectivo que há de elevá-lo a conferir, corrigir, ordenar o “antigo eu” para à auto-realização total de sua vida. Essa noção de transcendência é marcada por uma atitude própria do sujeito que têm o intuito de se emancipar do jugo que mantém a humanidade presa em um estado de infelicidade, consequentemente cabe ascender apoiado à iniciativa, força e esforço particular — com efeito, ninguém pode aperfeiçoar-se por terceiros, nos termos de Immanuel Kant, compete ao indivíduo sair do estado de trevas para o esclarecimento. Não obstante, como Mondin aponta, frequentemente atesta a experiência que todos os esforços que o homem pode fazer é infrutífero, não é possível adquirir alcançar o modo de perfeição almejado mediante as próprias forças.
Visto que a concepção utilizada pelos filósofos muitas vezes é estéril para o homem atingir uma plenitude transcendente singular, o autor passa para a segunda concepção procurando uma solução para autotranscendência que seja de fato eficiente para o aperfeiçoamento humano. Esta segunda noção, a filantrópica, foi instituída pelos fundadores das ciências sociais no século XIX, em especial com Marx e Comte, esses e outros vários autores dessa área do saber perceberam que é possível que a autotranscendência também possui um valor que escapa ao indivíduo, isto é, ultrapassar a si com vista ao bem-estar geral da sociedade se desprendendo dos grilhões do individualismo rumo à uma humanidade livre da miséria, da desigualdade e dos demais problemas sociais para a obtenção da perfeita felicidade. Essa dimensão sociopolítica é principalmente verificada no sangue ardente e sonhador da juventude que se manifesta ativamente contra as estruturas tradicionais da sociedade.
A autotranscendência filantrópica traz uma perspectiva diferente da egocêntrica, o homem transcende porque é um ser social. Todavia, mesmo Marx e seus seguidores posteriores deixam um vácuo significativo frente ao aspecto pessoal da autotranscendência, mesmo uma sociedade utopicamente perfeita, esse fato não consegue compreender a totalidade do homem. O movimento de superação de si com a finalidade de um futuro abstrato e distante é sinônimo de abandonar as necessidades atuais dos indivíduos tanto social quanto pessoalmente, negligenciando o agora para um corpo social que todos, sejam os revolucionários ou as massas conduzidas, não poderão usufruir inteiramente. Além do mais, como estabelece Gollwitzer, todos os fatos fenomênicos são fugazes e imperfeitos, logo atribuir permanência em algo tão mutável e vivo como a sociedade é uma abstração elevada, quase infantil. Em vista desses fatos apontados por Mondin e Gollwitzer, a concepção filantrópica tal qual a egocêntrica é infértil para dar um sentido apto para o aspecto dinâmico autotranscendente da natureza humana.
A última concepção de autotranscendência que Mondin vai estabelecer em sua busca para dar uma solução segura para a superação do indivíduo é a teocêntrica, que possui dentre seus intérpretes e estudiosos Rahner, Marcel, Metz, etc. Esta tem sua base na fé, fazendo que o homem saía de si e da realidade mediante uma força exterior transcendente, Deus o sumo-bem, perfeitíssimo em todos seus atributos, concede a Graça de aproximar de modo “imperfeito” alguns indivíduos para uma comunhão mais íntima com seu Criador.
Por certo, como salienta o autor, a noção teocêntrica de superação de si é envolta de sérias dificuldades para seus defensores em decorrência do local que Deus tomou na modernidade, a saber, que o Ser Absoluto é incognoscível e inexprimível ou que é apenas uma criação da mente do homem que transfere seus anseios, necessidades e ideais para algo que foge a realidade concreta. Contudo, os partidários desse sentido autotranscendente estabelecem que esse movimento não é uma demonstração da existência de Deus, mas sim um fator importante para a compreensão que há uma realidade que está além da empiria. De todo modo, seja nessa concepção ou nas demais já citadas, ambas compartilham um ideal e objetivo metafísico, todavia, como já demonstrado, nem a razão deixada por si ou a sociedade perfeita conseguem edificar o homem em sua plenitude, logo não há alternativa, na perspectiva de Mondin, que tal aperfeiçoamento não seja fundamentalmente transcendental e divino.
O erro das outras perspectivas autotranscendentes, diz Merleau-Ponty, é a falta de capacidade, em especial dos filósofos e da concepção egocêntrica, de subjugar a verticalidade da transcendência e prezar tão somente em uma visão horizontal, sendo que o esforço de muitos pensadores em mediar sua filosofia entre ambas as linhas foi insuficiente para tal união. De modo paralelo, Vergote apresenta que a horizontalidade da transcendência abre a possibilidade para o homem ascender de modo vertical para que alcançando um plano divino o indivíduo delimite claramente que a matéria é o reino humano, a metafísica é o reino de Deus e a transcendência sendo a ligação entre o Sagrado e o Profano.
Ademais, o homem quando se condiciona para sua edificação mediante a Graça, o indivíduo, que é fisicamente ligado aos fenômenos, caminha para o desprendimento da realidade material para alcançar a felicidade em Deus, que é o único capaz de preencher a totalidade do anseio pela perfeição e auto-realização. Dessa maneira, o homem se funde de modo horizontal e vertical com o Ideal, metaforicamente, ocorre um casamento sublime entre a condição empírica e metafísica. Por essa relação homem-Deus, os complexos aspectos humanos vão além dos objetos desaguando na fonte originária da substancialidade do real abrindo uma via de libertação para as carências do viver, isto é, o indivíduo preenche-se do Divino, ou em termos cristãos, sacia-se do Pão que uma vez alimentado não têm mais fome e da Água que extingue a sede.
Estabelecido que a concepção teocêntrica é a única capaz de edificar o homem para um estado de perfeição pleno, a autotranscendência toma um aspecto teológico relevante, sendo este um vestígio significativo para a existência de Deus e de uma natureza espiritual que escapa a materialidade. Para o autor, esses fatos são importantes para um entendimento antropológico que englobam o ser humano em uma perspectiva contrária ao pensamento que reduz a humanidade tão somente como ser material e biológico; o homem, longe de ser plenamente um fenômeno, é uma correlação entre corpóreo-não corpóreo, material-espiritual, distinguindo-se dos animais pela rica constituição do seu ser e de todas suas atividades que levam necessariamente a autotranscendência, dito de outro modo, a vida humana é autotranscendente por excelência.
O ser humano pode ultrapassar toda a realidade concreta, sair da relação espaço-tempo, ver o mundo afastado da matéria, justamente pelo fato que os indivíduos possuem um elemento espiritual que habita em sua alma, sendo esta, o ponto de partida para a ascendência rumo ao Divino e a manifestação mais evidente do caráter imaterial da vida humana — fenômeno tal atestado por inúmeros pensadores de regiões, motivações e gerações distintas, por exemplo, o grego Orígenes, Tomás de Aquino e o indiano Radhakrishnan.
Frente aos dados levantados por Mondin no capítulo I da segunda parte de sua obra, fica evidente que o homem é ser que perpassa sua existência no imediato material, que retém uma centelha de espírito em seu corpo, que ultrapassa continuamente a si e a realidade fenomênica, que autotranscende em todos seus atos e atinge sua profundidade mediante a presença metafísica distinta de constituição física habitante em seu ser. Em suma, “o homem é ser [corpóreo] que tem um elemento (a alma) que é absolutamente e por essência espiritual” (MONDIN, 1980), realizando seu fim último de desenvolvimento superando-se indo além das aparências usufruindo uma existência ideal em comunhão com a Graça concedida por Deus.
